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3 LEITURAS DA MEMÓRIA: NARRATIVAS DA INFÂNCIA

3.2 As construções narrativas

3.2.2 O ato de narrar e a identidade de si

Walter Benjamin, em seu livro ‘Magia e técnica, arte e política’ (1987), afirmou que a arte de narrar estava em extinção, pois poucas pessoas sabiam como fazê-la e que os sujeitos não sabiam mais intercambiar suas experiências através da narração. Esta é uma afirmação categórica que consideramos que deve ser relativizada, pois para esta

54 Consideramos sentido: “trata-se, em português, da substantivação do particípio passado do verbo sentir

(do latim sentire); mas a palavra aparece influída também pelo campo semântico do termo senso (do latim

sensu). Senso é, entre outras coisas, a faculdade de emitir juízos, de apreciar; é o entendimento. E sentido,

no viés que aqui interessa, é significação, significado, acepção; e denota, ainda, os diferentes ângulos, aspectos ou propriedades de algo” (CARDOSO, 1997, p. 16).

pesquisa foi preciso pedir que os jovens narrassem suas experiências com o consumo e com a publicidade, possibilitando assim que o registro dessas narrativas gere intercâmbios de experiências sobre a problemática pela qual está proposta a ser estudada nesta pesquisa.

O autor foca especificamente na narrativa oral que afirma ser o discurso vivo da sabedoria, sendo que ela está diminuindo concomitantemente com a evolução secular das forças produtivas, ou seja, o autor atribui à industrialização o processo de extinção da sabedoria e da arte de narrar. Para Walter Benjamin, a narrativa tem uma natureza utilitária, a de dar conselhos que só pode ser concretizada pelo intercâmbio de experiências.

Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis (BENJAMIN, 1987, p. 200).

Desta forma, a narrativa é uma forma de conhecimento indissociável da experiência (GONÇALVES, 1996 apud FONTE, 2006). Portando, os jovens estão, mesmo que indiretamente, dando conselhos ao narrarem sobre suas experiências. Eles estão recorrendo não somente a sua própria vivência, mas também ao que sabem das experiências de outros jovens ou de outras crianças dos anos 1980 e 1990. “O narrador assimila a sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer” (BENJAMIN, 1987, p. 221). Os jovens dão conselhos sobre a publicidade e sobre seus hábitos de consumo na infância e hoje. Conselhos estes que poderão ajudar a compreender como a publicidade pode persuadir a criança a consumir e a criar o hábito de comprar determinado produto.

Essas narrativas dos jovens apresentam não somente suas experiências, mas também traços de suas identidades. Anthony Giddens (2002) afirma

A identidade de uma pessoa não se encontra no comportamento nem - por mais importante que seja – nas reações dos outros, mas na capacidade de manter em andamento uma narrativa particular. [...] Deve integrar continuamente eventos que ocorrem no mundo exterior, e classificá-los na “estória” do andamento do eu (p.55-56).

Assim, as narrativas não são somente sobre os hábitos de consumo dos jovens, mas também sobre as suas leituras de como foi a infância e como suas identidades foram moldadas nesta fase e em relação ao que consomem e como veem a publicidade hoje. Identidades estas que, juntamente com a memória, não são construídas individualmente, mas sim em conjunto com o meio e as relações sociais. Desta forma, vemos os relatos dos jovens para a pesquisa como parte das suas “narrativas do eu: a estória (ou estórias) por meio da qual a auto-identidade é entendida reflexivamente, tanto pelo indivíduo de que se trata quanto pelos outros” (GIDDENS, 2002, p. 222).

Já Paul Ricoeur (1997) afirma que a história narrada traz a identidade narrativa, ou seja, a identidade de quem faz a ação e não necessariamente a identidade do autor. Não seria possível afirmar até onde as duas identidades aparecem, portanto concordamos com o autor quando este declara que esta identidade narrativa não é estável e sem falhas, assim como a identidade do autor. Podemos ir além e dizer que essas identidades podem ser moldadas pelo consumo e pelas mídias. Segundo Anthony Giddens:

Os meios de comunicação de massa rotineiramente apresentam modos de vida aos quais – deixam implícito – todos deveríamos aspirar. Mais importante, porém, e mais sutil, é o impacto das narrativas que a mídia traz. Aqui não há necessariamente sugestão de um estilo de vida a ser desejado; em vez disso, desenvolvem-se estórias de modo a criar uma coerência narrativa com a qual o leitor ou o espectador possa identificar-se (2002, p. 184).

Desta forma, as narrativas apresentadas pela publicidade podem causar identificação das crianças que estão vendo os comerciais feitos com outras crianças. Portanto, as representações das crianças nos comerciais citados nesta pesquisa sugerem modelos de “narrativas do eu” para as crianças que assistiam a essas peças na televisão. Diante dessa problemática, a presença dos pais para ajudar a criança a compreender a narrativa da publicidade é fundamental. Graça, uma das jovens entrevistadas, quando foi instigada a responder se ela pedia os produtos por causa dos comerciais, respondeu:

Sim, eu lembro da (sic) minha mãe falando que era feio ou então quando era algo muito popular como a sandália da Xuxa que todo mundo tinha, ela dizia para me dissuadir “todo mundo tem isso, tu quer uma coisa que todo mundo tem? Qual é a graça?” (GRAÇA).

No caso de Graça, sua mãe tentava fazer que sua filha compreendesse que ela deveria ser diferente das crianças dos comerciais e dos seus colegas que tinham o produto como forma de persuadir a filha a não tomar como modelo a narrativa do consumo de determinado produto. Assim, o consumo faz parte da construção da narrativa das crianças e dos jovens, porém o quanto ele estará presente vai depender da interferência também dos pais, professores e pessoas do seu convívio na infância para se tornarem jovens mais conscientes acerca das estratégias de persuasão publicitária.