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6 A TEOLOGIA DA HISTÓRIA

6.2 A teologia Cristã da história

6.2.1 O mistério da Encarnação: o dogma entre o nestorianismo e o monofisismo

A primeira, o nestorianismo, encabeçada por Nestório (386-451), que foi Arcebispo de Constantinopla, afirmava que a virgem Maria seria mãe apenas de Cristo (Cristípara), não de Deus (Deípara), pois as duas naturezas de Cristo, humana e divina, não estariam verdadeiramente unidas: “a divina natureza se apropria” do corpo, mas não se une a ela.155

A segunda, o monofisismo, liderada por Eutiques (378-454), que foi monge em Alexandria, afirmava o exato oposto de Nestório: as duas naturezas de Cristo não estavam separadas, mas confundidas, seriam apenas uma, pois a divina teria absolvido a humana. Daí o nome grego: mono, única, e physis, natureza. Cristo teria uma só natureza, humana-divinizada. Essas heresias foram condenadas pelos Concílios de Éfeso, em 431, e Concílio da Calcedônia, em 451. Nas condenações foi definida a doutrina da Igreja sobre a Encarnação do Verbo e sobre as duas naturezas de Cristo. A definição oficial da questão se deu apenas no segundo Concílio, mas no primeiro já temos todo o conteúdo, apenas expandido no segundo.

Concílio de Éfeso:

“Confessamos, portanto, nosso Senhor Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, perfeito Deus e perfeito homem, <composto> de alma racional e de corpo, antes dos séculos gerado do Pai segundo a divindade, no fim dos tempos <nascido>, por causa de nós e de nossa salvação, da virgem Maria, segundo a humanidade, consubstancial ao Pai segundo a divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade. Aconteceu, de fato, a união das duas naturezas, e por isto nós confessamos um só Cristo, um só Filho, um só Senhor. Segundo este conceito de união inconfusa, confessamos a santa Virgem

155 DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/

deípara, porquanto Deus, o Verbo, foi encarnado e humanado e, desde a conceição mesma, uniu a si o tempo que dela recebeu.”156

Concílio da Calcedônia:

“[Definição] Seguindo, pois, os santos Padres, com unanimidade ensinamos que se confesse que um só é o mesmo Filho, o Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na sua divindade e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem <composto> de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade e a nós segundo a humanidade, semelhante em tudo a nós, menos no pecado, gerado do Pai antes do séculos segundo a divindade e, nestes últimos dias, em prol de nós e de nossa salvação, <gerado> de Maria, a virgem, a Deípara, segundo a humanidade; Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, reconhecido em duas naturezas, sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação, não sendo de modo algum anulada a diferença das naturezas por causa da união, mas, pelo contrário, salvaguardada a propriedade de cada uma das naturezas e concorrendo numa só pessoa e numa só hipóstase; não dividido ou separado em duas pessoas, mas um único e o mesmo Filho, unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo, como anteriormente nos ensinaram a respeito dele os Profetas, e também o mesmo Jesus Cristo, e como nos transmitiu o Símbolo dos Padres.”157

A diferença entre as duas formulações é apenas quanto ao detalhamento da união das duas naturezas. Como Nestório negava a união, afirmá-la foi suficiente. Porém, como Eutiques negava a distinção, era necessário afirmar as duas naturezas sem cair no nestorianismo e, ao mesmo tempo, deixar clara que a união não significa confusão, pois as duas naturezas permanecem distintas.

A definição traça uma linha muito tênue entre os dois erros, e é precisamente nessa tensão que a medida da realidade existe para o cristão.

A relevância da Encarnação para a compreensão cristã da história se revela quando se compreende o modo de existência da Igreja. A Igreja é o corpo místico (corpus mysticum) de Cristo. Quem assim ensina é São Paulo, na carta aos colossenses (Colossenses 1, 18): “[Cristo] É a Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo.”

Se Cristo é um com a Igreja, isso significa que a diferença apontada entre cabeça (caput) e corpo (corpus) é apenas funcional. Isso é, dentro da compreensão cristã, a cabeça e o corpo têm a “mesma natureza”158.

156 Ibid., p.103. 157 Ibid., p. 113

158 PAPA PIO XII. Mystici Corporis. O corpo místico de Jesus Cristo e nossa união nele com Cristo. Disponível

em <http://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_29061943_mystici-corporis- christi.html> Acessado em 04 de maio de 2019.

Por causa da identidade de naturezas, tudo que é dito de Cristo pode ser dito da Igreja, e ela também participa do mistério da Encarnação159. Ela, portanto, é tanto humana

quanto divina, tanto visível quanto invisível, tanto temporal quanto eterna160. Por causa disso

ela age como mediadora entre Deus e os homens – pois Cristo, sua cabeça, é o mediador –, e isso lhe confere um papel único como sujeito histórico.

Se Ela é mediadora, isso significa que seus atos são tanto humanos quanto divinos, logo são intermediários entre a temporalidade e a eternidade. Com Cristo e a Igreja uma nova dimensão histórica se abre: a história sagrada, intermediária entre a história profana e a eternidade, e elo de ligação entre uma e outra.

É essa a dimensão cristã da participação do homem na natureza divina. Por meio da Igreja, seus atos também podem ascender ao nível sagrado, sem perderem sua natureza profana, isto é, temporal. “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2,20), diz São Paulo, ecoando o mistério da vida cristã.

A interpretação da história, nesse cenário, não pode ser simples. Ela não é nem apenas os feitos do homem – história profana – nem a eternidade – feitos divinos –, mas a união hipostática da humanidade e da divindade, a História Sagrada, existente na história profana e na eternidade ao mesmo tempo.

“A visão cristã da história não se reduz, meramente, a uma crença no direcionamento da história pela divina providência, mas se apresenta como a crença na direta intervenção de Deus na vida da humanidade, através de Sua ação concreta e pessoal em momento e lugares definidos. A doutrina da encarnação, que é a doutrina central da fé cristã, é, ao mesmo tempo, o centro da história e, portanto, torna-se natural e apropriado que nossa tradicional história cristã esteja enquadrada em um sistema cronológico que toma o ano da encarnação como seu ponto de referência, estabelecendo a contagem dos tempos pretéritos e futuros a partir desse centro fixo.”161

159 Exemplo disso é a vocação de São Paulo, quando ainda era Saulo. Nessa ocasião Cristo diz (Atos dos Apóstolos

9,4) “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, ao que Saulo pergunta: Quem és, Senhor?”, e ouve como resposta: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues.” Nesse momento Cristo já havia ascendido aos céus. Quem Saulo perseguia era a Igreja, Corpus Christi. O que for feito e dito a Ela, é feito e dito a Ele, vice-versa.

160 “In this intimate and unique unity of Christ and His Church is rooted the identification of Christ and His Church,

taken not only abstractly as a corporate entity but also concretely with His members. For it is not the actions, attributes, and perfections of Christ alone that are ascribed to that entity which is the Body of Christ, but also the state, actions, and qualities of the members are predicated of it. As a result, we have a variety of attributes, often widely disparate, referring to the same Body of Christ.” GRABOWSKI, Stanislaus J. St. Augustine and the Doctrine of the Mystical Body of Christ. Theological Studies, vol. 7, no. 1, Feb. 1946, pp. 72–125, p. 79. Disponível em <https://doi.org/10.1177/004056394600700103>. Acessado em 06 de maio de 2019.