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4. O NEOPENTECOSTALISMO E A TP: QUESTÕES IDENTITÁRIAS CONTEMPORÂNEAS

4.2 O Ascetismo, Sectarismo e Mobilidade Social

É com base em um conjunto de significados que as pessoas tendem a agrupar-se a partir de afinidades que ao longo do tempo entabulam sentimentos de pertença e, em muitos casos, evidenciam uma identidade comunitária. No sentido do pertencimento social, há um anseio de adesão a princípios e visões de mundo comuns, o que faz com que os indivíduos se sintam participantes de um espaço-tempo comum. Inclusão e pertencimento são os eixos para a construção da coesão social.

Não se trata, pois, de uma teologia alienadora, no sentido tradicional e marxista do termo. Ela fala aos seus ouvintes coisas concretas e não foge de temas como a doença, o insucesso e a fraqueza [...]. Diz o que eles querem ouvir e lhes vendem a promessa de uma benção, que se houver, é crédito para a igreja e, se nada acontecer, é porque não houve fé suficiente para alavancá-la, por parte do aflito. (CAMPOS, 1999, p. 241)

O ideal ascético diz respeito à produção de um conjunto de valores que se tornam norma e padrão de vida, dificultando a criação de novos valores fora destes padrões. O ideal ascético é, portanto, o que limita a expansão da vida em seu aspecto criador. Neste sentido, se atualiza em várias e diferentes instâncias, mas, sobretudo em formas de religiosidade contemporânea que reforçam os ideais capitalistas. Atua com mais força, expressando, portanto, forças reativas.

Importante se faz ressaltar que numa perspectiva dialética existe uma realidade em movimento e em constante transformação. “Não existem ideias, princípios, categorias, entidades absolutas, estabelecidas de uma vez por todas. Tudo o que existe na vida humana e social está em perpétua transformação, tudo é perecível, tudo está sujeito ao fluxo da história” (LÖWY, 1995, p. 14).

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Max Weber observou que a religião passou a nortear-se pelo individualismo operando em uma lógica que preconizava como finalidade última a glorificação divina através de ações diárias. Dessa forma, por exemplo, o amor fraterno teria como objetivação a “glória de Deus”, não devendo beneficiar a carne, o que viabilizaria, para o contexto doutrinário, o cumprimento de tarefas diárias como um sinal de obediência e glorificação divina.

Uma vez que o ascetismo propôs-se a modificar o mundo, os bens materiais ganharam um poder crescente e finalmente inexorável sobre as vidas humanas como em nenhum outro período anterior da história. O fulgor de seu herdeiro risonho, o iluminismo, parece também apagar-se irremediavelmente e a ideia do dever na vocação do indivíduo ronda nossas existências como o fantasma de crenças religiosas mortas (2005, p. 86).

Na dinâmica das relações sociais, a diferença acentuada pela noção do outro constitui a fonte permanente de tensão e conflito, o que contribui para o conhecimento e a afirmação das próprias identidades em contraste. É preciso, portanto, sublinhar que a afirmação dos sujeitos ocorre através de relações nas quais é possível construir e reconstruir de forma dinâmica determinados intercâmbios. Se na ascese retratada por Weber havia toda uma insegurança e desmistificação em relação à salvação, na ótica neopentecostal essa insegurança é facilmente substituída pela liquidez das crenças que tornam a salvação mais acessível, ainda que dentro de rituais próprios.

A atualização contemporânea do ascetismo intramundano difere significativamente de sua forma de expressão original, embora o entendimento fundamental que é o de dar sentido à vida, continue sendo o seu motor. O lucro já não é visto como sinal de que se possui a salvação para ser gozada em outra vida (EAGLETON, 2016). Pelo contrário, busca-se gozar aqui as benesses materiais enquanto finalidade última da existência. O sinal de bênção divina não é a sensação de certeza da salvação que sossega o espírito, mas, sim, o poder de posse e de consumo.

É a coincidência da interação moral, social e econômica, juntamente com os laços paradoxais de liberdade e de obrigatoriedade que constituem o particular interesse deste

114 fenômeno. A dádiva [...] regula os padrões de justiça, a prática das associações e a circulação de bens. Sob uma perspectiva moderna, o aspecto económico pode bem ter-se tornado preponderante, ao passo que a troca de presentes tem sido relegada para condição de base das economias arcaicas e primitivas. Mas, ao mesmo tempo, trata-se da mais avançada expressão de hierarquia e de estatuto, acompanhando, assim, interações sociais de todos os tipos. Fundamenta-se numa expectativa sem exceção ou, até, numa obrigação de recompensa. Todo presente exige um contra presente (BURKERT, 1996, p. 174).

Na contemporaneidade, na experiência religiosa neopentecostal, Deus está sujeito à manipulação. Enquanto a noção de sacrifício apropriada pela economia, “justifica” os sacrifícios de seres humanos em favor do lucro, o indivíduo, por sua vez, sacrifica a Deus para ter sucesso no mundo da economia, contribuindo financeiramente para a implantação do seu reino no mundo, e cobra de Deus a sua contrapartida. Isto significa que a mudança na relação com o trabalho e com o gozo deste, altera a própria expressão do ideal ascético, que deixa de ser restrito às regras morais e ao universo religioso e passa a ter expressão plena na lógica neoliberal.

Os processos que interiorizam o mundo socialmente objetivado são os mesmos processos que interiorizam as identidades socialmente conferidas. O indivíduo é socializado para ser uma determinada pessoa e habitar um determinado mundo. A identidade subjetiva e a realidade subjetiva são produzidas na mesma dialética (aqui, no sentido etimológico literal) entre o indivíduo e aqueles outros significativos que estão encarregados de sua socialização. (BERGER, 2003, p. 29).

O ascetismo encontra-se diretamente ligado às demandas de mobilidade social e de situações nas quais é possível vislumbrar uma vivência religiosa de amplitude também sectária. Se o ideal ascético, anteriormente mais ligado à religião, produzia uma consciência na qual havia uma culpa em evidência, hoje, as nuances das subjetividades mais inclinadas à realização plena dos indivíduos induzem para um sectarismo eclesial e uma mobilidade bastante acentuada. A mais de cinco décadas, Edgar Morin, já pressentia o esvaziamento das estruturas valorativas da civilização ocidental.

Quanto mais poderosa é a carência subjetiva, tanto mais a imagem a que ela se fixa tende a projetar‐se, a alienar‐se, a objetivar‐se, a alucinar‐se, a fetichizar-se [...]. Efetivamente, no

115 encontro alucinatório da máxima subjetividade e da máxima objetividade, no lugar geométrico da máxima alienação e da máxima carência, encontra‐se o duplo, imagem e espectro do homem (1958, p. 33).

É possível perceber mudanças significativas no processo de atualização, de expressão e apropriação de novas forças de sentido. Há um constante embate entre forças ativas e reativas (CONNOR, 2000). É nelas que é firmada a possibilidade de invenção de caminhos para uma existência que escape aos modos de produção de subjetividades sempre paradoxais, desiguais e heterogêneas. O ideal é a reprodução de uma religiosidade diante da qual não há uma potencialização para a criação e a reprodução da diferença, mas um exercício de uma autoridade religiosa capaz de reproduzir uma identidade alinhada com as prerrogativas da prosperidade.

A maioria das lideranças religiosas neopentecostais não consolida laços com os fiéis. Aliás, os próprios fiéis são incentivados a construir uma autonomia econômica e emocional que prescinda de olhar para o outro. O ascetismo encontra-se, portanto, como que amalgamado aos ideais de uma prosperidade capitalista, corporificado nas representações do sacrifício, oferecendo-se como remédio aos sofrimentos com efeitos importantes na subjetivação e construção de uma teologia ligada ao cotidiano.

Uma religiosidade que afirma os mesmos valores da sociedade de consumo e oferece a promessa de integração na sua dinâmica, tem seu poder de atração. Nessas promessas, os valores são reproduzidos numa perspectiva de solução individual, confirmando a prerrogativa de separação do indivíduo das redes de interação a exemplo de tempos passados.

É preciso olhar, portanto, para as particularidades [...] tendo como recorte as características de nosso tempo. Em suma, o que se quer frisar é que estas novas expressões da religiosidade não são apenas modismos de mercado, mas coerentes com o atual estágio da sociedade contemporânea ocidental. Elas são uma faceta de uma modificação mais ampla sofrida pela sociedade moderna que atinge atualmente graus acentuados de visibilidade e autonomização do indivíduo (GUERRIERO, 2012, p. 148).

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É importante atentar para esta realidade na qual a reprodução do individualismo e a ênfase na ideia de que a solução para as dificuldades encontradas na luta pela sobrevivência é individual a ponto de enfraquecer os vínculos, a interação, as trocas, os laços, o mútuo auxílio, favorecendo, em contrapartida, a conformação de uma religiosidade instrumental mais acomodada à sociedade e às culturas (EAGLETON, 2011).

A cultura muda. A religião muda. No mundo contemporâneo, em seu lado ocidental, se a religião não acompanha a cultura, fica para trás. Ainda tem fôlego para interferir na cultura e na sociedade, sobretudo na normatização de aspectos da intimidade do indivíduo – especialmente pelo fato de ser religião –, mas seu sucesso depende de sua capacidade de mostrar ao fiel potencial o que ela pode fazer por ele. Dotando- o, sobretudo, dos meios simbólicos para que a vida possa fazer algum sentido e se tornar, subjetiva ou objetivamente, mais fácil de ser vivida, sem que se tenha de abandonar o que de bom este mundo oferece. (PRANDI, 2008, p. 170).

A teologia da prosperidade reforça a precariedade das interações sociais ao atribuir a solução para as crises não às perspectivas concernentes aos meios de produção, mas a um espírito empreendedor que estimula o indivíduo à autonomia, a abrir o seu próprio negócio, ignorando a complexidade de toda a dinâmica das confluências sociais que fazem parte do cotidiano e estão presentes na sociedade (MELUCCI, 2005). Não deixa de ser surpreendente que ao entabular um conjunto de crenças altamente mágicas o neopentecostalismo esteja renegando aquilo que sintetizava uma natureza ética dentro do protestantismo, mas que agora é subjugada pelos ditames da realização material (EAGLETON, 2016).

O contraponto relevante em termos compreensivos é que a valorização de uma individualidade autônoma reforça a produção de uma subjetividade que é incentivada a declarar, enfaticamente, não aceitar as dificuldades, mas que por outro lado, não consegue desvencilhar-se do fato de que a solução proposta reforça justamente as desigualdades socialmente produzidas (HONNETH, 2015, p. 34-127). Este paradoxo conflui para atender demandas acentuadas no narcisismo e na satisfação imediata. A resistência que se manifesta como saída para a produção de uma diferença que possa escapar

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da reprodução é capturada pela instituição religiosa sustentada por este modo de subjetivação (VATTIMO, 2004).