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O alumbramento da dama branca e um epílogo no meio do caminho

No documento Os caminhos movediços de Bandeira (páginas 47-52)

CAPÍTULO I : 1ª Estação: De Teresópolis a Clavadel:

1.2. Trajetória do bacanal à vulgívaga

1.2.1. O alumbramento da dama branca e um epílogo no meio do caminho

Se Carnaval deu a Bandeira a primeira trepidação do verso livre em "Sonho de uma terça-feira gorda", O Ritmo Dissoluto (1924) confirmou essa tendência na estrutura do poema "Carinho triste". Este livro não é apenas um intervalo para as inovações que se reafirmam em sua poesia posterior, é também o que confirma o diálogo que será permanente em sua obra entre os fios de melancolia identificados em A Cinza das Horas e o ajustamento da veia irônico-sarcástica que se inicia em Carnaval (1919).

São muito claras estas relações quando pensamos em poemas como "Desesperança‖, "Desencanto" e "Desalento" do primeiro e "Bacanal", "A Dama Branca" e "Epílogo", do segundo. Esses três poemas são como um elo, um ponto de intervalo dessa poesia que começa a despertar no autor um olhar diferente para o mundo, que vai de uma visão para dentro dominante em A Cinza das Horas (1917) para uma visão que privilegia o fora em Carnaval (1919).

Porém, ao mesmo tempo em que a visão do fim se apresenta de forma diferenciada no seu segundo livro, é fato que esta se consolida ainda mais como um tópico a ser verificado na construção de sua obra a partir do terceiro livro, aparecendo em todos quantos publicou posteriormente. Assim, podemos dizer que esta visão, reformulada e reconstruída, pode ser observada com maior evidência a partir de O Ritmo Dissoluto.

"A Dama Branca" é um poema icônico em relação a este processo. Ele quase que torna perene a obsessão do poeta pelo tema. A figuração personificada, sempre como ente feminino, realiza aqui um modelo ao qual será fiel até o último livro, por conta do processo de frustração a que se submete sua vida em decorrência da ameaça constante de morrer. Na verdade, como se pode perceber na leitura do texto, o que ocorre em "A Dama Branca é uma transposição de conceitos" (MORAES, 1962, p. 74) que irão nortear a sua nova visão do tema.

Esta nova visão, calcada sem adornos na experiência pessoal do poeta, remete a associações muito mais relevantes com a tradição romântica e decadente próximas a ele nesse

período. São relações possíveis de se fazer também no plano existencial, mas, certamente, o processo de construção inova no que diz respeito ao tom sarcástico com que realiza o poema.

Entender este processo de renovação, em que o sofrimento e a melancolia patente nessa tradição se enquadram, parece ser a direção para a real valoração das obras iniciais desse poeta que segue para o âmbito da realização inovadora.

Temos na figura de uma prostituta que, na esteira da Vulgívaga, e seguindo o tom erótico do poema anterior, apodera-se da existência sem restrição nem piedade, sorrindo-lhe "todos os desenganos" ou desalentos do passado.

Na configuração do lirismo às avessas ao lirismo tradicional a "Dama Branca" atravessa o sentido artificial da melancolia e da tristeza observados em A Cinza das Horas, sorrindo-lhe "como querendo bem" um sorriso "que não era amor". Trata-se aí do desejo, do querer que na obra de Bandeira abre-se como clarão de esvaziamento, uma nova dimensão de ausência dissimulada, já observada em "Renúncia" e "Bacanal". Nesse sentido, o desejo representaria a extensão do provisório em sua existência, enquanto ameaça e a proximidade da morte que o motivaria à fuga, que por sua vez o levaria à Pasárgada mais adiante.

Talvez se instale ai o núcleo deste redemoinho envolvido na dicotomia vida e morte que motivou o poeta a não se desvincular inteiramente do passado emocional e artístico. Aliar-se ao passado e vivê-lo como presente não deixa de ser uma forma de resguardar a integridade do sujeito lírico e de suas emoções.

Entretanto, paradoxalmente, é esse vinculo com o passado que transfere para o presente inovador, a linguagem da morte que atravessa toda a obra do poeta: "sob diversas roupagens foi modulando seus poemas com a tensão melancólica, às vezes, desarmada pela ironia. Esta ars moriendi está centrada (desentranhada, diria ele) no topos medieval e renascentista do momento mori, no motivo do sub sunt, em que sempre domina a perspectiva de profundidade‖ (BRAYNER, 1980, p.71).

Teríamos, então, uma expectativa de morte que no caso só se concretizaria aos 82 anos, exatos 64 anos depois da descoberta de sua tísica. Ora, a "Dama Branca" que lhe levou o pai foi o motivo principal desse viver às margens de um eu cujos desejos se realizam dentro do provisório, do inconcluso.

Nesse sentido, a face tradicional e tridimensional da "Dama Branca" é a grande ironia do "Carnaval" não realizado, o "Epílogo" do livro, e este, em seu semblante de coisa

conclusa, uma metade da "Dama Branca" e outra do "Epígrafe". Em assim sendo, o "Epílogo" estaria em uma posição intermediária do que viria a se constituir como uma nova visão da "Dama Branca" na vida e na obra.

Tal ironia também se reflete na oposição que cria por meio da mudança de tamanho do segundo verso tetrassilábico da primeira e da penúltima estrofe, onde a maior distância temporal aparece em contraposição ao tamanho dos demais versos de nove sílabas. Este procedimento aproxima visualmente o poema do mundo da experiência do eu e do sujeito, por onde a morte transita livremente.

À primeira visão alumbrada de sua figura contrapõe-se o mal estar de sua espera e esta, como mola propulsora de seu fazer poético se coloca no compasso da existência provisória do eu. Às margens e ao redor do centro profundo aproxima-se um universo em que o olho fará idas e vindas em direção ao passado contornando uma poética essencialmente lírica da recordação, resultante das experiências verticalizadas deste mesmo eu.

"A Dama Branca" incorpora os elementos inovadores dessa experiência da escrita sem perder de vista o mundo subjetivo e o tempo anterior recuperado da tradição romântica. O elemento irônico de "Bacanal" e "Vulgívaga" se impõe como elemento inovador limítrofe entre essa experiência recuperada e o anúncio de uma dada modernidade: "A Dama Branca que eu encontrei, há tantos anos, na minha vida sem lei nem rei, sorriu-me em todos os desenganos".

Essa estrofe, não por acaso repetida no poema, é a instância da voz distante que se precipita sobre o jogo do tempo no interior do poema, preservando certa distância que não se observa na estrofe inicial. Temos, então, um jogo que funciona como imagem irrefletida de um desengano ressurgente no centro do Carnaval e que o arrasta para um espaço entre a passividade de sua normalidade enquanto ritual profano e a face melancólica e inusitada da morte que lhe acompanha anos a fio. Uma constante que, salvo maior juízo, apresenta-se por meio da repetição estrófica:

A dama branca

A Dama Branca que eu encontrei, Faz tantos anos,

Na minha vida sem lei nem rei, Sorriu-me em todos os desenganos. Era sorriso de compaixão?

era sorriso de zombaria? Não era mofa nem dó. Senão, Só nas tristezas me sorriria. E a Dama Branca sorriu também A cada júbilo interior.

Sorria como querendo bem. E todavia não era amor. Era desejo? - Credo! de tísicos? Por histeria... quem sabe lá? A Dama tinha caprichos físicos: Era uma estranha vulgívaga. Era... era o gênio da corrupção. Tábua de vícios adulterinos. Tivera amantes: uma porção. Até mulheres. Até meninos. Ao pobre amante que lhe queria, Se lhe furtava sarcástica.

Com uns perjura, com outros fria, Com outros má,

- A Dama Branca que eu encontrei, Há tantos anos,

Na minha vida sem lei nem rei, Sorriu-me em todos os desenganos. Essa constância de anos a fio, Sutil, captara-me. E imaginais! Por uma noite de muito frio, A Dama Branca levou meu pai.

Assim, o processo repetitivo observado no plano estrófico também aparece na estrutura versificatória em que o uso do paralelismo pode ser verificado. Essas construções remetem a possibilidade de se afirmar que esta poesia ―se realiza como exploração dessa tradição e como experimentação de novas possibilidades, sendo uma das consecuções mais admiráveis de uma lírica renovada e inovadora, associada a uma importante modificação de padrões estéticos.‖ (GUIMARÃES, 1988, p.86).

Entretanto, cabe relembrar que grande parte dos poemas publicados em Carnaval (1919) são coevos dos que foram publicados em A Cinza das Horas (1917) tornando-se, não raras vezes, uma extensão deste no que se refere a alguns padrões de natureza formal, excetuando-se aí o uso predominante de rimas toantes, como as que temos no poema, e do estado emocional melancólico presentes no primeiro livro.

Este não é o caso do poema em questão, escrito entre 1922 e 1924, portanto em plena efervescência do movimento modernista e que fora incluído no Carnaval em sua segunda tiragem.

No que se refere a outros aspectos teríamos ainda a explorar a própria condição de tísico, já descoberta pelo poeta desde 1904, ano em que teve de suspender os estudos de arquitetura na Escola Politécnica de São Paulo, tornando-se desejo que jamais se realizaria pela ameaça imposta e que inicia o "Epílogo" de sua vida e do seu Carnaval.

A "Dama Branca" é, portanto, uma máscara que não só se associa ao espaço mítico da festa e do sujeito, mas ao próprio processo construtivo do texto, a representação encoberta da paisagem que se movimenta em sua linguagem.

Por estes motivos, o "Epílogo" não poderia resultar diferente. A marca dos desejos não realizados que se transfigura na construção do Carnaval é a tônica do poema, que resgata da tradição romântica de Schumann o exemplar de uma ebulição subjetiva em que não existiriam fronteiras ou restrições.

O diálogo com a música representado pela relação com a peça do artista russo, também se estende para a tradição portuguesa em poema de mesmo título do poeta Antônio Nobre. Aliás, o título do livro do poeta português dialogara em outra ocasião com o poeta Bandeira em "Epígrafe" de A Cinza das Horas, no último verso da terceira estrofe quando aparece como uma digressão de seus sentimentos. A título de ilustração sobre este ponto, transcrevemos o poema.

Epílogo

Eu quis um dia, como Schumann, compor Um Carnaval todo subjetivo:

Um Carnaval em que o só motivo Fosse o meu próprio ser interior...

Quando o acabei ─ a diferença que havia! O de Schumann é um poema cheio de amor, E de frescura, e de mocidade...

E o meu tinha a morta morta-cor Da senilidade e da amargura...

- O meu Carnaval sem nenhuma alegria!...

Um mundo de não realização, de transformação dentro de um espaço icônico onde presumivelmente a "alegria" teria data para iniciar e terminar. Um diálogo construído entre a arte poética e as outras artes, neste caso a música.

Se o epílogo em sua expressão comum carrega a ideia de conclusão, de finitude, no plano literário, além de ser comumente muito mais utilizado na prosa, é também o momento de elucidação dos fatos de uma história, a do carnaval. No caso do livro de Bandeira certamente este princípio não será obedecido e, se o seu início se faz pelo reconhecimento de uma esperança em "penúria", esta se reafirma como a ausência contraditória da felicidade no "Epílogo", ou mais longe, o desejo de construir "Um carnaval todo subjetivo" seria muito mais próprio aparecer na "Epígrafe" cujo resultado final não concretizado seria o "Epílogo".

Nisso se inscreve o sentimento de frustração provocado no leitor decorrente do próprio movimento instalado pelo poeta, e o "Epílogo", neste ponto, parece funcionar como um pedido de desculpas escamoteado no patente reconhecimento do não realizado por parte do eu. Como dissemos antes, muitas são as não realizações que conjugam os poemas em torno de imagens que denotam falta, penúria, solidão e morte.

Na verdade, Bandeira inverte a posição do seu Carnaval, bem como estabelece nele os contrapontos entre tristeza e alegria, vida e morte, esperança e desesperança, tradição e renovação. Imprimi-lhe uma nova roupagem, mas conserva a essência melancólica com o qual se vestia desde "A Cinza das Horas", onde principia a "destruição" do uso do verso metrificado, dando preferência, em muitas ocasiões, aos versos polimétricos, conforme já vimos.

Estas marcas do Carnaval (1919) vão evoluir em O Ritmo Dissoluto (1924) para aquilo que chamamos de início da ebulição poética que Bandeira instrumentalizará até conseguir a grande mistura que T.S. Eliot menciona em seu ensaio Tradição e Talento Individual (1989, p.45) e em que o poeta sai de seu mundo para o mundo da poesia plena, sem descartar completamente essa relação. Por esses caminhos têm-se os recortes da dissolução da "Estrada", poema que abordaremos na subseção seguinte.

No documento Os caminhos movediços de Bandeira (páginas 47-52)