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4. CAPACIDADE JURÍDICA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

4.2 ARTIGO 12 DA CONVENÇÃO: DIREITO À PLENA CAPACIDADE JURÍDICA

4.2.4 Nova regulamentação do exercício da capacidade jurídica

O artigo 12 em seu inciso 4 traz uma verdadeira reforma dos institutos de tomada de decisão substituída, que no caso brasileiro se perfaz pela curatela. Trata-se do dispositivo, no artigo 12, de maior extensão e maior rol prescritivo de regras com aplicação objetiva e imediata. Focando em regras e não tanto em princípios, o inciso 4 visa a inclusão de “salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abuso.” Trata-se de uma norma acautelatória, tendo em vista que se fundamenta na ideia de prevenir possíveis malversações do poder curare e de abusos envolvendo pessoas com deficiência.

Apesar de prioritariamente encarados como limites aos institutos de tomada de decisão substituída, as normas deste inciso também se aplicam solidariamente à tomada de decisão apoiada, na qual o seu exercício deve se reger pelos mesmos princípios e regras ora discutidos.

4. Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.

A última parte do inciso apresenta ditame de cunho principiológico norteador da aplicação dos demais direitos da matriz acautelatória, a qual prescreve: “As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.” Esta frase consagra o metaprincípio jurídico da proporcionalidade quando da subsunção de quaisquer textos normativos ao caso concreto. Em relação às pessoas com deficiência, a ressalva é bem-vinda posto que realça uma noção de primazia dessas como sujeitos de direito por meio da afetação aos “direitos e interesses da pessoa.”

       

Nesta perspectiva, a norma preventiva se divide em cinco subdireitos ou obrigações estatais: (i) respeito aos direitos, à vontade e às preferências da pessoa; (ii) isenção de conflito de interesses e de influência indevida; (iii) proporcionalidade e apropriação às circunstâncias da pessoa; (iv) aplicação pelo menor tempo possível; (v) revisão regular por órgão competente.

Primeiramente, garante-se que se respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, de modo a preservar a mudança de paradigma promulgada pela Convenção, ou seja, a supremacia da autonomia. É defeso o estabelecimento de relações com curadores ou apoiadores em que haja conflito de interesses, ainda que de maneira indireta. Previne-se que possam haver decisões contrárias ao melhor interesse da pessoa com deficiência em benefício do sujeito que deveria lhe apoiar. Igualmente, veda-se o exercício assistido da capacidade legal quando houver influência indevida por parte destas pessoas ou profissionais. Para tanto, deve haver razoável suspeita ou indícios consideráveis de que o apoiador haja incorrido em condutas que visassem tal injusta influência. Esta conduta não será de mais difícil averiguação e consequentemente a norma terá uma aplicabilidade mais árdua. Não obstante, sua presença no texto convencional é inovadora e poderá fundamentar muitos pedidos de revisão curatelar.

Deve haver uma proporcionalidade e apropriação das medidas auxiliares ao exercício da capacidade às circunstâncias específicas da pessoa com deficiência, ou seja, não se adotar medidas de tamanho único – i.e. one size fits all – para todos os casos. A individualização das medidas curatelares ou apoiadoras faz-se mister nesta nova regulamentação. Neste sentido, a ONG Inclusion International, em resposta ao call for

papers do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, sugeriu que a correta

aplicação desta norma deva se dar por meio de medidas que particularizem matérias específicas envolvendo o binômio decisão específica/momento específico, bem como se deve distinguir entre os diferentes tipos de decisão sujeitos à medida, se financeiras ou pessoais, e a extensão das mesmas.332

Por fim, elencam-se duas exigências de cunho procedimental às quais a legislação interna deve se adaptar prontamente. Decreta-se que quaisquer medidas

       

332 INCLUSION INTERNATIONAL, Submission to the Committee on The Rights of Persons with

auxiliadoras da capacidade devam ser aplicadas “pelo período mais curto possível”, portanto não poderão mais ser concedidas medidas incondicionais ou por tempo indeterminado. O tempo mais breve deve ser garantido por decisão que estabeleça um prazo determinado para sua validade ou, ultima ratio, coloquem condições objetivas de perfazimento temporal vislumbrável para sua finalização – e.g. a saída de pessoa do estado de coma. A outra norma prescreve que as medidas sejam subordinadas a uma revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial, na dinâmica jurídica brasileira tal órgão seria, indubitavelmente, o Poder Judiciário.

Esta redação do inciso não foi, contudo, livre de críticas. O International Disability Caucus condenou fortemente a terminologia adotada, a qual considerou paternalista e quase-curatelar. Expressões como “apropriadas às circunstâncias da pessoa” e “grau proporcional de medidas” podem implicar numa interpretação subjetiva por parte do terceiro apoiador ou curador, e não necessariamente em um contínua observação pela autoridade estatal competente. Além disso, entendem que o termo “proporcional” no contexto do inciso teria um efeito limitante. Em suma, o IDC considerou que o inciso utilizou “uma linguagem de quasi-tomada de decisão substituída com roupagem de tomada de decisão apoiada.”333

Tamanha resistência a uma linguagem minimamente curatelar tem fundamentos nos excessos observados no exercício do poder curare. IDC aduz que as leis de curatela e similares, ao invés de proteger as pessoas com deficiência de abuso, na prática aumentam as chances de abuso. A curatela e institutos de tomada de decisão substituída facilitam a institucionalização; curadores podem facilmente consentir na institucionalização mesmo quando a pessoa se opõe. Nestes regimes, “basta uma decisão judicial para que a pessoa perca o direito de determinar onde morar, de votar, de casar e de abrir um negócio. Tais privações resultam em um modo de vida humilhante e degradante.”334

        333

SCHULZE, Understanding The UN Convention on the Rights of Persons with Disabilities - A

Handbook on Human Rights of Persons With Disabilities, p. 90. 334