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reivindicação territorial em territórios ancestrais.

4.7 O Ato Político

Tal como tinha sido programado desde que a recuperação da fazenda se concretizou, a diretoria da comunidade indígena destinou um tempo nesse segundo dia para um evento que eles denominaram de Ato Político. Era o momento de a institucionalidade se expressar e de os Mapuche manifestarem para eles o sentido dessa conquista.

Como todo ato político, esteve marcado pelos discursos que vinham de parte das autoridades institucionais públicas, e das organizações e comunidades mapuche. O ato começou com as palavras de Richard Llao, presidente da comunidade, que ressaltou: “Hoje, estamos celebrando uma nova compra que se faz para a comunidade da Fazenda

Rapahue, com a qual nos sentimos contentes, nos sentimos, não satisfeitos, porque

nossa demanda não é de 500 hectares, é de 900 e tantos hectares, 1.000 hectares. Esta é a segunda aquisição para nossa comunidade, mas ainda está faltando algo pela frente, e por isto vamos seguir lutando até recuperar nossa demanda que a comunidade tem formulado”.

Momento histórico para as famílias do lof Tranaman. O presidente da comunidade, Richard Llao, recebe de mãos do subsecretário do Ministério de Planificação e Cooperação a escritura da Fazenda Rapahue.

Os discursos se sucederam, intercalando-se as diferentes visões mapuche de um mesmo evento com o olhar não mapuche do assunto. Os Mapuche das comunidades e organizações de base colocaram no centro de suas intervenções a reivindicação histórica pelo território, sublinhando que ainda faltava muito para se responder às necessidades territoriais.

Humberto Pillaleo, dirigente indígena de reconhecimento em nível nacional, enfatizou: “Aqui estão as autoridades; queremos lhes dizer que os temas estão latentes, estão pendentes, e o povo mapuche está vivo. Queremos seguir recuperando as terras que ainda não estão aprovadas, nossos companheiros estão lutando para que a Conadi trabalhe e se esforce para recuperar aquelas terras ainda faltantes para num momento dado sejam consideradas pelo conselho superior da Conadi”.

Pelo lado da visão dos mapuche que trabalham nas instituições, o discurso foi bastante diferente, representativo de um posicionamento de bloco partidário, que resguardava, antes que tudo, as lealdades políticas e que tendia a sublinhar a “boa vontade” dos governos da Concertación, apontando os avanços tidos logo depois da promulgação da Lei Indígena 19.253 e da criação da Conadi no primeiro governo desta

aliança política. O subdiretor desta instituição o expressou assim: “Na verdade, quando se está neste tipo de cerimônia e se sente a alegria da comunidade, a gente é também um pouco mais feliz, porque o que estamos vivendo hoje é algo que vem se repetindo durante 12 anos desde a promulgação da Lei Indígena. Desde 93, entregamos como Conadi uma quantidade importante de terras, transferindo uma quantidade importante de imóveis fiscais às comunidades mapuche, particularmente das VIII, IX e X Regiões. Também tem se entregado uma importante quantidade de projetos de desenvolvimento, projetos de irrigação, contribuições em educação intercultural bilíngüe, quer dizer, faz aproximadamente 12 anos que a vida dos Mapuche desta região particularmente mudou e tem mudado, pois existe a vontade do governo de que assim seja, isto tem sido acompanhado com o trabalho dos dirigentes, dos dirigentes mapuche das comunidades de nosso povo. Então, hoje nos sentimos contentes de estar aqui. Entregamos há poucos minutos a escritura pública que os torna proprietários de 353 hectares da fazenda

Rapahue, que foram de propriedade de Florestal Millalemu, isto significou um

investimento de 382 milhões 967 mil 253 pesos [1.636.612 reais aprox.].

José Santos Millao, escolhido pela comunidade para representá-los nesse momento perante a platéia, realizou um extenso discurso no qual fez um apanhado histórico das lutas, conflitos, esforços e conquistas do povo mapuche que os levou até aquele minuto, no qual a comunidade recebia a escritura pública que os garantia como donos daquelas terras. “Não é fácil, é muito difícil, confesso, organizar minhas palavras para que em forma sucinta e correlativa possa assinalar todo o processo histórico que tivemos que percorrer para chegar a viver este momento”.

Santos Millao, vereador do Município de Purén, conselheiro nacional da Conadi, liderança antiga de Tranaman e do movimento mapuche em geral, fez, ao mesmo tempo, um reconhecimento para as famílias da sua comunidade: “quero cumprimentar as famílias que constituem nossa comunidade Woñotuy Tañi Mapu Lonko Llao

Tranaman, a família Ancal, a família Millaman, a família Huaiquicheo, a família

Millahuai, a família Millapi, a família Millao, a família Mulato, a família Llao, a família Manquiel, as famílias que constituem e conformam esta gloriosa comunidade de Tranaman, que hoje se encontra de pé aqui para celebrar este momento histórico pelo qual muitos de nossos antepassados lutaram e caíram para que nós hoje estejamos aqui celebrando este dia, quando, de uma vez e para sempre, nosso povo, nossa comunidade encontram-se com a liberdade”.

O encerramento de seu discurso fez referência ao sentido do ngillatun e às implicações da demarcação territorial e o novo ngillatuwe: “Quero finalmente falar sobre o significado que esse rewe tem. Em próximos eventos que realizemos, quando o tempo nos acompanhar devemos jurar ao redor deste rewe para que este território que recuperamos nunca mais seja para os comerciantes, muito menos para os usurpadores. Esse deve ser o juramento que temos que tomar como comunidade e como humilde dirigente desta comunidade. Adiante, irmãos, toda vez que transitarmos pela senda de

Lautaro e Caupolican e de Guacolda, nunca vamos nos perder do caminho e vamos

estar sempre em momentos como este celebrando o triunfo de nosso povo mapuche em geral e o triunfo, neste caso, de nossa comunidade Woñotuy Tañi Mapu Lonko Llao

Tranaman”.

Ao finalizar o Ato Político, as autoridades foram convidadas a compartilhar a comida preparada pela comunidade especialmente para as pessoas que vieram participar desse momento. Uma grande mesa foi preparada, localizou-se num extremo do campo cerimonial e foi ajeitada embaixo de uma lona para proteger as pessoas da chuva. Nela tomaram lugar os dirigentes de Tranaman e os convidados.

A maioria dos membros da comunidade ficou nas suas ramadas e interagiram partilhando pratos de comida. Este é o momento com o qual habitualmente se põe fim ao ngillatun, não obstante, como a maioria das pessoas me disse e como foi comentado num momento posterior de avaliação do ritual que a comunidade teve, eles não conseguiram desenvolver esse ato na sua integralidade, argumentando que a chuva e o vento que havia nesse momento tornavam extremamente difícil o trânsito das pessoas de uma ramada para outra. Muitos regressaram para casa com uma parte importante dos alimentos que haviam sido preparados para serem partilhados no ngillatun. Apesar das dificuldades, alguns intercâmbios foram feitos, e com eles colocava-se fim ao ngillatun. Assim como as famílias chegaram até o ngillatuwe no dia anterior, foram paulatinamente voltando para suas casas, enquanto a chuva tomava conta da finalização do dia.

Depois de uns dias de transcorrido o ngillatun, quando indaguei com as pessoas sobre sua visão respeito de como eles achavam que tinha acontecido, concluí que em geral existia uma percepção positiva do evento. Ainda que questionassem algumas situações, às quais fiz referência, eles destacavam a presença e a participação generalizada dos integrantes da comunidade e a colaboração das famílias nos dias prévios ao ritual nas tarefas comunitárias. Uma coisa referida como positiva também

por muitos foi o fato de as pessoas terem mantido um controle sobre o consumo do álcool, com isso evitado brigas. Por outro lado, as falas das famílias comentando o ritual mostram outro nível de preocupação que tem a ver com as mensagens deixadas pela

machi. Estas foram muito marcantes nas decisões posteriores ou futuras do coletivo. Já

apreciei isso em relação ao ngillatun de 2004, quando a machi fez chegar através da sua fala as formas com que a comunidade deveria se conduzir para conseguir recuperar a fazenda, formas que foram respeitadas. Agora, no momento de transe, ela tinha indicado marcar o nguillatuwe e, de alguma forma, transmitido pontos sobre os quais a comunidade devia tomar cuidado futuramente pensando na sua nova condição de ocupantes desse território. Sua narrativa, segundo o interpretado pelas pessoas com as quais conversei, centrava-se na cautela que deveriam ter com os relacionamentos sociais entre famílias e pessoas da comunidade, enfatizando evitar as brigas e as invejas, tentando a solidariedade do grupo para dar passo à partilha de tudo o que dali em adiante essas terras pudessem produzir. Uma mulher se expressou da seguinte maneira: “ela disse que estava muito agradecida pela terra que se recebeu. Na outra vez, quando ela veio disse; com calma, vai sair a fazenda, sem desordem, sem briga, não ir à força para conseguir essa terra, e foi assim. Também disse que vamos ter trabalho para todas as pessoas, não briguem pelo dinheiro”. (Entrevista com a senhora Violeta Llao. 29 de junho de 2005). Ficou também no ideário das pessoas a responsabilidade que significa ter um novo ngillatuwe e o peso que este tem no desenvolvimento dos próximos

ngillatun em Tranaman.

Talvez uma das questões interessantes que tenho só enunciado, mas que poderia ser em outro momento explorada, seja precisamente a insistência das pessoas de Tranaman em estabelecer o mais claramente possível a diferença entre o ritual que representaria o verdadeiramente mapuche e o Ato Político que faria parte da aquela esfera na qual as relações entre mapuche e chilenos são possíveis. Penso, por um lado, que este corte radical dos momentos é reflexo de como a sociedade mapuche vive as relações no interior de uma sociedade como a chilena, e, por outro lado, me parece que esse fato chama a atenção sobre a “resistência mapuche” à mistura e á integração nos moldes definidos pelo Estado-nação; resistência no sentido do conceito utilizados por Albert, “[...] como oposição político-interétnica aberta e concebida como tal, baseada em formas coletivas de mobilização e orientada por estratégias políticas de retomadas de consciência” (Balandier, 1963) e de reconquista de autonomia social, econômica e territorial”. (ALBERT, 2002, p. 14).

Veremos a seguir como o espaço recuperado pelo lof Tranaman foi durante décadas transformado num lugar desprovido, desde a perspectiva mapuche, de todo tipo de vida, e como, a partir da possibilidade e posterior certeza das terras voltarem novamente para a comunidade, começaram a se ativar entre eles estratégias de res- socialização do espaço, onde uma peça-chave no inicio deste processo foi justamente o ritual.

Capitulo IV

Após do Ngillatun, novos caminhos, novos desafios:

Tranaman e suas tentativas de re-socialização