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O AUTÔMATO ESPIRITUAL OU O ARTIFICIALISMO ESPINOSISTA

3. O autômato espiritual

A tese do monismo implica uma tese sobre conhecimen- to. Espinosa começou a formular essa implicação com a ideia de “força do intelecto”, apresentada no texto Tratado da reforma

da inteligência, escrito em 1662, aos trinta anos, seis depois de

sua excomunhão e expulsão da comunidade judaica de Amsterdã por heresia, conforme o anátema proferido contra ele pelo Con- selho da Sinagoga daquela cidade. É um texto considerado ina- cabado, somente publicado após a morte do i lósofo, em 1θιι, junto com a Ética e o Tratado Político, entre outros. Dedica-se ao problema do conhecimento, apontando a necessidade de uma “reforma” da inteligência ou do intelecto, ao invés de propor reά gras metodológicas que conduzam uma investigação na direção da verdade, à maneira das Regras para a direção do espírito, de Descartesέ Inicia sua exposição, coni ando ao leitor sua própria experiência na travessia do “certo” ao “incerto”έ Ai rmaμ “me de-

cidi afi nal” (TRI, §β, em itálico no original), como quem “foi

decidido” no processo, levado a uma transformação na “ordem e conduta diária” da vida a que não se chega sem insistir, sem saber no que vai darμ “tentei isso muitas vezes, sem resultado”έ O risco que implica tal mudança de atitude é real: “via-me, as- sim, revirar em extremo perigo e ser obrigado a procurar, com todas as minhas forças, um remédio, ainda que incerto; como um doente, atacado de fatal enfermidade, que antevê morte cer- ta se não encontra um remédio” (TRI, §ι)έ3 Não é o caso de o

remédio expurgar a “má conduta” em proveito da “boa”, pois as moções do desejo estão interligadas, uma coisa podendo servir de meio ou i nalidade a outra e viceάversaέ A questão é não apenas encontrar um instrumento de regência mental das várias moções de investimento como também ai náάlo e depuráάlo para que seja o mais l exível, abrangente e útil possívelέ

3 Como nessa passagem utilizei a tradução de Bernard Rousset, que difere da de Lívio Teixeira, de que me sirvo nas demais citações do TRI, reproduzo o ori- ginal em latim: Videbam enim me in summo versari periculo, et me cogi, remedium, quamvis incertum, summis viribus quaerere. Em latim versare signii ca voltar, , revirar, revolver, o que colocaria Espinosa na tradição de muitos poetas e escritores que deram testemunho dessa experiência terrível de solidão e derrelição, antes ainda que algo se construa como arte ou teoria.

O conhecimento “da união da mente com a natureza intei- ra” (TRI, §1β) é a intuição de que, mesmo conhecendo as modaliά zações determinadas que a coni guram (corpos e ideias), a mente pode conceber os efeitos de diferenciação como partilhando o substrato comum – “a natureza inteira” – que se encontra parciaά rizado nas afecções da coisa singular que é o homem. As redes e ligações entre as coisas são complexas e guardam relação com os aparelhos de conhecimento que as abordam, com franjas ini nitas cujas conexões ignoro. Posso não ter poder para destrancar de- terminados circuitos fechados que me são, aqui e agora, inacessí- veis aos conhecimentos de que disponho. Mas, com instrumentos adequados – “o entendimento pela força natural fabrica para si instrumentos intelectuais com os quais ganha outras forças para outras obras intelectuais e com estas outros instrumentos ou ca- pacidades de continuar investigando” (TRI, § γ0άγ1) –, é possível furar as resistências e produzir metamorfose e arte. Não há mis- tério, em metafísica e alhures, nem necessidade de provar exis- tência e pensamento, pois nem a verdade vem de fora, por garan- tia transcendente, nem “gênios malignos” fornecem contraprova para a experiência de haver, ser e pensar, muito menos daí advem algum sujeito consciente com ideias claras e distintas. Partir de uma ideia, investigá-la e testá-la: esse é o caminho.

Quanto mais a mente acompanha os processos de conhe- cimento que ela própria é como capacidade de articulação de ideias e coisas, mais entende a “ordem da natureza” (TRE, §γλ)έ Conhecendo seus processos de articulação, a mente se torna mais apta a “dirigirάse e estabelecer regras para si mesma”, do mesmo modo que entendendo a ordem da natureza, “tanto mais facilmen- te pode evitar o que é inútil” (TRE, §40)έ

Como a engenharia e engenhosidade da natureza não dife- rem das da mente (humana), Espinosa concebeu esta última como

autômato espiritual (TRE, §85): uma rede de determinações pas-

sível de metamorfose, que é complexa e anônima, funcionando a partir dos mesmos elementos de base da potência substancial, sendo espiritual por ser pura capacidade de articulação, em regi- me de transitividade com o conhecimento que a substância é. Por

isso, o entendimento “forma as ideias positivas antes de formar as negativas” e “percebe as coisas não tanto como sujeitas à duraά ção, mas sob o ponto de vista da eternidade e em número ini nitoν ou melhor, ao perceber as coisas não considera nem seu número nem sua duração” (TRE, §10κ)έ

4. Conclusão

Encerro minha exposição voltando à Ética, onde a questão do conhecimento, lançada no Tratado da Reforma da Inteligência é aprofundada. Apenas indicarei, para futuro desenvolvimento, a formulação das três gêneros do conhecimento: imaginação, noção comum e ciência intuitiva (E II, prop. 40, esc. 2) e sublinhar o valor deste último. Imaginar é considerar presentes e operantes impressões e afecções que perderam a funcionalidade, em uma concatenação que exclui a possibilidade do seu contrário (E II, prop. 17, esc. e prop. 18, esc.). A força do hábito desempenha uma função estratégica na imaginação, pois tende a repetir com- pulsoriamente (se não mesmo compulsivamente) um determina- do encadeamento de ideias e coisas, paralisando e impedindo a possibilidade de transformação.

Mas há um percurso de compreensão da condição de ser parte da potência divina e, ao mesmo tempo, existir em ato na de- terminação do nexo ini nito das causas, e que encontra expressão cognitiva no conhecimento do segundo e terceiro gêneros.

O segundo gênero ou conhecimento por noção comum (E II, prop. 36) suspende a operação regional de individuação, en- tendida como recorte, separação e exclusão, e reclama as proprie- dades comuns das coisas. Indiferenciando os valores atribuídos às coisas – que as fazem umas privilegiadas em relação às ou- tras – a noção comum é o entendimento de que virtualmente tudo concerne a uma mente capaz de sentir, sofrer e perceber muitas coisas de muitas maneiras simultaneamente (E II, prop. 13, esc.). A sabedoria consistiria em progressivamente produzir estranheza sobre os recortes operados ou, em termos espinosistas, suspender os efeitos do hábito, que tende a repetir um determinado enca-

deamento de afecções, em detrimento de outros. Isso permitiria investimento na produção de novas composições, modii candoάse com um afeto referido “a muitas causas diferentes” (E V, prέ λ)έ

O terceiro gênero do conhecimento ou ciência intuitiva corresponde ao autômato espiritual, no sentido do “conhecimen- to adequado da essência das coisas” (E II, propέ 40, escέ β)έ Sua expressão afetiva Espinosa concebeu como “amor intelectual de Deus”, pelo qual Deus se explica pela potência do pensamento humano, outra maneira de dizer que o pensamento é eterno.

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