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Capítulo 2 – O jornalismo político

2.3 Novas e velhas tensões no jornalismo político

O jornalismo desempenha papel fundamental ao prover aos cidadãos informações necessárias para a elaboração de julgamentos informados sobre líderes políticos e para a participação efetiva no funcionamento do estado democrático. Porém, como destacam Barnet e Gaber, as mídias qualificadas não apenas transmitem como também descobrem informações relevantes. Agem como vigilantes do governo, sendo capazes de “inibir abuso do poder político”19 (2001, p. 1). Nesse sentido, Barnet e Gaber levam a compreender as notícias não apenas como uma coleção aleatória de informações, mas sim como um processo afetado por influências fluidas. Um dos aspectos dessa fluidez, no atual contexto de circulação de informação, é o acesso direto dos políticos ao público, sendo que “o conteúdo político pode ser transmitido diretamente para grandes audiências frequentemente sem passar pelas organizações noticiosas20” (BENNETT, 2012, p. 2). Em cenários como esse, a comunicação política moderna pode estar sendo cada vez mais minada, podendo inclusive ameaçar valores importantes nas sociedades democráticas (BARNETT; GABER, 2001).

São elencadas por Barnett e Gaber quatro pressões que afetam o jornalismo político. A primeira delas é a mudança na natureza do relacionamento com as fontes formais, hoje muito mais especializadas e também detentoras dos meios de informação. Para Estrela Serrano (2010) a comunicação política tem mudado radicalmente nas últimas décadas, substituindo as relações interpessoais entre políticos e jornalistas pela profissionalização e especialização em comunicação

19 No original: “inhibit abuse of political power”.

20 No original: “[...]political content can be transmitted directly to large audiences often without

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estratégica, por meio da qual os atores tentam influenciar o fluxo noticioso. Com o jornalista comprimido entre as pressões do mercado e a imposição das fontes, sobra pouco espaço para o exercício da criatividade e da apuração detalhista.

O impacto da propriedade de mídia está em segundo lugar, tratando especificamente de questões como pluralismo e concentração de mídia em poucas mãos, que acabam diminuindo a diversidade. Barnett e Gaber (2001) opõem-se, porém, a ideias conspiracionistas ou de que os meios são meramente agentes ideológicos a serviço das elites. Silva et. al (2015) sugerem, em análise estatística, a existência de correlação entre democracia e concentração de mídia, sendo os países mais democráticos menos propensos à propriedade concentrada dos meios de comunicação. No Brasil, estudo realizado pelo Media Ownership Monitor aponta que cinco empresas concentram mais da metade dos veículos de comunicação, num universo dos 50 principais veículos de televisão, rádio, jornal, revista e internet21. Citando a relação entre a mídia e o governo no Reino Unido, Bennett (2012) faz suposições que podem ser estendidas ao Brasil, sem prejuízo, em termos de mídia. O autor pondera que talvez tenha sido construída uma fortaleza para a informação, com apenas um muro, protegendo a imprensa da censura formal, porém deixando o sistema de informação vulnerável à degradação nas mãos de interesses comerciais. Nesse caso não há motivação para assumir um interesse social que esteja acima do comercial. Esse é um dos aspectos que fragiliza a conexão entre a informação política e a qualidade da democracia.

Nesse contexto, as novas mídias (blogs e sites independentes) têm sido instrumentos de descentralização da informação, permitindo que outras vertentes informativas ganhem destaque. Entretanto, o excesso de informação nas redes delega espaço para boatos e notícias falsas, especialmente sobre o espectro político, como mostra-se adiante.

Como terceiro elemento de pressão consta o crescimento sem precedentes nos meios de comunicação e o impacto desse aumento da concorrência no noticiário político. “O jornalismo sempre foi uma atividade competitiva, e os jornalistas políticos, em particular, sempre se orgulharam de sua capacidade de mergulhar em histórias "exclusivas" para descobrir novos ângulos ou perspectivas sobre histórias

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existentes22” (BARNETT; GABER, 2001, p.6). O que mudou foi o incessante

aumento, a partir dos anos 90, da quantidade de canais disponíveis para comentários sobre política. Menos tempo para apurar, mais material disponível para ser analisado. A disputa pela audiência foi intensificada. Os políticos passaram a impor condições para falar e, devido à competitividade, os meios acabam aceitando, pois caso não aceitem, a concorrência o fará. Essa postura afeta diretamente o consumidor de notícias. Uma das perspectivas dessa afetação é a hiperinformação. Para Sylvia Moretzsohn (2017, p. 295), a “‘era da informação’ induz ao aprofundamento da alienação pelo excesso de oferta” e a ideia de que todos teriam o mesmo poder de voz e influência virtualmente conduz “à mistificação que encobre as relações de poder, escancara as portas para a disseminação das chamadas ‘fake news’, instaurando um ambiente de absoluta insegurança informativa, com previsíveis consequências desastrosas”. Nesse caso, o próprio status do jornalista sobressai em relação a outros profissionais que atuam na rede, especialmente pelo acesso privilegiado a fontes oficiais integrantes dos poderes públicos.

Como quarta pressão aparece a mudança na natureza da profissão de jornalista. Mudaram as hierarquias, o uso de tecnologias e as condições de emprego. Entre as mudanças encontra-se a tendência da indústria midiática em “[...] militar contra uma cultura de reportagem que é reflexiva e desafiadora, e para uma que é apressada e conformista23” (2001, p.8). No Brasil, como identificado por Adghirni e Pereira (2011), o jornalismo passa por mudanças que são também estruturais e afetam as esferas profissionais, de identidade e legitimidade, mas também presenciam a “flexibilização dos valores-notícia e de questionamento sobre os métodos e parâmetros que balizam a produção de noticiário” (p. 39). As transformações no processo da prática jornalística perpassam pela multiplicação de conteúdos, redefinições de status profissional, integração das redação e das próprias práticas pela tecnologia. Adghirni e Pereira apontam que os atores ainda tateiam seu entorno na tentativa de chegar a modelos mais adequados de produção da notícia. Também por esses motivos, Barnett e Gaber (2001) apontavam já há algum tempo que a crise do jornalismo político no século XXI estava apenas no começo.

22 No original: “Journalism has always been a competitive activity, and political journalists, in

particular have always prided themselves on their ability to break ‘exclusive’ stories on uncover new angles or perspectives on existing stories”.

23 No original: “to militate against a reporting culture which is thoughtful and challenging, and

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Apesar da comunicação cada vez mais direta entre políticos e público, a diferenciação da informação jornalística pode se apresentar como uma das possibilidades para sair da “crise do jornalismo político” mencionada anteriormente. Despertar um jornalismo independente é o caminho visto por Lance Bennett como “a única esperança de informações regulares e confiáveis sobre o que aqueles no poder estão fazendo24” (2012, p. 4). Sem informações regulares e confiáveis advindas da mídia, a democracia enfraquece e o governo torna-se responsável por seu autopoliciamento, enfatizando suas próprias atividades por meio de seus relações públicas, propagandistas e spin-doctors. Para Moretzsohn, o combate ao comportamento irrefletido de disseminar notícias falsas “exigiria a articulação de ações presenciais e virtuais – por exemplo, escolas ou movimentos sociais que aliem contato direto e atuação nas redes para esclarecer a necessidade de se certificar da veracidade das informações que circulam e desfazer equívocos” (2017, p, 304).

Considerando a relação com a mídia como vital para a sobrevivência dos governos, Bennett destaca que a habilidade ou inabilidade do governo para produzir e controlar as notícias é uma parte importante para o “poder” de governar. Existe, portanto, uma batalha para influenciar jornalistas e organizações noticiosas, para relatar versões de eventos que favoreçam aspectos políticos particulares25” (2012, p. 12). Cabe, portanto, aos profissionais, estabelecer os limites e fazer a filtragem entre a liberdade da fonte para dizer o que bem entende e o direito do leitor de saber o que realmente importa.

Dentro de todo esse cenário envolvendo tecnologia, redes sociais, novas mídias, mudanças profissionais, prevalece a percepção de que “há menos hard news e mais soft news, e há menos reportagem sobre o governo e os políticos e mais sobre o caos social e o drama pessoal26” (BENNETT, 2012, p.24)”. Isso porque o público é bombardeado cada vez mais com inúmeras informações e encorajado a assumir um lado dentro de contextos não esclarecidos, nos quais a mídia oferece perspectivas restritas e o processo de hiperinformação predomina. A mídia providencia reportagens instantâneas, análises e comentários sobre o processo político enquanto ele ainda está em desenvolvimento. Nesse contexto, porém, há elementos que

24 No original: “the only hope for regular and reliable information about what those in power are

doing”.

25 No original: “to report versions of events that favor particular political sides”.

26 No original: “There is less hard news and more softnews, and there is less reporting about

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permanecem sendo essenciais ao jornalismo político. Bennet (2012) elenca uma série de critérios desejáveis em uma notícia política sob o ponto de vista democrático. São eles:

1. As agendas independentes de cada organização noticiosa deveriam proporcionar um ambiente de informação mais diversificado.

2. Oferecer vozes e pontos de vista diversos a partir de fontes credíveis fora dos círculos oficiais pode reduzir a síndrome do “inside the beltway” – a lacuna que as pessoas costumam sentir separá-las dos políticos que dominam o conteúdo das notícias.

3. Mais explicações sobre como as decisões políticas são tomadas e sobre como se conectar com organizações envolvidas podem ajudar as pessoas a se tornarem engajadas.

4. Oferecer um contexto histórico ajudaria a estabelecer as origens dos problemas nas notícias e limitaria a capacidade dos políticos de reinventar a história para seus interesses.

5. Ampliar a cobertura de cidadãos políticos – os ativistas – ajudaria as pessoas comuns a ver caminhos para o envolvimento pessoal e ouvir perspectivas diferenciadas pode ajudar a avaliar as informações oficiais de forma mais crítica.

6. Fazer melhor uso de tecnologias interativas pode criar relações entre as diferentes audiências e também entre organizações cívicas, o que pode estimular o aprendizado sobre questões específicas e muni-las para ações mais efetivas.

O problema é o vicioso círculo político no qual estão envolvidos o povo, os políticos e a imprensa. Segundo Bennett, o espaço para notícias sérias encolheu devido à crise econômica que afeta o jornalismo e com isso os atores políticos adotam estratégias desenvolvidas juntamente com profissionais da comunicação para capturar esse espaço para suas mensagens. Isso significa que a “comunicação pública” é fortemente moldada pelo uso do marketing e de persuasão “para organizar, roteirizar e divulgar notícias para seu efeito midiático mais dramático27” (2012, p. 147). O resultado desses dois estágios mencionados são notícias cada vez mais feitas por e para quem está dentro da política, o que acaba deixando o cidadão comum fora do cenário democrático ou incluindo-o via espaços alternativos, com informações de má qualidade, incorretas, imprecisas ou mesmo inverídicas. Com isso, são nutridas no público as sensações de desilusão com os dois lados: as notícias e a política.

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Esse fator atua de forma negativa também sobre o conjunto da sociedade, pois a reportagem política é relevante por permitir que por meio dela se estruturem os diálogos sociais sobre o poder. Para Beckett “o relato da política é a mais importante função do jornalismo28” (2008, p. 87). Sem tal relato, de que outra maneira seria possível estabelecer um debate político na comunidade? – questiona o autor. Apesar disso, não há em Beckett uma superestimação da tendência de se estabelecer uma “era de ouro” em que haja profundo engajamento e na qual público, políticos e mídia compartilhem de um espaço comum e igualitário. Para ele, tais perspectivas são mitos que exageram o poder da mídia e o grau em que a opinião pública está habilitada para agir como uma força democrática direta (BECKETT, 2008).

Os aspectos que envolvem democracia, política e jornalismo afetam diretamente a relação do jornalismo com a qualidade. É a esse tópico que o próximo capítulo leva.

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