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Capítulo 2 – As Propostas de Saúde Neoliberais e as Agências Internacionais

2.3. O novo universalismo para o século XXI

Com a eleição para a direção da OMS da ex-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland em 1998, a instituição ganharia uma peça-chave para a reconstrução de sua credibilidade e influencia no mercado de ideias para a saúde. O quadro de profissionais escolhidos pela nova direção eram ligados ao BM e filiados às propostas neoliberais no setor. Para Almeida (2014), sem dúvida alguma, o principal profissional contratado pela OMS foi Julio Frenk.

A partir da década de 1990, a OMS acompanha as movimentações do BM na formalização de políticas e propostas no campo da saúde para os países pobres ou em desenvolvimento, incluindo em sua pauta, o denominado “novo universalismo”. As duas instituições multilaterais trabalharam juntas na elaboração do documento intitulado Informe sobre la salud em el mundo 2000: mejorar el desempeño de los sistemas de salud (OMS, 2000). Esse documento teve como objetivo principal avaliar os sistemas de saúde em todo o mundo com critérios de relação custo-efetividade dos serviços oferecidos – tanto os serviços públicos quanto privados.

Segundo Matta (2005, p.388), a publicação do Informe de 2000 foi de fortalecer a instituição, colocando-a em destaque junto ao BM “como autoridade técnica e política para orientar e conduzir os processos de saúde globais”.

Para Fausto e Matta (2007) e Lima (2014), o Relatório de 2000 trouxe para a OMS o discurso amplamente discutido pelo BM de revitalização do papel do Estado. De acordo com os autores, a OMS propôs uma “boa gestão” dos sistemas de saúde através da minimização dos serviços prestados pelo Estado no campo da saúde. Contudo, a proposta não prescrevia apenas aos Estados nacionais que assumissem um conjunto mínimo de ações focalizadas nas camadas mais pobres, mas sim, de que o próprio deveria seguir responsável por um conjunto de serviços de saúde essenciais de alta qualidade e oferecidos para toda a população. Sendo assim, a concepção de saúde enquanto direito de cidadania foi excluída no documento, em seu lugar foi maximizada a perspectiva da seleção de serviços e ações que caberiam ao Estado realizar.

De acordo com Lima (2014):

Ajustar a função do Estado à sua capacidade se traduz, na área da saúde, pela construção de um sistema de saúde eficiente baseado no “novo universalismo” e na expansão da capacidade de pagamento do conjunto da população, inclusive dos pobres, por meio da ampliação dos planos de pré-pagamento como forma de proteger toda a população contra os custos financeiros da enfermidade (LIMA, 2014, p.244).

Logo em suas primeiras páginas o Relatório de 2000 (OMS, 2000), apresenta três conclusões: 1) vários países analisados quanto aos gastos públicos em saúde demonstraram péssimos resultados, afetando principalmente a população mais pobre; 2) os desafios para os países pobres ou em desenvolvimento é de promoverem políticas públicas que reduzam ou minimizem os gastos diretos na saúde; e 3) os ministérios da saúde de grande parte dos países devem reiterar ações e políticas de fortalecimento dos sistemas privados e do terceiro setor, buscando aproveitarem-se das contribuições de cada um para melhorarem seus sistemas nacionais de saúde (OMS, 2000, p.viii-ix).

Seguindo com a leitura do Relatório de 2000, a OMS apresenta algumas distinções entre o “universalismo clássico” e a sua mais recente proposta, o “novo universalismo”. O universalismo clássico surge com a emergência e o desenvolvimento dos Estados de Bem-Estar Social nos países da Europa Ocidental, ou seja, com a universalização da seguridade social, e em consequência direta, à institucionalização de sistemas públicos universais de saúde (OMS, 2000).

Com as profundas mudanças políticas e econômicas no mundo a partir da década de 1970, foi se estabelecendo uma nova forma e visão sobre um “novo universalismo”. Rejeitando-se as propostas anteriores da possibilidade de que os Estados nacionais possam oferecer a todos os cidadãos serviços de saúde, o novo universalismo é uma proposta de que ao Estado cabe à oferta de um amplo conjunto de serviços essenciais de alta qualidade, os quais devem ser dirigidos para todos os cidadãos, respeitando os limites de atuação e de financiamento dos governos. Em outras palavras, a escolha dos serviços oferecidos será observada pelo custo-efetividade de cada ação (OMS, 2000).

Ao aliar suas propostas em conjunto com o BM, a OMS reconheceu de que não é possível ofertar a todos os cidadãos, todas as intervenções de saúde, alinhando-se assim ao discurso pregado pelo BM, de que os serviços de saúde devem ser ofertados tanto pelo Estado como pelo mercado. Sob a égide neoliberal, os pacotes de serviços de saúde essenciais denotam uma nova agenda de propostas de reformas aos sistemas nacionais de saúde, com a perspectiva de prestar serviços de saúde mais eficientes em termos de custo e mais eficaz no combate à pobreza.

Portanto, o novo universalismo estaria ligado por uma interpretação da privatização da saúde por completo, ou seja, desde o controle dos fundos de pensões públicos pelo capital financeiro até a expansão (patrocinada pelo Estado) dos seguros privados de saúde como

alternativa viável ao sistema público, ou seja, “refere-se aos propósitos da mercantilização da saúde em todo lugar em que possa gerar lucros” (LIMA, 2014, p.241).

Ao comparar os diferentes sistemas de saúde a OMS também logrou utilizar-se de instrumentos que fogem à realidade social, política e cultural de cada país-membro, contribuindo assim para a abertura de críticas aos seus resultados.

De acordo com Almeida et al. (2001), a análise apresentava além de problemas conceituais, problemas de ordem metodológica. Para os autores, dados necessários para calcular os novos indicadores de desempenho formulados pela agência internacional estavam ausentes para 70-89% dos países analisados.

Para Viacava et al. (2004, p.715), à falta de dados sobre o setor saúde de vários países levou “à adoção de métodos econométricos, pouco transparentes e de difícil compreensão pelos gestores, para estimar os dados da maioria dos países”, prejudicando em muito a qualidade dos indicadores criados pela OMS. Ainda para Travassos e Buss (2000, p.89):

Avaliar sistemas de saúde não é tarefa simples, principalmente quando o objetivo é comparar realidades distintas, como os sistemas dos países membros e a recente contribuição da OMS é bastante criticável. Utilizou um índice de desempenho novo e complexo, mas que, foi desenvolvido de forma hermética e não compartilhada com os países membros, sem que as bases conceituais e metodológicas deste estivessem acessíveis até a data da divulgação dos resultados. O relatório tem como referência um modelo particular de sistema de saúde, o qual questiona as políticas de saúde universalistas, consideradas de baixa efetividade.

Ao inserir novos indicadores de mensuração de custo-efetividade, a OMS assemelhou-se ao BM na formalização de critérios econométricos para analisar os sistemas de saúde.

Em 2008, ano em que se comemorava o 60º aniversário da OMS e o 30º aniversário da Declaração de Alma-Ata, a OMS lançou o relatório “Cuidados de Saúde Primários – agora mais que nunca” (OMS, 2008). De acordo com a OMS (2008, p.ix), quatro conjuntos de reformas devem ser realizados pelos sistemas de saúdes:

1. Reformas da cobertura universal que garantam que os sistemas de saúde contribuam para a equidade em saúde, justiça social e o fim da exclusão, apontando primordialmente para o acesso universal e a proteção social da saúde. 2. Reformas na prestação de serviços que reorganizem os serviços de saúde em torno das necessidades e expectativas das pessoas, de forma a torna-los socialmente mais relevantes e mais capazes de responder ao mundo em mudança, ao mesmo tempo que produzem melhores resultados.

3. Reformas de políticas públicas que garantam comunidades mais saudáveis, integrando ações de saúde pública com cuidados primários, seguindo políticas saudáveis em todos os setores e ampliando intervenções de saúde pública nacionais e transnacionais.

4. Reformas de liderança que substituam uma dependência desproporcionada entre, por um lado, comando e controle, e por outro, o laissez- faire descomprometido do Estado, por uma liderança inclusiva, baseada em negociação e participação mais adequada à complexidade dos sistemas de saúde contemporâneos.

A leitura permite afirmar que o discurso da OMS não se alterou desde o lançamento em conjunto com o BM do Relatório de 2000. O novo universalismo ou o novo conceito de “cobertura universal de saúde” foi amplamente discutido no documento, apontando que a expansão dos serviços de saúde se daria pela expansão da proteção social mercantilizada, ou seja, pelo aumento substancial de fundos comuns e de mecanismos de pré-pagamento, em uma substituição aos pagamentos diretos (OMS, 2008).

Parte-se do mesmo argumento anterior, de que a garantia de acesso aos serviços de saúde não deve ser necessariamente garantida pelo Estado. Como bem destaca Lima (2014):

Esse tipo de reforma, ao incorporar a ideia de responder às demandas, trata cada vez mais de possibilitar o acesso dos pobres aos serviços de saúde por meio de subsídios, em especial mediante o financiamento privado de seguro e/ou planos de pré-pagamento, em diferentes graus a depender do país, e não somente pela prestação de serviços pelo poder público (LIMA, 2014, p.247).

Finalmente, o Relatório Mundial da Saúde de 2010, intitulado “O Caminho para a Cobertura Universal” (OMS, 2010), resgata novamente as mesmas propostas de reformas para os sistemas de saúde.

Para a OMS (2010), bons resultados no setor saúde só poderão ser atingidos definitivamente por políticas de financiamento bem estruturadas. A solução passa novamente pelo desenvolvimento de sistemas alternativos de financiamento da saúde, o que em último aspecto, repercutirá em uma cobertura universal em saúde.

De acordo com a OMS (2010):

Há evidência abundante que demonstra que o angariar de fundos através da obrigação de pré-pagamentos é a base mais eficiente e mais equitativa para aumentar a cobertura populacional. De fato, tais mecanismos significam que os ricos subsidiam os pobres, e que os saudáveis subsidiam os doentes. A experiência mostra que esta abordagem funciona melhor quando o pré- pagamento provém de um grande número de pessoas, resultando na subsequente agregação de fundos para cobrir os custos de cuidados de saúde para todos (OMS, 2010, p.xi-vii)

Segundo a OMS (2010), as famílias pobres arcam, mais frequentemente, com altos custos diante de doenças, em casos abruptos, levando à catástrofes econômicas e sociais. A principal barreira à cobertura universal é representada, de acordo com a OMS, pelos altos pagamentos diretos (em inglês out-of-pocket) feitos pelos mais pobres e também por pessoas que possuem algum tipo de plano ou seguro de saúde. Enfatiza o documento de que para se alcançar à cobertura universal os países devem providenciar uma diminuição das dependências dos pagamentos diretos realizados pela população, introduzindo medidas de contenção do financiamento direto dos serviços de saúde, melhorando assim a equidade e a eficiência de seus sistemas nacionais. A própria OMS admite que para os países pobres não é realisticamente possível uma cobertura universal em um curto prazo de tempo sem contar com o apoio externo de agências internacionais.

Algumas estratégias são descritas pela OMS como imprescindíveis para a realização da cobertura universal: 1) aumento da eficiência da receita fiscal; 2) redefinição das prioridades dos orçamentos governamentais; 3) estimular a criação de mecanismos inovadores de financiamento; 4) promover o desenvolvimento para a saúde através da ajuda internacional (OMS, 2010).

Entre os doentes e os saudáveis ou mesmo entre os pobres e ricos, a OMS (2010) demonstra um apelo feito pela solidariedade social no campo do financiamento à saúde. A recomendação da OMS é de que populações jovens e saudáveis financiem através de contribuições o sistema de saúde, para que ao chegarem à idade adulta possam usufruir regularmente dos serviços de saúde. Em síntese, defende-se assim, a esfera da partilha de riscos e de pré-pagamento, modalidades únicas para se chegar à cobertura universal.

Aos pobres e desassistidos, a OMS (2010, p.xvii) sugere, como em documentos anteriores, o subsídio governamental. As contribuições devem ser obrigatórias para que ricos e pessoas saudáveis não possam se exonerar do financiamento, o que o tornaria insuficiente a longo prazo.

Segundo a OMS (2010), os fundos que protegem poucas pessoas e mesmo a fragmentação e concorrência entre eles podem acarretar problemas diversificados:

Em terceiro lugar, os fundos comuns que protegem as necessidades de saúde de pequenos grupos de pessoas não são viáveis a longo prazo. Uns poucos episódios de doença mais caros podem levar ao seu colapso. Múltiplos fundos, cada um com a sua administração e sistemas de informação, são também ineficientes e tornam difícil a meta da equidade. Normalmente, um dos fundos providenciará elevados benefícios a pessoas relativamente saudáveis, que não quererão subsidiar os custos dos mais pobres e menos saudáveis (OMS, 2010, p.xviii).

No campo da eficiência, são inseridas cinco propostas genéricas: 1) obter o máximo de rendimento das tecnologias e serviços de saúde; 2) motivar os trabalhadores de saúde; 3) melhorar a eficiência hospitalar; 4) obter os cuidados corretos no primeiro contato, para redução do erro médico; 5) eliminar o desperdício e a corrupção; e 6) avaliar de modo crítico que serviços são necessários (OMS, 2010, p.xx).

A conclusão da OMS (2010), é de que não existe uma possibilidade única para se chegar à cobertura universal, o desenvolvimento de amplas possibilidades já estabelecidas por países desenvolvidos pode ser utilizado pelos países pobres e em desenvolvimento para se ampliar ou garantir a proteção dos ganhos previamente adquiridos em seus sistemas de saúde. A agência internacional defende ser possível através da criação de fundos adicionais e com a diversificação das fontes de financiamento, além do estabelecimento de pré-pagamentos e da constituição de fundos comuns, assegurar que as despesas de saúde e dos pagamentos diretos não se aglutinem e ao longo do tempo se agravem, impossibilitando à cobertura universal de saúde.

2.4. Conclusões do capítulo

Devem ser reiteradas criticamente algumas considerações acerca dos relatórios elaborados pelo BM e pela OMS. Em um primeiro momento, ao conceito restrito sobre a universalidade e equidade, ambos relacionados apenas aos fundamentos mercadológicos, onde predomina-se constantemente os mecanismos economicistas de demanda e oferta dos serviços de saúde. Além disso, a equidade é definida pelas agências internacionais como meramente uma proteção financeira para os desassistidos.

Em específico aos países da América do Sul, o direito à saúde está previsto em suas Constituições Nacionais. Assim como o Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Suriname e Venezuela também mencionam o direito à saúde como responsabilidade do Estado. Outros países não mencionam a saúde como um direito constitucional, mas por meio de leis expressam tal definição, é o caso do Uruguai, o qual no ano de 2007 apresentou o direito a saúde em sua Lei de Criação do Sistema Nacional Integrado de Saúde (SINS) (GIOVANELA et al., 2012).

O direito à saúde nos países citados é prevalecido pela ação do Estado, de forma universal, independentemente da capacidade de pagamento de seus cidadãos. O caso mais elucidativo é do Brasil, através do seu Sistema Único de Saúde (SUS), onde o financiamento é feito através de tributos e contribuições federais, estaduais e municipais. Apenas como exemplo, de acordo com a OMS (2015), os gastos totais em saúde no Brasil são 9,7% do PIB, contudo, mais da metade (51,8%) são gastos de ordem privada, ou seja, o SUS é subfinanciado, acarretando graves problemas em sua gestão. Sendo assim, eventuais subsídios ao mercado de serviços de saúde privado deslocariam recursos destinados em melhorar o sistema de saúde público brasileiro.

Inúmeros autores (Santos, 2013; Soares e Santos, 2014; Bahia, 2009; Noronha, Santos e Pereira, 2010; Ocké-Reis, 2012 e Marques e Mendes, 2014), destacam que a ampliação de mercados privados de saúde no Brasil colaboraria de forma intensa no avanço de inequidades no SUS e pioraria ainda mais a distribuição do gasto público direto e indireto para os estratos baixos e médios de renda.

A proposta de cobertura universal de saúde pode ser vista por uma série de limites sociais, econômicos e culturais, os quais estão fora do raio de ação de políticas públicas para o setor saúde. Além disso, obstáculos políticos e técnicos devem ser levados em conta quanto ao processo de implementação do financiamento através de fundos únicos ou de subsídios cruzados em países pobres ou em desenvolvimento.

A análise feita pelas agências internacionais através de indicadores se mostrou muito importante no aspecto de criar uma determinada base primária para mensurar à saúde. Entretanto, muitos países, principalmente os periféricos, não apresentam muitas informações do setor, muito menos indicadores robustos que determinem as necessidades e características de suas respectivas populações, afetando-se assim, os estudos empíricos, tanto pela qualidade da informação como pelo provimento de políticas de saúde adequadas.

Países que optaram sumariamente pela cobertura universal de saúde aos modelos propostos pela OMS e pelo BM não podem ser considerados como resultados sólidos, uma vez que a Colômbia (caso analisado neste trabalho) ainda demonstra uma experiência inconclusiva em seu sistema nacional de saúde.

Finalmente, um questionamento pode ser feito através da leitura dos documentos das agências internacionais é da clara intenção de que o setor privado amplie sua participação nos mercados de seguros e planos de saúde. Contudo esta presença é pormenorizada nos documentos, suscitando um debate acerca dos objetivos das agências internacionais em ofertar ideias ao setor saúde.