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3. GRAMATICALIZAÇÃO DO VERBO

3.3 PROPOSTAS REFERENTES AO VERBO CHEGAR

3.3.5 NUANÇAS SEMÂNTICO-PRAGMÁTICAS DO ASPECTO GLOBAL

Tavares (2005, 2008) apresenta uma proposta para a categorização funcional de verbos como PEGAR, CHEGAR, IR e VIRAR na perífrase [V1 (E) V2] que combina algumas das classificações correntes na literatura. A autora descarta, porém, a possibilidade de considerar tais verbos, nessa perífrase, como marcadores de aspecto inceptivo. O aspecto inceptivo traz indicações acerca do início de algum evento (ação, processo, estado) e, especificamente no caso do verbo PEGAR, segundo Merlan (1999), teríamos um aspectual que exprime o início imediato da ação concretizada pelo segundo verbo, isto é, um verbo que codifica não apenas a fase inicial de uma ação, mas também o fato de esse início ter-se dado de modo instantâneo. Ou seja, em contraste com alguns verbos marcadores de aspecto inceptivo que se referem ao momento inicial de uma ação de um modo mais neutro, como em João começou a falar e João passou a falar, PEGAR seria empregado para referir o início repentino de uma ação.

Outros aspectuais, dependendo do contexto de uso, podem fazer semelhante referência, como em João principiou a falar e João desandou a falar.

O aspecto inceptivo está relacionado ao aspecto imperfectivo, como um de seus subtipos (cf. CASTILHO, 2002). O imperfectivo codifica o evento não como um todo único, e sim como não delimitado temporalmente, fazendo referência à sua estrutura interna, o que envolve a referência a uma fase específica desse evento – início, duração, conclusão. O inceptivo, por exemplo, dá destaque à fase inicial do evento (João começou/passou/principiou/desandou a falar), em oposição à fase de duração do evento (aspecto cursivo, como em João continuou/ficou/veio/esteve falando) e à fase de conclusão do evento (aspecto terminativo ou cessativo, como em João parou/acabou/deixou/terminou de falar).

A razão do descarte da possibilidade de que IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR, na perífrase [V1 (E) V2], indiquem aspecto inceptivo é que, em nenhuma das ocorrências analisadas por Tavares (2005), há focalização apenas nos momentos iniciais de um evento. Em todos os casos, o evento é codificado como um todo indivisível, pontual, isto é, sem um destaque especial para uma de suas etapas – propriedades típicas do aspecto perfectivo. Esse todo é que é apresentado, pelo falante, como tendo ocorrido de modo súbito, inesperado. Observemos alguns exemplos com o verbo PEGAR fornecidos por Tavares:

(a) Não queria esperar. E eu sei que quando ela correu, correu, correu- Quando ela chegou lá, lá perto do ônibus, o motorista pegou e foi embora, deixou ela sozinha. E ela com a maior vergonha e todo mundo rindo da cara dela lá no meio da rua e ela sem graça, aí foi isso, sabe? (F., Rio de Janeiro,

Corpus D&G)

(b) Estávamos eu e ele no gol. E eu estava na corrida e ele no gol. Eu peguei e dei-lhe uma porrada. Ele botou o pé na bola assim e torci o pé dele. (R, Florianópolis, Banco VARSUL)

(c) De tanto que o cara decora aquilo ele já se começa sabendo. Só que eu não. Eu pego e estudo pra prova. Depois da prova eu já não sei mais nada. (R, Florianópolis, Banco VARSUL)

A classificação de PEGAR como verbo indicador de aspecto global, proposta por Bechara (2004) com base em Coseriu, parece servir, portanto, para o uso sob enfoque, pois esse aspecto indica a totalidade de um evento, tornando irrelevantes suas fases de desenvolvimento. Verbos como tomar, pegar, agarrar em perífrases como pego e escrevo,

agarro e escrevo, tomo e escrevo, segundo Bechara, acentuam a visão global, e disparam, em seus contextos de uso, significações como “rápido”, “inesperado”, “surpreendente”, “decidido”, ou seja, matizes semântico-pragmáticos típicos da codificação de eventos vistos pelo falante/escritor como globais.

IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR, na perífrase [V1 (E) V2], codificam lingüisticamente

[...] matizes de significado ligados a contextos de interação em que tipicamente ocorre a manifestação do aspecto global, disparando indicações semântico-pragmáticas relacionadas ao plano do repentino e/ou do surpreendente. (TAVARES, 2008, p. 3)

Segundo Tavares, o aspecto global, por apresentar o evento denotado por um segundo verbo como súbito, inesperado, pontual, relaciona-se, talvez como um subtipo, ao aspecto perfectivo, caracterizado como temporalmente delimitado, compacto, de fronteiras nítidas, com forte associação com o passado. Um aspectualizador global como CHEGAR, ao codificar nuanças semântico-pragmáticas ligadas ao caráter repentino de um evento, acrescenta traços de perfectividade ao verbo principal da perífrase [V1 (E) V2] ou então os intensifica, no caso de este já os manifestar através de seu significado lexical – Aktionsart – e/ou de marcas morfológicas de aspecto perfectivo que porta (no caso do português brasileiro, as marcas indicadoras de pretérito perfeito do indicativo, por exemplo).

Em geral, o emprego de IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR como aspectualizadores, além de fornecer indicações acerca do caráter repentino, súbito, veloz, do evento denotado por V2, permite a inferência de que o falante/escritor vê a ocorrência desse evento com surpresa/espanto, frustração/lamento ou mesmo irritação/crítica. Ou seja, Tavares, embora discorde de Merlan (1999) quanto à natureza do aspecto codificado por PEGAR, concorda que esse verbo, dependendo do contexto, pode indicar espanto (o que também é apontado por Bechara), irritação ou lamento por parte do falante/escritor.

Tavares (2005, 2008) observa ainda que, em certos contextos, é possível perceber que o falante/escritor sinaliza, através do uso da construção perifrástica sob estudo, que há uma tomada de iniciativa por parte do participante agente (no papel sintático de sujeito da perífrase) para concretizar o evento em causa. Esse agente toma a iniciativa (em geral súbita) de fazer algo e imediatamente o faz, sendo essa informação codificada, através da perífrase [V1 (E) V2], em um bloco único, o que ressalta o caráter global do evento. Em seu dicionário,

Borba (2002) apresenta ‘tomar iniciativa’ entre os significados do verbo PEGAR, e fornece dois exemplos: “mãe pegou e deu uma surra no garoto”, “Vê uma placa assim: “não cuspa no chão”, brasileiro pega e cospe na placa”. Contudo, nem sempre é possível atribuir tomada de iniciativa ao referente do nome que desempenha o papel de sujeito na perífrase [V1 (E) V2]. Tomemos alguns exemplos, provenientes de Tavares (2008): “Todo mundo votou no Tancredo. O Tancredo vai e morre, aí fica o Sarney para bagunçar toda a economia.”, “Aí o guri pegou ficou com medo” e “A primavera pega e começa no dia 20 de setembro.”

A autora conclui afirmando que, uma vez que verbos como IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR se tornem codificadores de aspecto global, matizes pragmáticos ligados à indicação desse aspecto (como surpresa ou frustração frente ao evento repentino) são incorporados ao conjunto de relações passíveis de serem sinalizadas através da construção [V1 (E) V2]. No português brasileiro contemporâneo, esses verbos ressaltam um leque de nuanças semântico- pragmáticas como o caráter repentino, instantâneo ou até brusco do evento referido pelo verbo principal da construção, e/ou a tomada de iniciativa (súbita) do agente (no papel sintático de sujeito da perífrase), e/ou avaliações subjetivas que vão da surpresa à frustração. Revelam, portanto, como o falante/escritor percebe e apresenta ao ouvinte/leitor circunstâncias ligadas à realização do evento referido por um verbo principal. Essas nuanças se sobrepõem em graus variados a cada ocorrência, e podem, a princípio, ser enquadradas sob o rótulo de aspecto global.

É esta última perspectiva que adotamos em nossa pesquisa. Descrevemos e analisamos propriedades semântico-pragmáticas e morfossintáticas das construções coordenadas e perifrásticas em que CHEGAR é o primeiro verbo (V1), e inferimos dessas propriedades indícios de um possível percurso de gramaticalização que tem como ponto de partida a construção coordenada e como ponto de chegada a construção perifrástica em que CHEGAR indica aspecto global.

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