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2.1 NARRATIVAS VERBAIS: ASTÉRION E MINOTAURO

2.1.3 O labirinto e seu prisioneiro

Na literatura da Antiguidade Clássica, o labirinto de Creta é o espaço que a tudo oculta: o Minotauro, as vítimas anônimas, o feito heroico de Teseu, assim como Ícaro e seu pai, Dédalo62, o criador desta prisão.

Apolodoro (Bibl., III, 1.4) conta que Minos ordenou a sua construção em obediência às recomendações de oráculos, mas é evidente que o soberano utiliza o labirinto para encerrar a todos que odeia. Deste modo, o primeiro hóspede do lugar é o ser que simultaneamente representa o adultério de Pasífae e o castigo de Poseidon contra a insolência do rei. Após receber esta criatura inconveniente, o labirinto é respectivamente ocupado pelos jovens de Atenas e, depois, pelo seu príncipe, que arrebata do soberano de Creta sua hegemonia e duas de suas filhas63. Por fim, chegam o arquiteto e seu filho, que de lá escapam como se fossem pássaros (APOLLOD., Bibl., E.1.12).

Para a fúria de Minos, seu poder é arruinado pelos filhos da mesma cidade onde pereceu seu herdeiro e, ironicamente, esta derrota se deve à fidelidade do ateniense Dédalo à família real. Em obediência à Pasífae, ele fabricou o invólucro de madeira e couro que simula uma vaca e esconde a rainha – desta fraude apresentada ao touro de Poseidon, nasce o ―touro de Minos‖, que é posto numa obra mais elaborada, a ―[…] casa complexíssima, de aposentos nas trevas.‖ (OVID., Met., VIII, 158).

62 Notamos que ―Dédalo‖ é também a palavra que tanto designa labirinto, quanto o cruzamento confuso de

direções (HOUAISS, 2001, p. 923).

63 Após escapar do labirinto, Teseu foge de Creta com Ariadne, a quem abandona. Tempos depois, ele desposa a

Hábil em enfrentar sua criação, Dédalo atende à princesa Ariadne, dando a ela um novelo a ser desenrolado por Teseu, desde a entrada até o ponto mais remoto onde está o monstro, que ali é golpeado até a morte. Por conta de sua colaboração, o arquiteto é aprisionado no labirinto, mas graças às asas que fabrica com penas e cera, ele voa para longe do cativeiro, junto com seu filho (APOLLOD., Bibl., E.1.8-12).

Nessa medida, do início ao fim de sua vida, o monstro está ligado a Dédalo e ao labirinto, espaço que integra o terceiro aspecto essencial do Minotauro (SIGANOS, 1993, p. 63) – a reclusão em seu interior. Criações do mesmo artífice e derrotadas por ele, labirinto e Minotauro partilham de qualidades assustadoras, como vemos a seguir: ―Feito para guardar este ser monstruoso, a história conta que o labirinto foi construído por Dédalo. Suas passagens eram tão sinuosas que aqueles que não o conheciam, tinham dificuldade em encontrar a saída64 [...].‖ (DIOD. SIC., Bibl. Hist. IV, 77.4, tradução nossa). Já para Higino (Fab., XL), esta saída era impossível de ser descoberta – o que, cedo ou tarde, levaria os prisioneiros à morte, seja pela fome, ou pelas mãos do monstro.

Ovídio também considera este lugar sem luz, ―muralha de mil voltas" (2003, p. 129) de onde ninguém escapa, tão apavorante quanto seu hóspede:

[…] Dédalo encarrega-se da obra, baralha os sinais e faz o olhar enganar-se em retorcidas curvas e contracurvas de corredores sem conta. Tal como na Frígia o Meandro nas límpidas águas se diverte fluindo e refluindo num deslizar que confunde, e, correndo ao encontro de si próprio, contempla a água que há-de vir, e, voltando-se ora para a nascente, ora para o mar aberto, empurra a sua corrente sem rumo certo, assim enche Dédalo os inumeráveis corredores de equívocos. (Met., VIII, 159-167).

A escuridão e os enganos constam igualmente nas descrições de Apolodoro (Bibl., III, 1.4) e Virgílio (Aen., V, 588-591), que aponta a confusão experimentada pelos que buscam a saída através de caminhos estreitos e confusos. As sinuosidades que caracterizam o recinto também figuram em Homero, sob o aspecto de uma antiga dança, gravada por Hefestos no escudo de Aquiles (Il, XVIII, 590-605), assim como em Plutarco (Thes., XXI), que fala de passos executados por Teseu em seu retorno vitorioso, que ―[…] imitavam as curvas e ângulos do labirinto, num ritmo de movimentos alternantes e circulares.‖.

64

―As a place in which to keep this monstrous thing Daedalus, the story goes, built a labyrinth, the passage-ways

of which were so winding that those unfamiliar with them had difficulty in making their way out [...].‖ (DIOD.

Este autor também traz informações diferentes, vindas dos cretenses65: o labirinto para eles seria apenas uma prisão inexpugnável, que, segundo apontamos, guardava os atenienses a serem dados como escravos no concurso em honra a Androgeu (PLUT., Thes., XVI).

Devoradora como o seu hóspede, a prisão está ligada ao poder de Minos, por estar localizada dentro do seu palácio (PAUSAN., Desc. Gr., I, 27.10). Em acordo com evidências arqueológicas, este era adornado com um conhecido símbolo da realeza minoica: o labrys, machado de dois gumes, palavra de possível origem lídia que teria nomeado o labirinto, ou ―casa do machado de dois gumes‖ (FERREIRA, 2008, p. 27). A forma deste emblema está na figura 12, a seguir, em conjunto com a cabeça de touro, igualmente associada aos soberanos de Creta.

Figura 12 – Adornos do palácio de Cnossos

Fonte: Ferreira (2008, p. 27)

65 Assim como Plutarco, Casadiegos (2003, p. 9) aponta outras configurações e funções para este local. Uma delas

é considerar como o próprio labirinto, Cnossos, palácio minoico repleto de andares e câmaras de tamanhos diferentes. Outra proposta deste autor é que as inúmeras cavernas desta ilha, cuja estrutura é complexa, teriam guardado prisioneiros e vítimas de sacrifícios em tempos remotos. Uma vertente diversa considera este lugar um templo onde se dariam os cultos aos deuses da cultura minoica. Estes rituais seriam comandados por sacerdotisas, aludidas pelo epíteto Potinija dapuritojo, ―A Senhora do Labirinto‖ (FERREIRA, 2008, p. 17).

Neste lugar de onde a saída é impossível, o filho de Pasífae é condenado ao encarceramento perpétuo, findado com sua pena de morte. Na literatura não consta que o monstro tenha tentado escapar de lá, assim como se sabe que nenhuma vítima, salvo Teseu, escapou do seu ataque. Mas, já que, com exceção de Teseu e seus companheiros, bem como de Dédalo e Ícaro, todos que lá entraram, nunca mais foram vistos (o que inclui o Minotauro), vale questionar como eles viveram e morreram por lá. Conforme veremos mais tarde, em Lobato (1939) e Borges (1949), o personagem destas releituras não se interessava em eliminar os hóspedes de sua casa, onde vivia de um modo diferente do planejado por Minos.

Mais assertiva, a iconografia assegura a morte do ―touro de Minos‖, levando-o, por vezes, para fora do labirinto, o que difere um pouco dos autores greco-romanos. Conforme abordaremos nos próximos capítulos, este procedimento muda à medida que o tempo avança e a literatura recria a configuração tradicional do Minotauro. Entretanto, por ora, permaneçamos na Antiguidade, para abordar as representações visuais deste personagem.