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Nutrição, saúde e desigualdade Em termos absolutos, o perfil de nutrição wari’, bastante comprometido,

reflete a precariedade de suas condições de vida. A gênese de sua sujeição a essas condições, social e historicamente determinada, conduz à dimensão relativa de sua situação, ou seja, ao fato de que a população enfrenta condições ‘particularmente’ adversas, no contexto mais amplo da população brasileira, e conseqüentemente apresenta um perfil nutricional ‘comparativamente’ mais comprometido. Os dados antropométricos infantis evidenciam o grau de desigualdade entre os segmentos indígena e não-indígena da população brasileira: entre os Wari’, a prevalência de baixa estatura para a idade (62,7%) é seis vezes mais elevada que a média nacional (Bemfam, 1997). Quando avaliada com base no índice peso/idade, a população infantil wari’ apresenta uma distância ainda maior do quadro encontrado no segmento não-indígena da população brasileira: a prevalência de baixo peso para a idade (52,5%) é nove vezes maior que aquela registrada no restante do país (5,7%). Além disso, as condições nutricionais estão intimamente associadas às condições de saúde e à capacidade produtiva, dentre outros aspectos da vida cotidiana. Nesse tipo de contexto, esses fatores combinam-se em um processo de determinação mútua que acaba por constituir mais um mecanismo de reprodução das desigualdades entre índios e não-índios.

A dimensão relativa é central à compreensão das condições de saúde desse e de outros povos indígenas do país, e não deve ser perdida de vista nas análises e discussões sobre o tema. Afinal, “(...) evidenciar contrastes e desigualdades é sempre uma ferramenta potencialmente poderosa para municiar segmentos sociais marginalizados na busca de políticas e práticas que pressionem em direção a uma eqüidade em saúde” (Coimbra Jr. & Santos, 2000: 130). E é em sua dimensão contrastiva que a vulnerabilidade dessa população revela suas reais proporções, concretizando-se na forma de uma desigualdade marcante entre as condições nutricionais observadas no segmento indígena e no restante da população brasileira. Antes mesmo da descrição detalhada do contexto em que os Wari’ se inserem, em suas dimensões histórica, ambiental, social e econômica, o grau de comprometimento de seu perfil nutricional já de início apresenta condições amplamente desfavoráveis. Os índices de desnutrição registrados entre as crianças de Santo André são aqui descritos como alarmantes por diversas razões: em primeiro lugar, por sua indiscutível magnitude, em termos absolutos. Em segundo lugar, pelo fato de prevalências tão elevadas serem registradas ainda hoje, quando a desnutrição infantil progressivamente reduz sua importância no cenário nacional. E finalmente porque, em um contexto em que permanecem largamente desconhecidos

os perfis de nutrição dos povos indígenas do país, é plausível supor que índices semelhantes sejam hoje prevalentes em diversas outras comunidades, posto que as condições de vida da população de Santo André não parecem distanciar-se daquelas descritas, na literatura, para outras comunidades indígenas.

Não discutirei, aqui, a vulnerabilidade biológica que caracteriza essa faixa etária (crianças menores de cinco anos); no entanto, parece importante mencionar que o perfil nutricional observado nesse segmento populacional é condizente com os dados de mortalidade registrados entre as crianças wari’. Os registros de óbitos disponibilizados pela Casa do Índio de Guajará-Mirim revelam que, de todas as mortes ocorridas na população wari’ entre 1995 e 2002, 52% correspondiam a crianças menores de cinco anos. No mesmo período, o coeficiente de mortalidade infantil foi, em média, igual a 50,4 óbitos para cada mil nascidos vivos (dados secundários coletados na Casa do Índio de Guajará-Mirim). Vale assinalar o contraste que este número apresenta em relação às médias regionais e nacionais: para os anos de 1994 e 1998, os coeficientes médios do município de Guajará-Mirim foram significativamente mais baixos, chegando a 38,1 e 36,2 óbitos por mil; nos mesmos anos, o estado de Rondônia apresentava coeficientes médios equivalentes a 36,5 e 34,8 óbitos, enquanto em âmbito nacional os valores registrados foram iguais a 40,1 e 36,1 óbitos para cada mil nascidos vivos (Datasus, 2004a).

O perfil nutricional wari’ revela, ainda, o sexo feminino como um segmento populacional particularmente suscetível à ocorrência de déficits nutricionais. As mulheres apresentaram ainda flutuações importantes em seu estado nutricional compatíveis com as variações na produção de alimentos ao longo do ciclo anual, o que demonstra sua suscetibilidade à influência dos fatores de ordem ambiental. Não se pode desconsiderar o estresse adicional a que freqüentemente estão expostas as mulheres indígenas em idade reprodutiva, em decorrência de elevadas taxas de fecundidade.

Apesar da escassez de dados demográficos que possibilitem análises sobre os padrões de fecundidade de mulheres indígenas – o que inclui o caso wari’ –, uma revisão sobre o tema indica taxas de fecundidade total elevadas, normalmente superiores a seis filhos (Coimbra Jr. & Garnelo, 2004). Vale assinalar que, em 2001, a taxa de fecundidade total para o país era de 2,18 filhos (Datasus, 2004b). Na determinação da elevada fecundidade observada entre os povos indígenas, os autores chamam a atenção para o papel de fatores como o valor atribuído às famílias numerosas, a grande proporção de mulheres casadas, o início relativamente precoce da vida reprodutiva e os pequenos intervalos interpartais. Em que pesem as limitadas possibilidades de generalização, não é incomum que mulheres indígenas passem grande parte de suas vidas grávidas ou amamentando seus filhos, o que aumenta sobremaneira suas necessidades nutricionais. Os autores destacam, ainda, o papel de diversos fatores que colocam as gestantes em situação de maior risco,

como a malária, as enteroparasitoses e a anemia (Coimbra Jr. & Garnelo, 2004). Assinale-se que em Santo André a malária é endêmica, e mesmo na ausência de levantamentos específicos sobre enteroparasitismo ou anemia, as condições ambientais e nutricionais observadas ali permitem supor a ocorrência desses problemas em níveis importantes.

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