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Estágio 6: A orientação pelo princípio ético-universal.

3. CORREÇÃO NORMATIVA NA TEORIA E NA PRÁTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEAS 

3.2. Limites internos e externos – conflitos de valores 

3.2.2. O problema da teoria externa 

O problema central da chamada teoria externa é conceber os direitos como a princípio ilimitados, carecedores de atos externos legislativos ou judiciais para lhes emprestar limites, de forma constitutiva. Ora, mesmo no silêncio do texto qualquer direito, inclusive os clássicos direitos individuais, só pode ser compreendido adequadamente como parte de um ordenamento complexo. Toda nossa experiência histórica acumulada, o aprendizado duramente vivido desde o alvorecer da Modernidade não nos permite hoje a ingenuidade de acreditar, por exemplo, que os direitos “de primeira geração”, afirmados no marco do paradigma constitucional liberal possam hoje ser lidos como direitos ao egoísmo, anteriores a qualquer vida social, como simples limites à ação,externamente observados, e não como condição de possibilidade da liberdade. A tensão entre público e privado perpassa qualquer direito, seja individual ou coletivo. Isso compõe o pano de fundo de nossa compreensão dos direitos, e se torna indisponível quando da atribuição de

sentido a um direito como o de propriedade. Independente de menção expressa na Constituição, todo direito individual deve cumprir uma função

social, e isso integra internamente seu próprio sentido para que possa ser

plausível.

Essa leitura principiológica e sistêmica exigida pela chamada teoria

interna exerce força explicativa mesmo para Mendes que, embora advogue a

concepção externa de restrições, não raro afirma interpretações que levam em conta os requisitos de uma hermenêutica atenta ao sentido imanente dos princípios num paradigma constitucional democrático, para além das previsões textuais. É o que se verifica em sua leitura do inciso LXVI do art. 5° da Constituição154:

No que se refere à liberdade provisória, também optou o constituinte, aparentemente, por conferir amplo poder discricionário ao legislador, autorizando que este defina os casos em que seria aplicável o instituto. É quase certo que a expressão literal aqui é má conselheira e que todo o modelo de proteção à liberdade instituído pela Constituição recomende uma leitura invertida, segundo a qual haverá de ser admitida a liberdade provisória, com ou sem fiança, salvo em casos excepcionais, especialmente definidos pelo legislador.155

Ora, qual o caráter externo da limitação da restrição da liberdade provisória, senão o próprio sentido (interno) dessa garantia no contexto constitucional democrático, como densificação dos princípios da liberdade e da igualdade? Naturalmente não nos referimos a esse caráter interno como algo

ontológico, transcendente, meta-social ou metalingüístico, visto que a natureza

      

154

“ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança;” BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.

155

MENDES, Gilmar Ferreira (2004). Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:

dinâmica de qualquer semântica, especialmente das normas, se tornou patente após a virada lingüístico-pragmática empreendida pela Filosofia em meados do século XX, cujos efeitos se espraiam por todos os campos do saber. É claro que essa atribuição de sentido às normas é externa a elas, no sentido de que só os intérpretes podem lhes atribuir. Mas isso não faz com que o sentido constitucionalmente adequado seja, em face de todo o ordenamento, externo.

Quanto aos direitos fundamentais sem expressa previsão de reserva legal, afirma Mendes156 que “também nesses direitos vislumbra-se o perigo de conflitos em razão de abusos perpetrados por eventuais titulares de direitos fundamentais.” Mas, estando o legislador a princípio impedido de “limitar” tais direitos, de forma a coibir abusos, as “colisões de direitos” ou “entre valores” poderiam ser impedidas mediante o excepcional apelo “à unidade da Constituição e à sua ordem de valores”, segundo interpretação da Corte Constitucional alemã157.

Se, por outro lado, adotarmos a concepção segundo a qual nenhum direito constitucional é a princípio “ilimitado”, em face da própria Constituição, a tarefa interpretativa a ser adotada por qualquer aplicador, do legislador ao administrador, passando pelo juiz, implicará necessariamente em atribuições de sentido conformadoras do conteúdo normativo, sem que isso implique, entretanto, em redução do âmbito de proteção. O direito, entendido em sua

      

156

MENDES, Gilmar Ferreira (2004). Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:

estudos de direito constitucional. 3. São Paulo, Saraiva., p. 40

157

MENDES, Gilmar Ferreira (2004). Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:

integridade, não pode se voltar contra o próprio direito. Por isso a figura da colisão não retrata de maneira plausível a tensão imanente ao ordenamento jurídico. Além disso, é de se lembrar que abusos de pretensões a direitos existirão independentemente de regulação legislativa, não podendo jamais ser definitivamente coibidos em abstrato. Aliás, é precisamente a regulação legislativa abstrata que por si só há que ser vista como incentivadora de abusos. Apenas num discurso de aplicação que leve a sério as especificidades de cada caso concreto as ilegítimas pretensões a direitos, calcadas inclusive em previsões legais literais, poderão ser desveladas como abusos, como não direito.

Mais uma vez a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação é central para que possamos compreender adequadamente o próprio sentido (e os “limites”) de qualquer direito. Normas gerais e abstratas não são capazes, por si só, de coibir a chamada fraudem legis, como já percebia Ferrara:

Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na observância formal do ditame da lei, e na violação substancial do seu espírito: tanturn sententiam offendit et verba reservat. O fraudante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir o mesmo resultado ou pelo menos um resultado equivalente ao proibido; todavia, como a lei deve entender-se não segundo o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proibição deve negar eficácia também àqueles outros meios que em outra forma tendem a conseguir aquele efeito158.

      

158

FERRARA, Francesco (1963). Interpretação e aplicação das leis. 2ª Ed. Trad. Manuel A. D. de Andrade. Coimbra, Arménio Amado Editor., p. 151.