• Nenhum resultado encontrado

Estágio 6: A orientação pelo princípio ético-universal.

3. CORREÇÃO NORMATIVA NA TEORIA E NA PRÁTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEAS 

3.3. Correção normativa na jurisprudência do STF – O caso Ellwanger 

3.3.2. O balanceamento de valores como fundamentação explícita na argumentação 

O voto do Ministro Celso de Mello traz um elemento relevante para a argumentação empreendida no caso. Por um lado o ministro diz ser “inquestionável” a tensão dialética entre valores essenciais, e que os antagonismos devem ser resolvidos pelo STF com recurso ao “método racional” da ponderação, numa “perspectiva axiológica concreta”; por outro,

      

186

BRASIL (2003). HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. Relator orig.: Min. Moreira Alves. Relator para o acórdão: Min. Maurício Corrêa. www.stf.gov.br, Supremo Tribunal Federal., fls. 546-553.

entende não haver, no caso, um real conflito entre direitos, já que a própria liberdade de expressão é submetida a “limitações externas” por normas constitucionais garantidoras da dignidade humana. Dessa forma, passa a ser um requisito da própria liberdade de expressão que seu exercício não implique na realização de práticas discriminatórias.

Valendo-se de uma linguagem típica da compreensão axiológica dos direitos fundamentais, a argumentação do ministro nesse caso aproxima-se, não obstante, de uma compreensão sistêmica da hermenêutica jurídica apta a captar o sentido complexo dos direitos num ordenamento caracterizado pela

integridade:

É inquestionável que o exercício concreto da liberdade de expressão pode fazer instaurar situações de tensão dialética entre valores essenciais, igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional, dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de colisão de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idêntica estatura jurídica, a reclamar solução que, tal seja o contexto em que se delineie, torne possível conferir primazia a uma das prerrogativas básicas, em relação de antagonismo com determinado interesse fundado em cláusula inscrita na própria Constituição.

O caso ora exposto pela parte impetrante, no entanto, não traduz, a meu juízo, a ocorrência, na espécie, de situação de conflituosidade entre direitos básicos titularizados por sujeitos diversos.

Com efeito, há, na espécie, norma constitucional que objetiva fazer preservar, no processo de livre expressão do pensamento, a incolumidade dos direitos da personalidade, como a essencial dignidade da pessoa humana, buscando

inibir, desse modo, comportamento abusivos que possam, impulsionados por motivações racistas, disseminar, criminosamente, o ódio contra outras pessoas, mesmo

porque a incitação - que constitui um dos núcleos do tipo penal - reveste-se de caráter proteiforme, dada a multiplicidade de formas executivas que esse comportamento pode assumir,

concretizando, assim, qualquer que tenha sido o meio empregado, a prática inaceitável do racismo.

Presente esse contexto, cabe reconhecer que os postulados da igualdade e da dignidade pessoal dos seres humanos constituem limitações externas à liberdade de expressão, que não pode, e não deve, ser exercida com o propósito subalterno de veicular práticas criminosas, tendentes a fomentar e a estimular situações de intolerância e de ódio público.187

Estabelecendo os argumentos que prevalecerão na decisão final, o Ministro Gilmar Mendes, em voto vista, baseia-se no princípio da proporcionalidade para a construção de sua fundamentação, não sem antes também rechaçar uma conceituação biológica para o significado jurídico de raça, afirmando ser “pacífico hoje o entendimento segundo o qual a concepção

a respeito da existência de raças assentava-se em reflexões pseudo- científicas”188. Analisando sistemicamente o ordenamento jurídico, com especial atenção aos instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil, conclui o ministro pela inviabilidade de se atribuir interpretação outra à constituição:

Assim não vejo como se atribuir ao texto constitucional significado diverso, isto é, que o conceito jurídico de racismo não se divorcia do conceito histórico, sociológico e cultural assente em referências supostamente raciais, aqui incluído o anti-semitismo.189

      

187

BRASIL (2003). HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. Relator orig.: Min. Moreira Alves. Relator para o acórdão: Min. Maurício Corrêa. www.stf.gov.br, Supremo Tribunal Federal., fls. 630-31, grifei.

188

BRASIL (2003). HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. Relator orig.: Min. Moreira Alves. Relator para o acórdão: Min. Maurício Corrêa. www.stf.gov.br, Supremo Tribunal Federal., f. 639.

189

BRASIL (2003). HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. Relator orig.: Min. Moreira Alves. Relator para o acórdão: Min. Maurício Corrêa. www.stf.gov.br, Supremo Tribunal Federal., f. 649

Mas o ministro identifica um problema de conflito entre direitos, na medida em que “a discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático,

a própria idéia de igualdade”190, e menciona decisão da Corte Européia de Direitos Humanos onde, com a aplicação do princípio da proporcionalidade, se confrontou a liberdade de expressão com a proibição de abuso de direito, tendo

prevalecido, no caso, a liberdade de expressão.

Cabe o questionamento sobre a adequação dessa descrição do problema. Trata-se de um conflito entre direitos, ou de um conflito entre pretensões e interesses? O exercício legítimo de um direito, como o da liberdade de expressão, pode configurar, ao mesmo tempo, uma violação de direitos, uma ilegalidade? Nesse sentido é a crítica de Marcelo Cattoni:

Afinal, ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, abusiva, criminosa, ou, então, do exercício regular, e não abusivo, de um direito. (...) Como é que uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito? Como se houvesse uma conduta meio lícita, meio ilícita?191

Apesar da terminologia utilizada pelo ministro em sua fundamentação, entendemos que seus argumentos se mostram sólidos da perspectiva da

      

190

BRASIL (2003). HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. Relator orig.: Min. Moreira Alves. Relator para o acórdão: Min. Maurício Corrêa. www.stf.gov.br, Supremo Tribunal Federal., f. 651, grifei.

191

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (2006). O caso Ellwanger: uma crítica à ponderação de valores e interesses na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte., p. 7

justiça como correção normativa. A própria leitura do sentido a ser atribuído como constitucionalmente válido à liberdade de expressão é coerente com as exigências do ordenamento jurídico em sua integridade:

Não se contesta, por certo, a proteção conferida pelo constituinte à liberdade de expressão. Não se pode negar, outrossim, o seu significado inexcedível para o sistema democrático. Todavia, é inegável que essa liberdade não

alcança a intolerância racial e o estímulo à violência, tal

como afirmado no acórdão condenatório.192

A mesma postura se percebe na passagem de Martin Kriele transcrita no voto, ao evidenciar a conexão interna entre direitos fundamentais e democracia:

O uso da liberdade que prejudica e finalmente destrói a liberdade de outros não está protegido pelo direito fundamental. Se faz parte dos fins de um direito assegurar as condições para uma democracia, então o uso dessa liberdade que elimina tais condições não está protegido pelo direito fundamental.193

Trata-se de um caso exemplar, mas cuja análise nem de longe esgota a possibilidade de verificação de decisões onde a noção de justiça como correção normativa opera de forma decisiva. Outro exemplo recente é a

      

192

BRASIL (2003). HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. Relator orig.: Min. Moreira Alves. Relator para o acórdão: Min. Maurício Corrêa. www.stf.gov.br, Supremo Tribunal Federal., f.670, grifei.

193

KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del Estado. Buenos Aires: De Palma, 1980, p.475,

apud BRASIL (2003). HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo.

Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. Relator orig.: Min. Moreira Alves. Relator para o acórdão: Min. Maurício Corrêa. www.stf.gov.br, Supremo Tribunal Federal., f. 956.

decisão proferida no julgamento do HC 82.959-7/SP194, onde o STF declarou a inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime em crimes hediondos. Da mesma forma, o princípio da proporcionalidade foi utilizado, especialmente pelo Ministro Gilmar Mendes.

Embora a fundamentação tenha sido explicitada com base na idéia de ponderação em vários casos, isso não impede que tais decisões contribuam para a integridade do ordenamento jurídico, no sentido defendido por Dworkin, de forma a que sejam preservadas como eqüiprimordiais tanto a idéia de justiça quanto a de segurança jurídica. Tais decisões, sendo ou não vinculantes no sentido do common law, constituem precedentes e desempenham papel fundamental em nossa história institucional.

      

194

BRASIL (2006). HC 82.959-7/SP. PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO -