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Nascido em Siegen e educado em Antuérpia, Rubens recebeu uma formação dentro dos padrões do seu tempo, que valorizava a religião católica, o aprendizado do latim, assim como o apreço pela literatura e cultura grega e latina. Como diplomata e artista, ele trabalhou para patronos poderosos (ALPERS, 1995, p. 1, 49), tendo retratado cenas e figuras contemporâneas suas, além de passagens católicas e pagãs com tamanha dramaticidade e amplitude que foi chamado por Delacroix de ―Homero dos Pintores‖ (ALPERS, 1971, p. 173)

Com um grande interesse na mitologia, Rubens travou desde cedo contato com a tradição das ilustrações de Ovídio, que serviram de fonte para quadros como o Banquete de

Aqueloo, obra da juventude do artista (ALPERS, 1971, p. 93), situada fora da série da Torre de la Parada.

Tão populares quanto o texto ovidiano, suas traduções imagéticas (muitas delas, gravações) funcionavam como um importante acesso ao poema romano, contribuindo para criar e perpetuar a sua imagem junto ao público europeu. Quanto ao trabalho do pavilhão real, Alpers (1971, p. 95-98) informa que metade das obras encomendadas e relacionadas às

Metamorfoses, derivam de gravações para o texto romano, especialmente uma francesa e

outra alemã, do século XVI, além do trabalho de Antonio Tempesta (1555-1630), no século XVII. A autora observa ainda que Rubens concebera cenas aludidas por Ovídio, mas que não são especificamente narradas por este, nem constam nas ilustrações do seu poema. Segundo abordaremos posteriormente, estas ilustrações adequaram ao seu contexto certos aspectos dos personagens e paisagens, como é o caso de Ariadne, retratada como uma dama renascentista e não como uma princesa minoica.

Estes fatos nos levam aos comentários de Lefevere sobre como as reescrituras podem coexistir com seus textos de partida e, com isto, garantir seu prestígio e perenidade:

No passado, assim como no presente, reescritores criaram imagens de um escritor, de uma obra, de um período, de um gênero e, às vezes, de toda uma literatura. Essas imagens existiam ao lado das originais com as quais elas competiam, mas as imagens sempre tenderam a alcançar mais pessoas do que a original correspondente e, assim, certamente o fazem hoje. (LEFEVERE, 2007, p. 18-19).

No caso de Rubens, ao mesmo tempo em que ele reinterpreta e expande hipotextos da Antiguidade e contemporâneos seus, o faz utilizando aspectos técnicos, próprios da arte do seu contexto, assim como imprime a sua ―voz‖ aos quadros que concebe. Aqui não nos referimos apenas às habilidades técnicas do artista, mas à singularidade do seu olhar sobre os

dramas retratados – neles também estão os deuses, aos quais concede paixões e gestos mais prosaicos que divinos. Sendo um leitor atento de Ovídio, o pintor compartilha com este uma visão humana e mesmo cômica sobre seus personagens, pois, à semelhança do poeta romano, ele ―[…] encara os homens com simpatia e tolerância, tendo percebido a vida como uma comédia, no sentido mais completo do termo, mais do que uma tragédia102.‖ (ALPERS, 1971, p. 80, 154-155, tradução nossa).

Com isso, no esboço do Casamento de Peleu e Tétis103 (ver figura 31), é enfatizada a confusão instaurada pela presença do pomo de ouro, ou ―pomo da discórdia104‖, dedicado à ―deusa mais bela‖ – fato que desloca toda a atenção dos deuses para a disputa, em detrimento dos noivos, que assistem à cena com apreensão.

Figura 31 – O Casamento de Peleu e Tétis: Peter Paul Rubens (1636), esboço a óleo – Instituto de Artes de Chicago (Chicago)

Fonte: < http://www.artic.edu/aic/collections/artwork/59956?search_no=1&index=6> Acesso em: 25 fev. 2017.

102 ―[…] he viewed man with sympathy and broadmindedness and perceived life as a comedy in the fullest sense

of the word rather than as a tragedy.‖ (ALPERS, 1971, p. 154-155).

103

A tela com a composição final para Casamento de Peleu e Tétis foi realizada por Jacob Jordaens, que trabalhava para o estúdio de Rubens. Atualmente, ela encontra-se no Museu do Prado, como verifica-se no link a seguir: <https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/marriage-of-peleus-and- thetis/1e6c1c65-360e-43fb-beb5-fe1f655c6af0?searchid=396c84e8-7597-8beb-0fd4-a37d6d20c283>. Acesso em: 26 fev. 2017.

104 Inserido na narrativa do casamento do herói Peleu e da deusa Tétis, o episódio do pomo envolve a vingança da

deusa da Discórdia que, por não ter sido convidada para a festa, lança o fruto cobiçado entre as deusas Atena, Hera e Afrodite. Nele estava escrito ―para a mais bela‖ e esta provocação atiçou a vaidade das deusas, ao mesmo tempo em que encheu os deuses de temores, pois ninguém queria se comprometer com o julgamento. Por fim, decide-se que um mortal, o príncipe troiano Páris deveria resolver a disputa. Este concedeu o pomo a Afrodite, escolha que mais tarde traria como consequência a Guerra de Troia (HYG., Fab., XCII).

Ao abordar temas mais pungentes, como o castigo de deuses sobre mortais, representado no esboço da tela Aracne e Minerva105 (ver figura 32), Rubens se afasta do

humor para recriar uma passagem das Metamorfoses (OVID., Met., VI, 5-145) que traz a disputa entre a deusa Minerva (Atena para os gregos) e Aracne, ambas exímias bordadeiras. Como vemos a seguir, ele enfatiza a atitude da deusa, que desfere sua vingança contra a mortal (ALPERS, 1971, p. 156, 178-179). De modo diverso do seu hipotexto literário, o pintor não representa a metamorfose da mortal em aranha, nem assinala a legitimidade da punição, justificada pelo orgulho desmedido da bordadeira. Sem alinhar-se com os ilustradores, que também priorizaram a transformação, seu foco é outro: a ira de uma figura poderosa sobre outra, indefesa, que ousou mostrar os enganos dos deuses contra os mortais. Como vemos na imagem, a bordadeira representara o rapto de Europa por Zeus transformado em touro: uma das cenas ovidianas que, retomada por Rubens, assinala como o destino dos homens é governado por deuses, igualmente sujeitos às paixões mais baixas.

Figura 32 – Aracne e Minerva: Peter Paul Rubens (1636-1637), esboço a óleo – Museu de Belas Artes da Virgínia (Richmond)

Fonte: <https://vmfa.museum/collections/art/pallas-arachne/> Acesso em: 22 fev. 2017.

No entanto, a interpretação do pintor sobre as figuras míticas não se limitava aos seus aspectos menos abonadores. Ao analisarmos Dédalo e o Minotauro, veremos que ao mesmo tempo em que a série da Torre traduz os sentimentos mais ternos, ela também põe em cena ações prosaicas. Deste modo, enquanto nesta tela o monstro e Dédalo estão amistosamente

105 Destinada ao Torre de la Parada, a tela com a composição final para Aracne e Minerva foi perdida (ALPERS,

lado a lado, no esboço para O Nascimento de Vênus106 (Afrodite para os gregos), a deusa sai do mar mais preocupada com seus cabelos encharcados, do que com a glória a ela dedicada (ver figura 33).

Segundo Alpers (1971, p. 146-147), o pintor não parodiou o nascimento da deusa, mas deu a ela um caráter ao mesmo tempo divino e humano: ao sair da água cercada de deidades que celebram a sua vinda, ela é a imortal que, mesmo consciente da importância daquele momento, concentra-se em torcer seus cabelos, como faria qualquer mulher. Como nota-se com esta obra, o olhar do mestre flamengo sobre os mitos nunca deixou de expandir- se e inovar-se – mesmo em sua maturidade, ele aprimorava continuamente sua habilidade como intérprete dos discursos que recriava (GEORGIEVSKA-SHINE; SILVER, 2014, p. 2).

Figura 33 – O Nascimento de Vênus: Peter Paul Rubens (1636-1637), esboço a óleo – Museus Reais de Belas Artes da Bélgica (Bruxelas)

Fonte: Alpers (1971, ilustração 188)

Estes pormenores também fazem parte das criações rubenianas para a série da Torre: em todas elas, os hipotextos do artista não foram contraditos, como ocorreria no caso de uma paródia, mas alinhados às pinturas, ao mesmo tempo em que a presença do seu criador se impõe.

106 A tela com a composição final para O Nascimento de Vênus foi realizada por Cornelius de Vos, que trabalhava

para o estúdio de Rubens. Atualmente, esta encontra-se no Museu do Prado, como pode-se verificar no link a seguir: <https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/the-birth-of-venus/d367b968-ddac-4d7d- 8f2e-be5cd959e203>. Acesso em: 26 fev. 2017.

Deste modo, do conflito burlesco instaurado pelo pomo, ao despeito da deusa que desfigura sua oponente e mesmo ao gesto de vaidade de Vênus, temos fatos não necessariamente frisados pelos textos da Antiguidade, mas que ganharam expansão e proeminência nas mãos de Rubens. Conforme observaremos, o mesmo se dá com Dédalo e o

Minotauro, no qual o artista barroco representa o artíficie ateniense e duas de suas criações.

Voltada mais uma vez para a estilização da figura do Minotauro, nossa análise envolve, além dos hipotextos verbais da Antiguidade, a iconografia que veiculou uma imagem do monstro pouco conhecida nos dias atuais. Para tanto, mantemos o aporte usado no Capítulo 3 e discutimos as relações do pintor com seu contexto e o mecenato (ou patronagem), termo utilizado por Lefevere (2007, p. 34). Ao fim e ao cabo, apesar de Rubens lançar mão de uma operação também presente em Dante, encontraremos na transmutação do artista flamengo um Minotauro mais próximo do humano e, por enquanto, longe do seu destino final.