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O BARRIL IMAGINAL: EM COMPANHIA DE BACHELARD, JUNG, DURAND E

Carl Jung, Gaston Bachelard, Gilbert Durant e James Hillman, profundos conhecedores da alma humana e de seu pertencimento à alma do mundo, serão meus companheiros-guias neste trajeto árduo, de descidas, subidas, voos e mergulhos. Sem diminuir a importância de outros autores importantes, os trabalhos de Jung, Bachelard, Hillman e Durand (conhecidos por mim nessa ordem), permitiram-me compreender vários aspectos da minha história de vida, principalmente aquelas imagens apresentadas na minha autobiografia. Foram escolhidos por dois motivos: primeiro, porque seus estudos inauguram um novo olhar sobre a imaginação e o imaginário, recuperando a importância das imagens e do arcaísmo psíquico-social-cósmico na constituição do ser humano e no seu modo de agir no mundo; segundo, por uma questão de afinidade, pois tocaram em mim de alguma forma na primeira vez em que os li. Acredito que um pesquisador só segue um determinado caminho teórico se, nesse mesmo caminho, ele compreender a si próprio e o seu entorno. O que parece dar sentido a uma pesquisa é justamente quando a teoria e o caráter do pesquisador entram em ressonância.

O recurso teórico-metodológico - Bioconto - e as análises sequenciais das narrativas foram desenvolvidos partindo de quatro pilares teóricos: a psicologia profunda de Carl G. Jung, que alargou a noção de inconsciente para a esfera coletiva, mostrando que não temos apenas o inconsciente pessoal, mas também a presença de arquétipos (coletivos) que dão sentido à vida humana e que são dotados de uma força criativa fundante. O inconsciente, portanto, não é um local de conteúdos reprimidos, mas de imagens fundadoras de ordem e desordem. É também a partir dessa retomada dos arquétipos, que Jung enxerga a alquimia como um lugar onde o processo de individuação acontece. Nesta pesquisa, posso dizer, que as narrativas, de algum modo, apresentam elementos de uma obra alquímica, um lugar de vivência de opostos.

Bachelard, para quem a imaginação está sustentada pela força poética dos quatro elementos da natureza conhecidos na antiguidade (Fogo, Terra, Ar e Água). Por meio do devaneio, como fonte de criação, foi possível enxergar nas narrativas essas imagens materiais e, a partir delas, amplificar e redesenhar pontos biográficos

de conteúdo simbólico. O bioconto não deixa de ser um modo de mostrar essa materialidade das imagens presente nas narrativas de vida.

Com Gilbert Durand, vimos como é possível manter em diálogo os regimes diurno e noturno que aparecem nas narrativas. A partir da estrutura dramática ou sintética25, e da ideia de imaginação simbólica como equilibradora psicossocial, foi possível trazer, no bioconto, alguns antagonismos presentes nas narrativas, mostrando que a força vital de cada pessoa está justamente no diálogo entre essas faces diurnas e noturnas, conjuminando assim uma imagem simbólica de cada composto narrativo.

Com Hillman, foi possível compreender como é ver através da imagem, como enxergar a imagem sem que para isso seja preciso defini-la ou conceituá-la. Com a noção de "patologizar" (1992; 2010a), a doença, passou a ser um modo de alma dessas professoras falarem. O bioconto recupera os dramas decorrentes do adoecimento e não os condena como certo ou como errado, mas como meio para se compreender quem fala nesse processo. Com Hillman, aprendi que a multiplicidade da alma é constituidora do ser humano e que, para conhecer suas faces, é necessário, antes, reconhecer que os antagonismos são o modo de ser da alma. Assim, doença e sofrimento passam a ser uma brecha por onde essas faces da alma podem ser (re)conhecidas por nós como fonte de beleza.

Esses quatro autores, sendo Jung, Durand e Hillman membros do Círculo de Eranos26, nos seus respectivos campos de estudo, tiraram o véu de simplificação que pairava sobre a sociedade humana, descortinando suas mais ricas origens, de cunho simbólico e arquetípico. Compreenderam que o corpo dos saberes, formado sob a égide da ciência cartesiano-positivista, era envolto por um véu de simplificação que impedia que o próprio ser humano pudesse perceber que a sua maior certeza era também seu maior algoz. A certeza de uma verdade absoluta impedia que outros saberes fossem compartilhados como formas de conhecimento. Em contrapartida, esses quatro senhores da imaginação resgataram essa criança e a adotaram como a filha mais preciosa; cresceu assim a bela e pujante

25

A Estrutura dramática ou sintética tem relação com o Terceiro Termo Incluído de Stephane Lupasco, que será explicado no capítulo 4.

26 O Círculo de Eranos foi criado em 1933, por Olga Froebe-Kapteyn, em Ascona, Suíça. Esse

encontro, um verdadeiro banquete na própria acepção da palavra, reunia pesquisadores de várias áreas do saber e, por isso, configurou-se num verdadeiro diálogo transdisciplinar, um lugar onde as faces de Janus trocam sinceros olhares na busca de compreender o claro-escuro da vida.

Respeitabilidade pela diferença e por tudo aquilo que há de vasto e simbólico em nós e no mundo. A Respeitabilidade permite vermos a dança dos opostos, em suas várias coreografias e roupagens, sendo um ato de humildade psíquica, adquirida somente quando somos tomados pelo símbolo, alcançando, assim, uma consciência simbólica (PANIKKAR, 2004). Retire as imagens da narrativa e você abaterá o narrador de devaneios do próprio sonho-narrado.

No meu entender, esses quatro pastores de imagens lançaram o desejo de ver o ser humano mais voltado para esse manancial de imagens divinas das quais tiramos a energia para driblar a morte e, por conseguinte, nos deleitarmos no berço da eternidade. Deles, apreendo a imaginação simbólica como equilibradora psicossocial (DURAND), a alquimia como vivência dos opostos e experiência da totalidade (JUNG), a ação de patologizar a alma ou a patologia como necessidade da alma, como reveladora de sua multiplicidade e de sua beleza (HILLMAN).

Aprendemos a dividir e a fragmentar o mundo, ou o mundo é fragmentado conforme sua natureza? Parece-me que é a necessidade heroica, no sentido durandiano de divisão e de excludência, do ser humano que fragmenta os saberes construídos por ele próprio, não para tentar compreendê-los, mas apenas para explicá-los e reduzi-los a representações, a signos e a conceitos.

Partindo de uma visão transdisciplinar, como apregoa a Teoria Geral do Imaginário de Gilbert Durand, o mundo é complexo e seus elementos se relacionam como uma grande teia, sendo, portanto, repleto de sentido e prenhe de imagens epifânicas, como um grande oceano, ainda não perscrutado em sua profundidade. Essa epifania aparece no intercâmbio entre o mundo concreto, imanente, onde vivemos e o mundo dos sonhos, onde nascem as imagens, onde nossa imagem de seres humanos está destinada a uma transcendência, a uma recondução às imagens sagradas. Com a racionalização do mundo e seu consequente desencantamento, sobretudo a partir da Modernidade, as imagens, simbólicas e epifânicas, reveladoras de um mundo almado, foram ignoradas e mantidas como discurso fantasioso, sem nexo com a realidade e permeadas por obscurantismos. Esse iconoclasmo é bem mais remoto do que possamos crer, e é, de certa forma, perpetuado e mantido pelas nossas instituições de ensino. Durand (1988; 2004) aponta que toda uma tradição, desde Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), passando pela Idade Média e Modernidade e chegando ao nosso mundo contemporâneo, foi

responsável pela transformação do símbolo em signo, retirando da imagem seu caráter mítico-arquetipal e reduzindo a complexidade da alma humana a uma face apenas espiritual, heróica e unilateral. Essa face procura sempre se destacar do mundo - se desligar do corpo -; em vez de se mesclar e se fundir, prefere conceituar a manter o mistério, prefere a luz ofuscante da razão ao barro mole e úmido dos afetos. O iconoclasmo Moderno parece mesmo representar a preferência por uma simplificação do símbolo e uma redução da imagem ao seu conteúdo concreto. O pensamento indireto foi substituído pelo pensamento direto, as epifanias da transcendência pelos dogmas e a "imaginação abrangente" pelas explicações causais do cientificismo que, de certo modo, ainda são válidas para alguns contextos e campos do saber.

Durand (1988), ao criticar a postura moderna ocidental perante a imagem e a imaginação, procura instaurar a imagem como meio de evocar um sentido, que é sempre transcendente e múltiplo. Ou seja, o autor propõe restaurar a imaginação como imaginação simbólica que nos "permite viver em um mundo da intercessão ontológica onde se epifaniza um mistério”. Uma imagem, com sua situação histórica e existencial marcada, precisa ser sempre revivida para que seu mistério permaneça. Símbolo, nas palavras de Durand (1988, p. 36) é a "confirmação de um sentido para uma liberdade pessoal" que, por sua vez, é "poética de uma transcendência". Aquilo que ele denomina de hermenêutica redutora é responsável por tirar o mistério do símbolo, pois o transpõe sempre para o mundo da luz, onde sua epifania é apagada e deformada por um dogma, conceito ou definição. Desse modo, cabe pensar se os dicionários de símbolos, apesar de toda a sua importância para os nossos estudos, não deixam de ser redutores ao atribuir significados às imagens que as fecham e que as impedem, de certa forma, de serem revividas ou imaginadas por outrem. Do mesmo modo, a pedagogia, iconoclasta, rouba-nos a possibilidade de sermos seres de múltiplas faces e possibilidades, impõe-nos uma forma de ser, pensar e sentir, que reduz o nosso olhar para aquilo que é diferente de nós e transcendente aos nossos passos. Da mesma forma que reduzimos o símbolo ao signo, a educação iconoclasta que, por um lado, nos legou grandes avanços científicos e tecnológicos, por outro, reduziu o humano a um cumpridor de normas e preceitos racionais, ditados por um saber fechado e preconceituoso, autoritário e excludente. Uma pedagogia iconófila, portadora e doadora de símbolo, pode

restaurar o que há de epifânico em mim, em nós e no mundo, tornando a vida um mistério não a ser apenas explicado, mas, fundamentalmente, compreendido. Como diz Durand (1988), o ideal não é subjugar as produções diurnas em prol das noturnas, mas mantê-las em harmonia com a força da imaginação simbólica.

A imaginação simbólica, que confere à imagem a sua capacidade de se apresentar sempre diferente, infinitamente, é função equilibradora da psique. A perda dessa função torna o pensamento doente, ou seja, "um pensamento que perdeu o 'poder de analogia' e no qual os símbolos se desfazem, se desempregam de sentido" (DURAND, 1988, p. 59). O pensamento simbólico é um restaurador de equilíbrio (GARAGALZA, 1990, p. 68) e, portanto, tem função de mediador entre as faces simbólicas diurnas - produzidas pelo modelo científico-positivista, com ideais de progresso e conquista - e noturnas - produzidas pela arte, pela poesia e pela psicologia profunda - que constituem o Imaginário coletivo. Se a doença mental é a perda do poder da função simbólica, a "saúde mental é sempre, e até as portas do desmoronamento catatônico, uma tentativa de reequilibrar um regime através da outro" (DURAND, 1988, p. 104), compreendendo esse "reequilibrar" como relacionado ao fluxo e refluxo entre um regime e outro, sem cair nos excessos de um e de outro. O caminho do meio, percorrido pelo símbolo, mantém em comunicação as falas diurnas e noturnas propaladas pelo capital simbólico e cultural da humanidade. Assim, uma pedagogia inocófila, que não se restringe apenas à escola, pode-se configurar como "uma verdadeira sociatria que dosa com muita precisão, para uma determinada sociedade, as coleções e as estruturas de imagens que ela exige para seu dinamismo evolutivo" (ibidem, p. 105). Concebo, portanto, a imaginação - simbólica - como função (re)equilibradora das perspectivas racionais e afetivas que nos constituem e que se manifestam em toda a sua força na dinâmica escolar (e educacional). É a imaginação simbólica que me permite buscar a imagem ou as imagens expressas nas narrativas das professoras readaptadas, tendo como pressuposto de tese que a readaptação abriria para o cultivo da alma e amplificaria o olhar delas sobre o ser professor e a escola.

A ideia de imaginação como função simbólica, como mediadora entre os dois regimes de imagens que formam o Imaginário, aproxima-se, no meu entender, do processo alquímico de união dos opostos. Conforme Jung,

A operação alquímica consistia essencialmente numa separação da primeira matéria do assim chamado caos, o princípio ativo, isto é, a alma, e no princípio passivo, isto é, o corpo, os quais posteriormente se reunificavam sob a forma personificada da 'coniunctio', do 'matrimonium chymicum'; em outras palavras, a 'coniunctio' era vista como uma alegoria do hierosgamos, a união ritual do Sol e da Lua. Dessa união nascia o filius sapientiae, ou philosophorum: o Mercurius transformado, considerado como hermafrodita (OP 13,

§157, 2002, p. 125).

A imaginação, como figura hermafrodita, como filha de Hermes, é um transeunte entre as produções humanas da planície e do vale. O pensamento simbólico, gnóstico e tradicional, busca sempre um sentido em tudo que vê (DURAND, 1998). Como observa Hillman (2013, p. 89), "o trabalho alquímico teve que deformar a natureza a fim de servir a natureza. Teve que machucar (ferver, separar, despelar, dissecar, putrefazer, sufocar, afogar etc.) a natureza natural a fim de libertar a natureza animada". Nessa perspectiva, as reflexões de Jung acerca da Alquimia, sobretudo nos volumes XII e XIII de suas obras completas, são fundamentais para compreender o construto simbólico do trajeto de vida - desde o processo de adoecimento até a readaptação, compreendendo a readaptação como um lugar de onde se poderia vislumbrar um outro modo de ser professora e de ser escola - e ultrapassar a visão dicotômica que temos sobre aquilo que o ser humano constrói. Assim, a ideia alquímica de união dos opostos se relaciona com a ideia de Durand sobre a razão hermética, em que a lógica das contradições é substituída por uma coincidentia oppositorum, ou seja, aquela em que não há opostos, mas polos de um mesmo elemento; os antagonismos sendo mantidos. Essa ideia, acolhida por Jung e Durand, está relacionada diretamente ao que Durand (2004) denominou de trajeto antropológico, ou seja, a troca que existe no nível do imaginário entre as perspectivas subjetivas e as intimidações objetivas do mundo material.

É nessa perspectiva da imaginação como função simbólica, que estudos e reflexões de James Hillman sobre as imagens são fundamentais para o meu trabalho, sobretudo porque ele desenvolve a ideia de que o “patologizar” é uma hermenêutica que leva os eventos até o significado, pois

apenas quando as coisas se despedaçam é que elas se abrem para novos significados; apenas quando um hábito diário se torna sintomático, uma função natural torna-se uma aflição, ou quando o corpo físico aparece nos sonhos como uma imagem patologizada, um significado desponta" (HILLMAN, 2010a, p. 231).

É partir disso que considero a readaptação como um processo pelo qual a pessoa pode vislumbrar novas imagens construídas sobre si ou que podem ser construídas sobre si. O próprio trabalho de Hillman nos ajuda a entender que as histórias de vida de cada sujeito são arquetípicas por si mesmas, sem que haja necessidade de relacioná-las, diretamente, com os mitos conhecidos. Arquetípicas por se reportarem a realidades comuns à humanidade, que convergem fundamentalmente nas tramas míticas. Hillman ajuda-me a entender a Imagem por si mesma, sem reduzi-la à vida diária de cada professor, como se fossem apenas compensação ou recalque, oriundos da vida prática. Na leitura que faço desse autor, a Imagem, de fundo arquetípico, não é o resultado, mas a origem do sentido que damos às nossas vivências e experiências diárias.

Apesar de não reconhecer esse necessário intercâmbio entre diurno e noturno, como fez Durand, Gaston Bachelard elevou a imaginação novamente ao seu posto de fomentadora de devaneios, transbordante de afetos e de sonhos materiais. Para Bachelard (1994, p. 58) "a fenomenologia primitiva é uma fenomenologia da afetividade: fabrica seres objetivos com fantasmas projetados pelo devaneio, imagens com desejos, experiências materiais com experiências somáticas e fogo com amor". A imaginação material de Bachelard tem algo de somático, pois está fincada nos quatro elementos da natureza pensados pelos gregos. A vida humana é poética da natureza, é veiculada por meio dos devaneios naturais e materiais que governam nosso mundo. "A imaginação opera no seu extremo, como uma chama [...]" (BACHELARD,1994, p. 161), em instantes de eternidade, movida por energias em mutação, como o próprio turbilhão do cosmos.

No meu entender, ao dar vida aos elementos básicos da natureza - o fogo, a terra, o ar e a água - Bachelard nos transporta para um nível de realidade onde nós somos herdeiros dos hábitos cósmicos. Temos em nós esses elementos e, da mesma forma que a imaginação está em nós, ela também está no mundo, no universo. Nossa vida é movida por ciclos, por mortes e renascimentos, por suspiros de dor e alegria; é governada por uma imutabilidade inconstante, que, como um sistema aberto, se atualiza como um mito do eterno retorno. Não inventamos o universo, mas seguimos seu fluxo, comportamo-nos como ele, e ao tentar interpretá- lo, não fazemos mais do que cumprir o destino dele em nós. Assim, as imagens

também revelam uma realidade interna, sem que tenhamos necessidade de as transportamos para uma realidade diurna. Muitas vezes, o que é da noite quer permanecer na noite e o que é do dia quer permanecer do dia. Fazer transposições pode sufocar a imagem e destituí-la da força criadora. É com essa força criadora que o "que a educação não sabe fazer, a imaginação realiza como for" (BACHELARD, 2003, p. 8); por isso que a "maior luta não é travada contra as forças reais, é travada contra as forças imaginadas. O homem é um drama de símbolos" (2003, p. 68). Apesar de não fazer a oposição entre forças reais e forças imaginadas, compreendo que o humano é um canal de imagens que estão para seu caminho assim como as estrelas estão para o céu. Só reconhecemos o céu noturno graças às estrelas que nele se manifestam; da mesma forma, reconhecemos o humano graças às imagens que nele provocam vida. Seja o humano diurno ou noturno, é pelas imagens que o imaginário se desvela em beleza, profundidade e mistério.

Da mesma forma que o ser humano é mantido pelas imagens, também sua narrativa é escrita a partir de imagens. A imagem, "com efeito, é menos social do que o conceito, é mais apropriada para nos revelar o ser solitário, o ser no centro de sua vontade" (BACHELARD, 2008, p. 139). É por isso que, quando buscamos em cada narrativa uma imagem de imagens, estamos renovando aspectos inconscientes e aspectos da própria narrativa. Essa renovação não implica na criação do novo, mas na mudança de perspectiva em relação a uma determinada face da narrativa. Assim, praticamos a "micropsicologia ao trabalhar no nível de nossas pequenas imagens" (BACHELARD, 2008, p. 63). O ato de criar é também isso, rever de outro modo o que foi visto, ver pela primeira vez o que ainda não foi visto. Por isso, seguimos uma imaginação criadora em vez de uma imaginação reprodutora. Uma imaginação criadora é um portal de sonhos, pois "os sonhos são maiores: ultrapassam as razões e os símbolos. Os sonhos são imensos. Têm, por uma fatalidade de grandeza, uma cosmicidade" (BACHELARD, 2008, p. 63). É também por isso que uma "imagem tem uma função mais ativa [do que o símbolo psicanalítico]. Por certo tem um sentido na vida inconsciente, por certo designa instintos profundos" (BACHELARD, 2008, p. 62; grifo do autor). Seguindo, portanto, Durand (1988), o imaginário, como um cosmos grávido de imagens, é sempre a "epifania de um mistério". É por isso, no meu entender, que não há necessidade de

que todas as coisas sejam explicadas humanamente, por interesses e objetivos sociais. Sonhar a matéria, sonhar a narrativa talvez não seja uma forma de explicar o humano, mas sim de compreendê-lo.

A ideia de imaginação criadora e material de Bachelard autoriza-me, na minha compreensão, a elevar as narrativas e os elementos que nela estão contidos (dados biográficos) a graus metafóricos, ou seja, autoriza-me a amplificar as imagens nelas expressas de modo que eu dê mais espaço para que elas falem. Para Bachelard, e aqui está um conceito importante para esta pesquisa, a imaginação é "antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação imaginante" (BACHELARD, 2001, p. 1; grifo do autor). As narrativas, como lugar de imagens, na perspectiva da imaginação deformadora, além de conter conteúdos presentes, também carrega uma narrativa ausente. Por isso, também podemos deformar a biografia a fim de que ela se abra em múltiplas faces de significados. Uma narrativa sem imagens amplificadas, sem ser tocada pela imaginação, resume-se a um relato de memórias, lembrança de percepções, cores e formas. É aqui que a imagem do ruineiro da existência, conceito que estou desenvolvendo neste trabalho, também se aplica. Ao imaginar a narrativa das professoras em seus meandros, em seus becos, ele busca a imagem ausente na narrativa e, por conseguinte, torna essa ausência uma Ruína, um lugar onde a