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Agora é possível voltar ao artigo 3º com um olhar qualificado. Na análise inicial ele foi tratado apenas pela sua lógica interna – o porquê e o significado do estabelecimento de objetivos – e foi concluído que esse estabelecimento implica que a sociedade, guiada pelo Estado, caminha para certo fim histórico e no qual espera ter a posse dos bens imanentes almejados.

Essa percepção está presente no prefácio da 2ª edição da obra de Canotilho:

“Se a constituição programática fosse tão somente o rosto normativo da utopia daí não adviria grande mal ao mundo. A instituição imaginária da sociedade (Castoriadis) limitar-se-ia a isso mesmo, a um topos sem lugar. Sucede, porém, que subjaente ao programa constitucional está toda uma filosofia do sujeito e uma teoria da sociedade cujo voluntarismo desmedido e o holismo planetário conduzirão à arrogância de fixar a própria órbita das estrelas e dos planetas. A Constituição será, desta forma, o caminho de ferro social e espiritual através da qual vai peregrinar a subjectividade

projectante. A má utopia do sujeito de progresso histórico alojou-se em constituições

plano e balanço onde a propriedade estatal dos meios de produção se transmutava em ditadura partidária e coerção moral e psicológica. Alguns – entre os quais me incluo – só vieram a reconhecer isto tarde e lentamente demais.”148

A análise inicial é verdadeira, mas pode ser melhorada pelo conhecimento adquirido sobre fundamentos do pensamento dirigente. Além do tratamento interno do art. 3º, faremos agora a análise de “encaixe”: como ele parece sob a luz das filosofias da história?

Sendo o artigo a positivação da ideia de Canotilho – ideia de uma Constituição dirigente – tudo que foi dito sobre ela se aplica a ele. Sabemos agora que, sem a forma de pensamento das filosofias da história, o artigo 3º sequer existiria.

Temos que vê-lo, portanto, como positivação constitucional da ideia de criação de uma sociedade perfeita por meio da atividade estatal e social. E, para isso, precisamos vê-lo sob a ótica dos elementos constitutivos das filosofias da história. Essa é a perspectiva, diremos, maior do artigo 3º – em contraposição à menor, que leva em conta apenas o que ele mesmo nos diz sobre si.

Para começar, o artigo 3º da Constituição Federal do Brasil de 1988:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

148 CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: contributo para a

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O caput explicita a finalidade do artigo, que é o estabelecimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Cada um dos incisos corresponde a um objetivo, como é fácil perceber pela mera leitura. O que foi dito até aqui se aplica a cada um desses objetivos e da imagem da sociedade que eles formam quando conjugados.

Ao se deparar com os incisos, a discussão sobre a função meramente indicativa ou plenamente vinculante emerge com clareza. Quem é que poderia dizer, se não em termos gerais e imaginários, o que é uma sociedade livre, justa e solidária? A imagem só pode ser paradisíaca. E como, se não pelo sonho de uma utopia, pode um Estado ter como objetivo a construção de tal sociedade?

Quando – na análise da ideia de perfeição em Canotilho – terminamos dizendo que era certo que ele havia imanentizado o componente teleológico ao descrever o instrumento para a realização do estado de perfeição na terra, e que, ao mesmo tempo, o componente axiológico não era claro em sua obra.

Aqui temos, entretanto, os dois elementos. O meio é a própria constituição e o Estado, e o fim é a sociedade livre justa e solidária, o desenvolvimento da nação, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, e a promoção do bem de todo. O misticismo ativista é constitutivo do próprio Estado brasileiro a partir de 1988.

Com o novus ordo sæculorum estabelecido pela nova constituição do Estado e da sociedade brasileiros, uma forma de pensamento se impõe, e uma que prescinde de partidos e ideologias – ou melhor, que fundamenta igualmente ideologias de esquerda e de direita. Essa mentalidade se transforma, por um processo de diluição conceitual, no pensamento comum de que o direito serve para trazer um “mundo melhor”.

O obscurecimento do caminho vertical do homem, que está na causa dessa mentalidade, é marca indelével no pensamento político e jurídico nacional. Que é o suposto “princípio da vedação ao retrocesso social” senão a manifestação clara da ideia de progresso histórico e de caminhar rumo a um fim último que seria o “estado de maior valor”?

Revisitar o artigo 3º implica o reconhecimento de que a Constituição de 1988 está comprometida com uma forma específica de interpretação da história. Que os efeitos políticos

do dirigismo apontados no início desse trabalho são frutos dessa interpretação. E que parte dos problemas que enfrentamos hoje não são senão comentários à Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, de Canotilho.

O objetivo primário dessa monografia está cumprido. Está demonstrada a filiação da ideia de uma constituição dirigente – tal como formulada por Canotilho e tal como positivada na Constituição Federal do Brasil de 1988 – à forma de pensamento das filosofias da história, à ideia de que o curso dos feitos humanos como unificados e dirigidos em um sentido terreno.