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Capítulo 8 – Olhar o jornalismo com dados e teoria

8.1 O jornalismo político na cobertura do impeachment

Com base nos dados mostrados até aqui é possível afirmar que o jornalismo praticado, em termos gerais, está normativamente correto. Respeita o lead, utiliza-se da pirâmide invertida, noticia com base em fatos em desenvolvimento, utiliza fontes, possui linguagem clara e simples. Entre os elementos positivos, derivados da análise, está ainda a identificação de protagonistas e antagonistas, situando o leitor sobre quem é quem dentro do acontecimento noticiado. Entretanto, ao aprofundar o olhar na direção do conteúdo alguns problemas evidenciam-se, como mostrado adiante.

É notadamente reconhecido na literatura que o jornalismo mostra fragmentos da realidade, como disse Traquina (2005). Entretanto, os fragmentos do impeachment que apareceram foram demasiadamente pequenos, pois não ultrapassaram o acontecimento em si. A sessão do Congresso, a declaração do parlamentar, a fala de Dilma ou o discurso de Temer. As notícias soaram como repetições durante as três etapas, que tiveram procedimentos similares. Embora os procedimentos formais do processo fossem conhecidos de antemão, o jornalismo apenas esperou pelo acontecimento para noticiar da mesma forma, como se aquelas fossem as “novidades”. Esse cenário aliado ao fato de que houve um alto índice de notícias cujo foco centrou-se na descrição do processo indicia que há uma fragilização da qualidade, pois o formato descritivo/informativo proporciona menor atribuição de sentido aos acontecimentos. Na contramão da descrição simples, é a contextualização que agrega qualidade ao produto noticioso porque permite uma melhor compreensão da notícia, situando o leitor sobre antecedentes e consequências. A contextualização é um dos pontos fracos identificados na análise. E é nesse quesito que pode se

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vislumbrar a concretização da sensação que motivou a pesquisa, de estar lendo o mesmo conteúdo e a mesma abordagem em diversos jornais.

A narrativa é importante porque dá suporte para a compreensão dos antecedentes e para a vinculação entre o fato e a realidade do leitor. Como dito no Capítulo 4, o jornalismo brasileiro, após a profissionalização ocorrida no século XX, abandonou suas características opinativas, passando a privilegiar a estruturação da narrativa a partir da pirâmide invertida e com a utilização do lead para fornecer o mais importante primeiro, calcando-se essencialmente nos fatos. No VAP-A, os autores apontam que a pirâmide poderia ser considerada uma estrutura democratizadora da imprensa, já que ao tratar a informação de forma mais simples e estruturada do que ocorre nos artigos opinativos requer níveis mais baixos de preparação intelectual para a compreensão do conteúdo noticiado. Entretanto, o seu uso pode ser um dos paradigmas jornalísticos a serem superados, uma vez que, dentre os textos analisados as informações trazidas não vão muito além do que já está dito no lead. Além disso, tomar o leitor como eternamente ignorante, ainda que inconscientemente, não contribui nem condiz com o papel da mídia como fonte de conhecimento. Cabe pensar nisso em relação, por exemplo, ao jornalismo opinativo, marcado por não esconder a posição do jornalista ou da empresa em relação às pautas. Entretanto, no Brasil os jornais ainda se revestem com a capa da objetividade e da imparcialidade. Os textos transparecem que a preocupação é apenas de informar, em seu sentido mais estrito, sem preocupação em explicar os fatos. Desta forma, pode- se dizer que os jornais analisados também contribuem para o aspecto superficial da hiperinfomação dos cidadãos (MORETZSOHN, 2017). Como apontam Prudencio, Rizzotto e Sampaio (2018), o jornalismo praticado no impeachment se afasta desse ideal do século XX, calcado em fatos, e passa a centrar-se nos personagens, nas declarações e nos conflitos.

Quando Gomes (2009) afirma que, em suas bases ontológica e de compromisso com a verdade, o jornalista procura sempre utilizar todos os recursos para evitar o erro e o engano, por meio de processos de verificação e certificação, isto inclui um aspecto central do que pode ser considerado "erro jornalístico", que é a desinformação. Desinformação nesse caso não assume o sentido de falsa informação cujo objetivo é enganar o leitor, mas corresponde a uma ação que mesmo involuntária, ao suprimir informações ou minimizar ou esconder suas consequências, contribui para a informação deficitária do leitor.

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Relacionado a esse aspecto está o fato de as pautas terem sido apresentadas essencialmente sobre os mesmos critérios de seleção. A cobertura do processo de

impeachment se deu essencialmente pela ótica do Congresso e dos partidos políticos,

63,8% em média, centrados na perspectiva mais comum possível de cobertura, aquela originada por iniciativa das fontes em 66% dos casos, seguida de 24% de reprodução. Este resultado, somado ao uso excessivo de fontes oficiais públicas (34%), governamentais (11,7%) e não identificadas (variando de 18% a 30%) se converte em um alerta em relação à qualidade do jornalismo político praticado, uma vez que não permite identificar a existência de uma proposta informativa diferenciada por parte dos impressos, nem mesmo em um momento de competitividade intensa com os informativos virtuais que atualizam simultaneamente o leitor sobre o que está acontecendo. E especialmente em relação ao impacto do impeachment.

Trazendo para esse contexto o conceito de Amaral (2015), de que o papel do jornalismo ao cobrir grandes eventos ou catástrofes – exemplos aos quais um

impeachment pode ser comparado – é dar sentido aos acontecimentos, verifica-se um

movimento o oposto. O impeachment aparece, na maioria das vezes como um evento naturalizado, sem grandes impactos, não tirando a cobertura jornalística da rotina. A sensação de normalidade no processo permanece maior do que a de catástrofe ou de um grande evento ao se tomar contato com as notícias analisadas. Esse cenário se confirma especialmente na última semana de julgamento do processo, quando na maioria das notícias o impeachment aparece como um processo concluído, o presidente já é Temer e o julgamento de Dilma assume características apenas de formalidade diante de decisões que já estão tomadas. Essa percepção aparece também em Prudencio, Rizzotto e Sampaio, identificando que após o afastamento de Dilma, em maio de 2016, Temer e aliados são os que mais “recebem atenção do noticiário, sugerindo a legitimação e normalização do acontecimento” (2018, p. 23). Muitas das matérias estamparam placares com números de votos contra e a favor. E utilizaram, sobretudo, as fontes não identificadas, que descredibilizam o texto. Segundo preceitos citados por Kovach e Rosenstiel (2003), como o da transparência, demonstrar como a informação foi obtida permite que o público possa julgar a validade da informação e que o profissional esteja protegido em caso de erro ou engano da fonte. Entretanto, tais preocupações não aparecem nas publicações analisadas. As informações advindas de fontes pessoais foram em sua maioria dadas publicamente, veiculadas em mais de um jornal ou vieram de declarações oficiais dos

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envolvidos no processo. Além, é claro, das declarações anônimas. E, neste sentido, a identificação da motivação do anonimato, sobre o porquê de a fonte escolher se ocultar também é ignorado. E, embora teoricamente tais fontes devessem ser utilizadas somente quando essenciais para a compreensão do texto, sua presença é majoritária, especialmente quando se trata de falar sobre os comportamentos privados e sentimentos da presidente em relação ao processo. Pode-se afirmar que nenhuma das informações fornecidas anonimamente foram cruciais para que a informação fosse apreendida ou que tenham tido relevância em relação à compreensão do contexto do processo. Por isso constituem-se em fontes que podem ser desprezadas, na perspectiva de Carlson (2011).

Derivada dessa situação de grande dependência das fontes institucionais, há uma baixa utilização de fontes especializadas, que poderiam explicar os acontecimentos a partir de perspectivas não relatadas por aqueles diretamente envolvidos. Essa dependência demonstra a necessidade de novas práticas nas quais os profissionais não se limitem a repetir ou transcrever em seus textos o que as fontes dizem, mas que possam inserir análise sobre as suas declarações. Lembrando que análise nesse caso não é o mesmo que opinião. Trata-se de reflexão a respeito de declarações e seus contextos éticos, morais, legais, por exemplo. Ao fugir das perspectivas oficiais os jornais poderiam fortalecer um de seus aspectos centrais: a responsabilidade social como um dos pilares da democracia.

Além disso, a similaridade entre as notícias dificulta a criação de vínculos que possam fidelizar o leitor, pois ler a notícia em um jornal ou outro significa ter acesso à mesma informação, com praticamente o mesmo grau de profundidade, sem diferenças ou novidades significativas. O discurso do interesse público, que ajudou o jornalismo a se firmar em relação à sua legitimidade social, no entanto, não aparece nas notícias analisadas uma vez que os jornais se eximem, como comprova a análise do corpus, do debate público e priorizam o debate oficial que se torna público embora pouco tenha de sua participação.

Pensando em termos das teorias do jornalismo, especialmente a construcionista, pode-se dizer, sim, que a cobertura realizada ajuda a construir a realidade. Porém, privilegiou uma cobertura simplista, pautada pelas fontes e que demonstra uma realidade descolada da sociedade em geral, como se o problema pertencesse apenas ao clero político. O que se chama de cobertura simplista aqui pode estar relacionada também com a falsa vidraça da objetividade levantada pela Teoria

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do Espelho: contar os fatos. E só. Entretanto, nessa mesma perspectiva do construcionismo, os jornais falham ao trazer o impeachment para o campo da significação, da identificação social e da contextualização. É neste ponto que os argumentos de Bennett (2012), mesmo referindo-se à Europa, encaixam-se nos resultados encontrados. Ao tentar prevenir o viés com o uso excessivo da objetividade, os jornalistas criaram condições que favoreceram a divulgação das perspectivas oficiais.

O jornalismo na condição de prática social, que reflete e é também reflexo dos movimentos sociais, especialmente os políticos, legitimou-se como um espaço de debate público em defesa dos interesses de suas audiências. Entretanto, mais do que fornecer o que a audiência quer, as boas práticas indicam a necessidade de fornecer também o que ela precisa (CHRISTOFOLETTI, 2010). No seu percurso de legitimação social, o jornalismo recebeu a alcunha de Quarto Poder, como aquele que fiscaliza e promove um contra-argumento às versões oficiais, checando, contrapondo, confirmando ou desmentindo. Quando, na cobertura do processo de

impeachment, o jornalismo se deixa guiar pelas versões oficiais e as reproduz, acaba

abdicando de seu papel de investigador e fiscalizador independente dos demais poderes, que o fez ser reconhecido como Quarto Poder.

Considerando que o conceito liberal de democracia prevalecia no Brasil durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, pressupondo um sistema político em que ao menos as liberdades individuais de grupos ou indivíduos sejam respeitadas e que ocorram eleições livres e justas, a acusação de risco à democracia deveria receber algum destaque. Quando parte da sociedade (autoridades, eleitores, pesquisadores) afirma que o impeachment é na verdade um novo formato de golpe, hoje não mais militar, ou um processo que coloca em risco uma democracia recente como a brasileira, tais temas mereciam ser discutidos de forma abrangente em alguma das principais notícias sobre o processo, o que não ocorreu.

Para além da ausência de algumas pautas, outro aspecto gritante em relação à democracia é a ausência do cidadão comum. Se a mídia constitui, como disse Lattman-Weltman (2003), uma instituição decisiva para a qualidade do exercício da cidadania, o consenso demonstrado na cobertura e a ausência de elementos simbólicos e cognitivos decisivos para as escolhas do leitor apontam fraquezas diante de tal papel. A percepção limitada de que o papel democrático do jornalismo é apenas fornecer informações objetivas e ser um cão de guarda, como disse Neveu (2002),

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evidencia-se nesse caso, pois, que a cobertura se exime do papel de dar sentido à política e aos problemas que possam ter sido apontados pelos diversos grupos sociais. Como demonstrado na análise quantitativa, os interesses dos cidadãos em relação ao processo não aparecem e a presença de contextualização é praticamente nula.

Já Brian McNair (2009) traz outras questões para pensar o papel do jornalismo como instituição que impacta na democracia, como monitorar o poder e o olhar sobre a responsabilidade do governo com o povo que os elegeu. E, nesse aspecto, as profundas diferenças entre os planos de governo de Dilma Rousseff e Michel Temer estão entre os elementos que poderiam ter sido trazidos à tona pela cobertura. Deveria haver, como indica McNair, uma mediação entre cidadãos e os políticos. O preceito teoricamente ideal seria fazer a voz do público ser ouvida pelos decisores. O público ouvido, porém, não é o cidadão “comum”. Nos jornais analisados, políticos falam para políticos71.

O embate entre uma política “real” e uma política “ideal” também circunda o processo, especialmente nos discursos políticos proferidos pelos congressistas como justificativa de seus votos, como exemplificado na contextualização do processo, no início desta pesquisa. A relação entre o sistema de mídia e o sistema político pode auxiliar no debate de algumas questões. A perspectiva do pluralismo-polarizado (AZEVEDO, 2006) transparece no momento em que o jornalismo evidencia a narrativa do impeachment pela ótica do conflito. Entretanto, os elementos como os interesses ideológicos e econômicos que não são considerados por Azevedo como fatores centrais ao sistema midiático brasileiro, talvez mereçam reconsideração. Albuquerque (2012), por outro viés, acredita que os meios são ativos diante de questões políticas somente na condição de representantes dos anseios da população, antes do que de pontos de vista particulares. Entretanto, no jornalismo analisado não é possível saber qual o interesse ou o anseio popular em relação ao impeachment, à troca de governo ou mesmo a questões relacionadas com possíveis consequências do processo. Ainda que o contexto midiático brasileiro se encaixe no modelo pluralista- polarizado, em alguns quesitos somente uma análise focada e aprofundada entre conteúdo e teoria poderiam fornecer elementos mais conclusivos da relação sistema midiático-sistema político no Brasil.

71 Não se pode ignorar que as redes sociais possibilitam hoje um acesso direto do político ao eleitor.

Onde suas mensagens são recebidas sem os filtros da imprensa. Entretanto, tal contexto não justifica a ausência total do público “comum” no jornalismo analisado.

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O jornalismo praticado indica que a relação entre a qualidade jornalística e seu impacto na democracia pela formação de cidadãos bem informados carece de olhares científicos mais aprofundados e constantes. As mídias tradicionalmente tomadas como de referência assim como as regionais aqui estudadas apresentam fraquezas nos quesitos centrais à qualidade da informação que levariam a uma qualificação maior do cidadão para agir diante dos processos democráticos. Nesse sentido, pode-se dizer que permanece o desafio colocado por Cook (2011) de que o jornalismo precisa superar o papel de apenas reforçador do poder existente.

O que se pode propor inicialmente é um exercício de fuga consciente, quando a pauta assim o pedir – uma habilidade do profissional e que vai além da mera aplicação da técnica. Também faz-se necessário refletir sobre a prática da notícia breve, como aponta Cristina Ponte (2005), para que se possa superar a ideia de que tais informações são suficientes e de que o saber prático é a única oferta do jornalismo.