• Nenhum resultado encontrado

O ambiente político e suas relações com a liberdade religiosa

2.3 O Segundo Império e a Religião Oficial: “O Cárcere de Ouro”

2.3.1 O ambiente político e suas relações com a liberdade religiosa

Cientes de que os atores da construção da liberdade religiosa não partilhavam das mesmas motivações, não se pode desprezar os fatores políticos que motivaram a muitos. O componente religioso, nestes casos, teve ação problematizadora sobre práticas políticas e vivências sociais, em especial àquelas que diziam respeito aos direitos civis, promovendo novas percepções e exigindo novas posturas e o reconhecimento de direitos.

Para analisar adequadamente a temática religiosa no período em estudo é preciso considerar os conflitos que marcaram a história da segunda metade do século XIX, entre o projeto ultramontano e os princípios liberais, embates que se refletiram e embasaram

disputas internas ao Brasil, que de alguma forma estavam latentes e encontraram nestas questões espaço e oportunidade para sua deflagração. Entretanto, deve ser dito que o apoio às propostas romanizadoras provinha de fontes conservadoras, as mais perenes e consistentes, e liberais, mais episódicas, invertendo-se a condição quando o objetivo era refutá-las. Não havia uma completa polarização partidária em relação ao tema.

Os liberais, ao defenderem a modernização do País, reivindicavam também a aprovação de projetos de temática religiosa que suscitaram profícuos debates no Parlamento brasileiro. A aspiração desses políticos era a de eliminar o amplo poder da Igreja Católica em assuntos como a liberdade de culto, o casamento civil, e temas a eles afeitos como registro de filhos e também o sepultamento dos defuntos, projetos com o objetivo de modernização do país, cuja proposta distanciava o homem do mundo visto apenas na perspectiva da moral cristã católica romana.

Se o projeto católico aprovado pelos participantes do Concílio Vaticano I (1869-1870) era o de reprimir o liberalismo, de fato ele não se incorporaria à proposta defendida pelos políticos que desejavam implantar no país o progresso, ainda que se declarassem católicos. De modo geral, a Igreja Católica, ao condenar tudo que se associasse ao liberalismo, optou pela implantação do catolicismo ultramontano de "inspiração romana, eclesial e sacramental". Assim, a história da “Igreja é neste período fundamentalmente ‘conservadora’. Toda uma atitude de reação contra o liberalismo, que culmina no Syllabus e no Vaticano I, [foi] transferida para o Brasil”. A Igreja Católica brasileira, ao adotar a linha de romanização ultramontana, numa perspectiva marcada pelo centralismo institucional em Roma, estaria optando por um projeto em que os seus representantes frontalmente iriam debater-se com os protagonistas do liberalismo no país, seja em âmbito nacional e/ou regional (SILVA, 2003: 2).

Da mesma forma se expressa David Gueiros Vieira ao afirmar que o "ultramontanismo do século XIX colocou-se não apenas numa posição a favor de uma maior concentração do poder eclesiástico nas mãos do papado, mas também contra uma série de coisas que eram consideradas erradas e perigosas para a Igreja", dentre as quais destacavam- se o liberalismo, o protestantismo e a separação entre a Igreja e o Estado (VIEIRA, 1980: 32- 33).

Muito mais que uma reação religiosa ao pensamento da época, Ivan Aparecido Manoel defende que havia algo mais amplo, um projeto civilizador católico, pois para ele o pensar ultramontano foi

muito mais do que um conjunto de teorias e ações, ele foi uma intenção, uma vontade da instituição católica de intervir no governo da polis para transformá-la efetivamente na Civitas Dei, e essa vontade de intervenção estava em consonância com as funções que a Igreja sempre se atribuiu e em harmonia com sua filosofia da história. Se a história humana é a história da sua salvação, cabe à Igreja, na qualidade de Mater et Magistra, e a mais ninguém, a tarefa de estabelecer os parâmetros do ordenamento social, de modo a não permitir que o Mal provoque a perdição definitiva do homem. (MANOEL, 1998: 18)

Se de um lado os princípios liberais encontravam eco também entre sacerdotes católicos, segundo Hugo Fragoso, havia um clero adepto da "orientação do Magistério da Igreja", em especial da política pontifícia de Pio IX, após a realização do Concílio Vaticano I (FRAGOSO, 1992: 144), que ao final do século XIX predominava no Brasil, em especial nos mais altos postos da hierarquia católica. Nesta mesma linha interpretativa Maria Aparecida Gaêta destaca que

Os excessos do regalismo e do liberalismo, as medidas arbitrárias às liberdades da Igreja fizeram com que os homens ligados ao ultramontanismo se engajassem num movimento que visava salvar a Igreja das críticas e das práticas liberais, bem como apresentar um programa político fundado na doutrina e na hierarquia eclesiástica. E com essa autoconsciência, exacerbada pela contestação dos liberais e dos protestantes que paulatinamente iam se inserindo no contexto nacional, o episcopado brasileiro sustentou que só a verdade (católica) e não o erro (liberal e/ou protestante) tinha direito de existência e de divulgação. (1991: 46-7)

Na concepção dos liberais, o vínculo do poder estatal com a Igreja Católica, concebido sob o padroado e afiançado pelo episcopado defensor da romanização, deveria ser suprimido para propiciar a implantação das suas propostas modernizadoras.

No jogo político brasileiro desde a chegada de família real pode-se destacar a sucessão de elites dirigentes com formações, perfis e características distintas, inclusive em suas percepções e compromissos religiosos. Sodré (1998) nos oferece de forma resumida e clara a composição de tais grupos de poder

A marcha das elites dirigentes da nacionalidade pode caracterizar-se em poucas e breves linhas: uma elite portuguesa, que se funde na terra e que perde, pouco a pouco, as suas qualidades fundamentais, o senso realístico com que resolvia seus problemas políticos; uma elite agrária que desce dos altiplanos e provêm das lavouras para dirigir o país, após o regresso da corte de D. João VI; uma elite de letrados, provindos da urbanização lenta da vida

brasileira, da desagregação da grande propriedade, da formação gradual de uma classe média, que nos governa até hoje (1998: 147).

Se houve, de início, entre conservadores e liberais, princípios e posturas que os distinguiam em suas atuações políticas e especialmente parlamentares, situação observável ao final do período Regencial e despertar do Segundo Império, conforme correram os anos acentuada fluidez se percebe na atuação dos mesmos e, na medida que se aproxima o fim do regime monárquico, as peculiaridades partidárias são diluídas e menos defendidas ou questionadas

Liberais e conservadores... à medida que se sucediam no poder, à medida que passavam à oposição, vincavam mais os traços do conformismo... Nos últimos tempos... os tradicionais partidos cindiam-se, dividiam-se, espraiavam-se no remanso de todas as campanhas, confundiam os princípios que eram a razão de ser de suas existências e das suas condutas. Conservadores realizavam, no poder, medidas e reformas que liberais haviam levantado e defendido. Nada mais, a não ser a gratidão e o preconceito da uniformidade de proceder, os prendia... (SODRÉ, 1998: 316- 317).

Tal alienação dos elementos políticos do império refletia a disseminada percepção de que faltava a sustentação necessária ao prolongamento do regime por meio de um sucessor de Pedro II, fazendo com que a opção pela forma republicana de governo fosse considerada consequência natural dos acontecimentos. Diversos fatores contribuíram para a desestruturação e esfacelamento do regime, dentre os quais, são apontados como os mais significativos no lento e contínuo processo de enfraquecimento do Império:

- a centralização, alienando o apoio das províncias;

- a destruição das oligarquias, pela fragmentação da grande propriedade... , alienando o apoio dos grandes senhores da terra e enfraquecendo a elite agrária... ;

- advento da elite dos letrados... ;

- desenvolvimento da ideia abolicionista alienando o apoio das forças da lavoura cafeeira do centro-sul;

- o surgimento de elemento militar no cenário político nacional;

- desenvolvimento da imigração e a perda do apoio dos cafeicultores paulistas;

- a questão religiosa, derivada da centralização, alienando o apoio do clero, força social de primeira ordem (SODRÉ, 1998: 298-299).

Chegado o dia 15 de novembro de 1889, estabelecido o novo regime sem qualquer esboço de reação dos antigos mandatários, findando uma instituição quase secular que conduzira os destinos do Brasil desde a independência, assumindo, no entendimento de

Sodré (1998: 312), “uma minoria vaga, imprecisa, sem ideologia nítida, sem bandeira, sem princípios, sem tradição, sem força, sem poderes, sem nada...”, iniciando de imediato, sob a bandeira republicana, profundas transformações no arcabouço legal que determinava a forma de estruturar-se e organizar-se a nação.

Sobressai, considerando os interesses deste estudo, o Decreto nº 119-a, de 7 de janeiro de 1890, que estabeleceu a separação entre o Estado e a Igreja Católica, pôs fim ao padroado e definiu o Estado como laico, fornecendo a sustentação legal à completa liberdade religiosa que se tornará plena, em seu aspecto jurídico, ao constar na primeira constituição republicana, promulgada em 1891.