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Percurso do silêncio no Gesso

No documento Os caminhos movediços de Bandeira (páginas 57-62)

CAPÍTULO I : 1ª Estação: De Teresópolis a Clavadel:

1.3. Recorte da dissolução na estrada

1.3.1. Percurso do silêncio no Gesso

Este poema é, dentro de nossa linha de análise, um dos mais representativos do trabalho de Bandeira em sua relação com as outras artes. É um poema em que o aspecto rítmico remete diretamente ao seu emblema visual, à arte pela qual jamais deixará de nutrir estima, a plástica. É também um poema da mais intensa linha existencial e, por isso, um dos que em maior escala se lhe é possível enxergar as marcas do passado repaginando o presente.

"Gesso" é a representação simbólica do instante em que o poeta procura manter, ainda que com esforço supremo, as marcas do passado no tempo atual. Um objeto esmerado sobre uma peça onde a pátina que não permite uma visualização completa de nenhum traço se põe em harmonia com o aspecto antigo de seu universo e o carinho com que o olha.

Dois são os elementos que incorporam as duas partes distintas dessa visão representada pelos laços de afetividade que o poeta mantém com os dois universos gessos. O uso do diminutivo no início e no final do poema revela estas partes. A primeira, a que este diminutivo se associa para indicar o carinho, a proximidade do eu em relação ao objeto observado. A segunda, completamente diversa, encontra no uso do mesmo diminutivo a relação de distância e menosprezo que o eu reserva ao objeto em questão. Envolvido no passado distante, representado pela transfiguração da peça em pedaços, encontramos a primeira peça; a outra, que aponta o tempo atual na metonímica imagem do gessozinho comercial que representa a relação do eu como o momento atual.

O texto em si divide-se em dois movimentos na linha da horizontalidade e da verticalidade, momento em que estas linhas se encontram quando os gestos de "uma mão

estúpida", anônima, transforma a primeira peça e o primeiro momento temporal. Este ato de desconstituição do objeto metonímico, símbolo de todo um conjunto de emoções, obriga ao sujeito a tentativa de recomposição. Um trabalho de reordenação dos elementos lingüísticos que preserve sua identidade original. Isto se dá, com a unificação das partes que se despedaçaram e que voltam a manter a essência da peça e do discurso, caracterizadas pela lágrima, num todo indissolúvel. Neste aspecto se configura também a relação com o ritmo do texto que se alterna em versos longos e curtos, próximo ao falar coloquial. Um ritmo que, em última instância,

parece formar-se de uma correlação contraditória e tensa entre a poesia e a prosa, sem que se conheça o exato meio-termo entre o princípio de ordem do verso e a dissolução prosaica. O elemento prosaico é, pois, um ruído que penetra no som do verso e, a uma só vez, o ameaça e o renova (ARRIGUCCI, JR. 1999, p. 55).

Esta renovação se espalha pelo poema e por todo O Ritmo Dissoluto aproximando, em suas obras futuras, a poesia do mundo natural, aquilo que anunciamos que é a saída do "mundo da poesia para a poesia do mundo". Uma linguagem em que o traço da harmonia é o "ritmo todo de ângulos, incisivo, em versos espetados, entradas bruscas, sentimentos em lascas, gestos quebrados, nenhuma ondulação" (ANDRADE, 1978, p.31) como a que temos aqui. Um instante de recomposição que cria o inusitado pela reintegração da peça em sua singularidade, como se percebe em sua leitura:

Gesso

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova - O gesso muito branco, as minhas linhas muito puras - Mal sugeria imagem da vida

(Embora a figura chorasse). Há muitos anos tenho-a comigo.

O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina [amarelo-suja. Os meus olhos, de tanto a olharem,

Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico. Um dia mão estúpida

Inadvertidamente a derrubou e partiu.

Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmen- [tos, recompus a figurinha que chorava. E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo [mordente da pátina... Hoje este gessozinho comercial

É tocante e vive, e me fez agora refletir Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Mormente por deixar-se transparecer como uma estrutura simples, "Gesso" é o mundo complexo do trabalho artesão praticado por Bandeira com as palavras e que levaria consigo enquanto aprendizagem para outros textos, embora não abandone, por completo, a poesia de intuição, como costumava dizer.

Foram os versos iniciais do poema "Gesso", nas palavras do próprio poeta que lhe dera "água pela barba durante anos". O texto que era de "22 ou 23" se iniciava originalmente com o verso "Aquela estatuazinha de gesso, quando ma deram, era nova,/ E o gesso muito branco e as linhas muito puras/ mal sugeriam imagem da vida", era "avesso ao gênio da fala brasileira" e tornara-se "pesado e desgracioso", passaria por um longo processo de estudo que levaria quase vinte anos até sua forma atual.

Só em 1940, procedendo a sua correção para o modelo que levou a público, introduzindo a pausa e alterando o número de sílabas dos versos que se encontra na versão atual, deu por encerrada a forma. Resolvida a questão, depõe o poeta, sentiu-se "verdadeiramente liberto da tirania métrica". A lição, segundo ele, paradoxalmente encontrava-se em Gonçalves Dias.

"Gesso", pelos problemas de construção e reconstrução que invoca se encaixa perfeitamente na dificuldade que o próprio autor via em fazer versos livres, por seu poder de inovação dentro da dissolução do ritmo a que remete o título:

O verso verdadeiramente livre foi para mim uma conquista difícil. O hábito do ritmo metrificado, da construção redonda, foi-se-me corrigindo lentamente. Ao contrário do que a muita gente pode parecer, o verso livre não é sucessão de frases curtas e compridas, como pretendem alguns desavisados ou mal-intencionados. (p. 110)

Essa consciência do verso livre une-se ao fundo de tom prosaico para antecipar em sua poesia momentos do dia a dia de "Poema tirado de uma notícia de jornal‖, "Momento num café" e "Consoada", textos que por sua própria dimensão expressiva resultam num processo de consumação da morte da linguagem e da linguagem da morte e que unificam a esfera do passado a do presente onde o sujeito se conforta pela metáfora do mau destino.

É uma renovação de espírito que se coloca à frente de sua poesia. Afinal, para Bandeira, a resultante dessa mescla de gêneros, o espaço entre os discursos lírico e narrativo,

aponta para outro processo de fusão presente em sua poética, a fusão entre o discurso plástico e o literário, onde o poema assume mais a circunstancialidade de uma cena do que propriamente o discurso de um sentimento. Veremos isso em detalhe nos poemas "O cacto" e "Poema tirado de uma notícia de jornal", ambos de Libertinagem (1930).

Em ―Gesso‖ fica muito mais para o leitor a imagem da peça recriada que remete a um conjunto de recordações narradas pela ausência de sua completude. O esvaziamento do conceito referencial do gesso que transforma a peça num ícone remissivo dessa mesma ausência. Processo de fragmentação e embricamento dos tempos passado e presente num único espaço, os pedaços da peça que o poeta reconstrói pela memória.

E assim, "o passado continua a existir como um presente, uma enorme paisagem sem linhas de fuga, sem perspectiva, onde todos os incidentes, os de ontem, os do ano passado, os de há cinquenta anos se apresentam num mesmo plano, como nos desenhos de criança." (1957, p. 294).

Note-se que o processo de reconstrução aprimora a expressividade do objeto refeito. O tempo propicia o envelhecimento das emoções que são reorganizadas após o acidente sofrido, trazendo o procedimento de realinhamento para o patamar dos valores positivos, pois para o poeta "só é verdadeiramente vivo o que já sofreu". Este sofrimento se estende para a proliferação de inúmeras conjecturas que se espalham tanto pelo plano formal, representado pela reconstrução do objeto e do texto, quanto pelo plano subjetivo, onde a presença da morte vincula-se à expectativa do sofrimento representada pelo desmembramento da peça.

Esse imbricamento da memória atualizada e a atualização da memória fragmentada na fusão dos gêneros e dos diferentes discursos voltarão a aparecer em poemas cujo núcleo central será o ser ou objeto inanimado, como o em "O Cacto". Bandeira, de certo modo, introduz pela interposição de discursos e formas o caráter metalinguístico de seus poemas, em que refazer, reconstruir, readequar, pode ser o núcleo que se impõe à novidade de sua essência. Isso já aparece desde "Desencanto", como vimos anteriormente.

A peça evolui de objeto insignificante e comercial para os limites de valoração no plano espiritual: do caráter generalizante que se observa no título, se singulariza enquanto representação da afetividade do eu com o mundo. Esta afetividade também se explica pela reinvenção dos elementos subjetivos e biográficos escamoteados no texto.

Afinal, na entrevista que concedeu a Paulo Mendes Campos, questionado sobre os objetos presentes em sua obra, Bandeira respondeu de pronto: "− Eles existem realmente. O

crucifixo pertenceu a minha mãe e espero morrer abraçado com ele, como morreram minha mãe, meu pai e minha irmã." (1980, p.88). Estes objetos, assim como os dois poemas, parece entrelaçarem-se com as marcas do passado pela presentificação do momento. Claro, mais uma vez, não se trata de mera transposição do plano da referência para o plano da criatividade, mas sua impulsão, renovação via reificação imagística.

Por isso esses elementos, assim como a morte, representam estruturas da vida e da lembrança do poeta transfigurados em sua dimensão poética. Não são apenas temas que se diluem ao longo do livro, nem muito menos em sua obra. Assumem uma dimensão do mundo da experiência realizado na opacidade da linguagem poética.

Nesse aspecto, a anulação referencial representa um salto de expressividade dos elementos cotidianos e existenciais que vão consolidar como movediça toda a sua produção literária. Ela aparecerá diluída no reino da realização do singular e do transitório, como temos no oitavo verso.

Portanto, Libertinagem não representa só a ruptura na obra do autor, ele é o momento em que Bandeira "abusa" desses elementos e de sua necessidade de libertação em direção à construção de uma expressão única que pudesse edificar com plenitude o movimento de sua linguagem rarefeita, processo de sublimação entre traços expressivos aparentemente antagônicos que se acomodam perfeitamente dentro do processo de renovação que representa. Talvez aqui possamos falar em ruptura da ruptura, momento de sua resignação "à condição de poeta em que Deus é servido" (1986).

Nele, encontraremos com maior recorrência a unificação dos gêneros, das formas e da vida em relação à morte. Também a plenitude dos versos livres. É um ritmo dissoluto com movimentos consolidados, capazes de evaporar uma expressividade cotidiana incomum onde não é possível colocar na posição de isolamento este ou aquele elemento ou forma que se desloca em seu discurso.

O "Gesso" é voz, em sua fragmentária estrutura, remete a isto e já revela os traços que se consolidarão em sua poética, antecipando-se dos núcleos de tensão de "Pneumotórax", "Evocação do Recife", "Poema tirado de uma notícia de jornal" e "Profundamente" que, unidos à "Paisagem Noturna", de A Cinza das Horas, irão imprimir o tom irônico, quase sempre de sorriso sombreado de sua linguagem.

No documento Os caminhos movediços de Bandeira (páginas 57-62)