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Capitulo I Tranaman e sua gente:

Mapa 5: Títulos de Merced Tranaman

2.3 Terras e território mapuche: uma perspectiva histórica da legislação

Não é meu propósito fazer aqui uma análise aprofundada das diferentes leis e decretos que têm regulado questões relativas à ocupação do território mapuche e anexação ao território nacional, contudo, vale a pena destacar em termos gerais o processo através do qual o território ancestral foi violentamente arrebatado, repassado para propriedade do Estado e outorgado sob diferentes modalidades a colonos estrangeiros, nacionais, militares e, recentemente, às empresas florestais.

Em termos gerais, as diferentes legislações nesta matéria ao longo da história têm se caracterizado por duas coisas: ignorar a forma como os Mapuche vinham se relacionando com o espaço, sua concepção particular do território, as formas de se organizar em torno dele, e por terem sempre privilegiado qualquer interesse antes que o dos próprios Mapuche.

Nosso ponto de partida pode parecer exagerado, mas acredito necessário. Teremos que nos remontar ao período da Independência do Chile da Coroa Espanhola e a conformação da República na primeira década do século XIX.

Depois, e apesar da luta mantida com os espanhóis, os Mapuche conseguiram manter um território independente, o qual foi reconhecido pela Coroa através do Tratado de Quillín, firmado em 1641. Este estabelecia como limite norte do território mapuche o Rio Bío-Bío, e como fronteira sul, o Rio Toltén.

Esse fato originou desconforto, mal-estar e preocupação no Estado chileno, pois contradizia o ideal unificador e estabelecia uma ameaça à estabilidade da nascente República, devido a que,

[...] a continuidade da República do Chile estava territorialmente interrompida, assim como o exercício da soberania do Estado pela existência de territórios mapuche soberanos na região centro-sul. O Chile chegava até o Rio Bío-Bío, daí até o Rio Toltén moravam os Mapuche, e logo, desde Toltén até o extremo sul continuava o Chile. (VIDAL, 2000, p.76. Tradução da autora).

Como Little assinala e reforça nossa idéia, “[...] a existência de outros territórios no Estado-nação representa um desafio para a ideologia territorial do Estado, particularmente para sua soberania” (LITTLE, 2004, p. 258).

Foi também isto que levou os governos da época à elaboração de leis e decretos tendentes a regular a ocupação destas terras. Gostaria de destacar, para os efeitos deste trabalho, quatro momentos que ajudarão a entender o surgimento da legislação indígena atual: 1) o início da regulação da ocupação do território; 2) a Radicación, entrega dos

Títulos de Merced e estabelecimentos das Reducciones; 3) a colonização do território; e

4) a divisão das comunidades.

O primeiro momento é o resultado da preocupação do Estado pela ocupação “espontânea”17 das terras mapuche e a falta de controle sobre esta prática. É assim como se dita no ano 1852 uma lei que, através da criação de uma unidade político- administrativa (a nova Província de Arauco), a definição de limites e a nomeação de autoridades, tenta reverter a situação antes referida, quer dizer, regulamentar a ocupação que vinha acontecendo através de compras, transferências, arrendamentos ou simplesmente ocupações das terras mapuche. Esta lei facultou ao Estado intervir e decidir sobre qualquer evento ou ato que tivesse relação com modalidades de apropriação das terras mapuche. Isto não significava que o Estado tivesse a intenção de impedir aquelas práticas, o propósito era, pelo contrário, ter incidência, decisão, tutela, controle e conhecimento do que estava ocorrendo. Apesar de os Mapuche, em teoria, contarem com os mesmo direitos da população chilena, existia por parte das autoridades chilenas uma política extremamente paternalista sobre o que significava resguardar esses direitos. Deste modo, aquela faculdade intervencionista da parte do Estado, mais que contribuir com a proteção das terras indígenas, potencializou que elas ficassem fora do alcance das decisões de seus ocupantes originais, desembocando finalmente na sua perda. O Estado atuou ignorando que,

[...] os indígenas careciam dos conhecimentos jurídicos assim como do critério mercantil para realização das transações, e mais ainda, muitas vezes desconheciam a língua em que estas se realizavam, situação que acarretou que a maior parte delas tivesse um caráter manifestamente abusivo contra eles. (AYLWIN, 1995, p. 12. Tradução da autora).

Apesar de se configurar uma política de “proteção das terras indígenas”, esta foi uma tentativa falida, já que as invasões continuaram, e os conflitos começaram a se avultar e aguçar.

Isto levou o Estado a mudar alguns dos seus mecanismos e ditar a Lei de 1866, que na prática transferiu a propriedade do território mapuche ao Estado, questão que lhe permitiu decidir sobre o destino deste espaço, dando-se, deste modo, início à alienação, colonização e venda do território. Fundaram-se também com esta lei as bases da

radicación da população indígena que na prática, e devido a situações políticas internas,

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Este conceito utilizado pelo advogado José Aylwin reflete muito bem sobre o modo que assumiu no início a ocupação do território mapuche em contraposição com o que se tentaria com as legislações posteriores, que se propunham a organizar, ordenar e legalizar a ocupação.

só tomou corpo com a Lei de Radicación de 1883, a qual cria como figura central a

Comisión Radicadora de Indígenas. Podemos situar aqui o destaque do segundo

momento.

Por esta lei, o Estado chileno determinou o estabelecimento da população mapuche em Reducciones, parcelas fixas, estritamente delimitadas e em caráter definitivo. Junto com isto, a Lei determinou a entrega dos Títulos de Merced, documento oficial que reconhecia a propriedade legal do indígena sobre a terra ocupada nesse momento. Não é bom deixar passar que o Estado consignou um limite na quantidade de hectares que poderiam ser reconhecidos aos indígenas, quantidade que, aliás, como veremos mais adiante, é consideravelmente inferior à leiloada ou entregue para colonização18.

Segundo o antropólogo Roberto Morales,

[...] entre os anos 1883 e 1929 o Estado chileno fez pouco mais de três mil Títulos de

Merced aos mapuche, que somaram meio milhão de hectares descontínuos, fragmentados

e dispersos em uma grande área. Ou seja, em menos de 50 anos perderam o controle de 95% do território que tinham mantido durante quase 300 anos (MORALES, 2000, p. 19).

O procedimento para a obtenção do Título de Merced era o seguinte: uma pessoa solicitava à Comisión Radicadora as terras para si e um grupo de pessoas que afirmava representar, seus “parentes”. Ela devia comparecer perante a Comisión com duas testemunhas chilenas, que dariam fé da ocupação do grupo por um período mínimo de um ano nas terras solicitadas. O Protector de Indígena, tendo estes antecedentes, pronunciava uma sentença registrando os limites das terras ocupadas por parte do grupo naquele momento, outorgando desta forma o Título de Merced em nome do membro principal (consignado como “chefe” no documento) que as solicitava.

Procurei na Direção de Arquivos Gerais de Assuntos Indígenas da cidade de Temuco as fontes documentais referentes a meu contexto de trabalho – Tranaman . Elas mostraram que, entre os anos 1898 e 1911, Margarita Maica e Juan LLabo, Juan Puen, Andrés Millapi e Andrés Mulato compareceram à Comisión Radicadora para solicitar

Título de Merced dos terrenos, ficando cada um e os grupos que disseram representar

com chácaras de 133, 210, 60 e 158 hectares, respectivamente. No quadro que segue, pode-se observar alguns dados significativos contidos no Título de Merced.

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Segundo Vidal (1999), o Estado assinou para os Mapuche um terreno não superior a quatro hectares por indivíduo.

Tabela 3: Resumo de dados relevantes registrados nos documentos de Títulos de Merced Nome do solicitante N° da chácara Data da solicitação Data do outorgamento N° de pessoas que diz representar Nome das testemunhas N° de hectares Juan Puen 493 4 de março

de 1897 1 de março de 1898 34 José del C. Gallego Benjamín Rubilar 133 Margarita Maica e Antonio Llabo 493b 4 de março de 1897 14 de dezembro de 1897 27 de março de 1899 23 10 Esteban Guiñez e Benjamín Rubilar Lorenzo Coliman e Lorenzo Catrío 167

Andrés Mulato 493a 4 de março de 1897 29 de agosto de 1898 40 Esteban Guiñez e Benjamín Rubilar 158

Andrés Millapi 489a 7 de julho

de 1911 dezembro de 1° de 1911 6 José Micheo José Manuel LLao 60

Pode-se apreciar, por exemplo, no Título de Merced entregue a Juan Puen, um dos quatro que conformam atualmente Tranaman, que ele se apresentou ante a Comisión em 4 de março de 1897 solicitando Título para ele e mais 34 pessoas.