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CAPÍTULO V: As vozes de mulheres profissionais do sexo: a construção de suas

5.2. As vozes das mulheres

5.2.2. A identidade profissional: a necessidade de camuflar

5.2.2.3. O benefício financeiro da profissional do sexo

No discurso das participantes percebe-se que a compensação financeira é o que faz continuar na atividade, a despeito das ameaças, dos estigmas e do medo. Entende-se que é um processo que ocorre em toda a sociedade, a saber, a crise econômica e de emprego. Muitas, mesmo sem se sentirem confortáveis nessa atividade – contrariamente às mulheres que se dedicam à profissão e têm contato com Davida (ver Capítulo 1), atuam na Daspu, por exemplo, e (conforme orientação da definição do Ministério do Trabalho e Emprego, no item F) trabalham pela organização da categoria –, realizam-na porque o ganho em dinheiro é satisfatório.

Em algumas afirmações, percebe-se a importância do ganho financeiro para as participantes, bem como a rejeição à atividade, conforme se vê a seguir:

Cassandra: Olha... eu acho que (xxx) muito legal não... mas... assim...

pra mim... é o que deu dinheiro, né? Ah... é com isso que eu posso

comprar minhas coisas... então eu não reclamo não... Cassandra: (...)mas eu não acho ruim não (risos) Se não fosse isso, eu não ia ter meu dinheiro, né?

Para Cassandra, sua dedicação ao trabalho não vem de um reconhecimento de seu “talento” para a atividade. Ela se dá pela necessidade de seu sustento. É por meio desse trabalho que ela consegue comprar aquilo de que precisa, mesmo considerando a atividade “não muito legal”. Afirmação que reforça a repetição do discurso da sociedade, em que o senso comum considera a prostituição uma atividade ilegal (campo das leis) e imoral (campo religioso).

Nas palavras de Divina, apesar da rejeição à profissão, vemos que ela também se apresenta como uma atividade de emprego. Ao afirmar sua procura por trabalho, uma amiga de Divina a ofereceu um trabalho com programas, como se percebe em seu discurso abaixo:

Divina: Eu tava procurando emprego e uma colega falou pra mim

Podemos destacar o paralelo em “procurar emprego” e “quanto ganhava” nesse período do discurso de Divina. Ainda que haja uma rejeição por parte da sociedade, a atividade é claramente vista como uma ocupação que oferece rendimentos financeiros para sustento da pessoa. É uma atividade marcada, como muitas outras, contudo, para a mulher e para o trabalho com o sexo os estigmas são ainda mais fortes.

Divina ainda traz elementos que mostram um desejo de ascensão dentro da própria profissão. Uma busca por um local de trabalho mais lucrativo, como veremos abaixo, e que é um caminho natural por parte de um indivíduo que escolhe uma atividade profissional. Todavia, mesmo com esse plano em mente, ainda mostra em seu discurso o estigma da atividade.

Divina: Não é que a gente gosta, né? (risos)... éh... do dinheiro a gente gosta... porque... éh... dá um dinheirinho bom, né? Mas eu tô querendo mudar de lugar... em outro lugar acho que vou ganhar mais...

Divina, portanto, não planeja, em princípio, modificar sua atuação profissional. Ela busca trabalhar em um outro estabelecimento que lhe renda um lucro maior. Mesmo não aprovando a atividade, sua perspectiva para um futuro em curto ou médio prazo é continuar realizando esse trabalho.

Sua visão, clara em seu discurso, mostra a necessidade de obter o sustento pessoal (realizado por meio de uma atividade profissional), bem como a marca que a atividade com o sexo como profissão tem na prática da sociedade. Divina se coloca entre um discurso – pois ela não pode se apartar da sociedade em que vive, não vai de encontro a esse pensamento – e outro – tentando manter a atividade que lhe permite obter seu lucro regular. Essas idéias são reforçadas no período abaixo, em que Divina responde como ela vê seu trabalho.

Divina: Eu nunca pensei nisso não... (...) éh... assim... ah... sei lá... só vejo os outros falando mal, né? Então eu acho assim... só tô nisso mesmo porque preciso do dinheiro...

Divina não fala a “sua” opinião. Ela mesma afirma não ter pensado nisso – e os momentos de retração no discurso parecem mostrar que ainda está refletindo, nesse curto período, sobre sua resposta – contudo sua resposta foi a respeito do que ela percebe no julgamento das “outras pessoas”, as quais “falam mal”. Essa a marca da prática de estigma da profissão que ela escolheu, ainda que por necessidade (só tô nisso mesmo porque preciso do dinheiro).

Divina pareceu repetir o discurso como resistência a si própria. Ela não aceita ser uma profissional do sexo simplesmente porque é isso que ela ouve na sociedade. Esse discurso é mais forte e aparece nas suas palavras como um interdiscurso. Fica claro que ele não é seu, é apreendido e reproduzido. Dessa forma, percebe-se que a agenciação em Divina ainda é travada por uma repetição da prática social de estigma à profissional do sexo.

A necessidade de ter um emprego e o discurso profissional para a busca de um trabalho com carteira assinada também são percebidos nos relatos das participantes. Beatriz continua a trabalhar em um emprego com carteira assinada, contudo sua atividade como profissional do sexo lhe rende um lucro extra e é isso que ela busca. Além disso, afirma que mesmo ao atingir seu objetivo de acumular dinheiro para uma necessidade específica, admite que se deixar de realizar a atividade sexual pode voltar para buscar um equilíbrio em suas contas num momento futuro.

Beatriz: Em si eu acho um trabalho (.) normal. Dá... você ganha seu dinheiro, você tem... você trabalha... você tem a sua hora de trabalho...

você trabalha... final de semana, tipo assim, num domingo você não trabalha... o ruim é que não é fichado porque o resto é tudo bom... você ganha... O DINHEIRO É BOM... você ganha um dinheiro, em si, bom... é...

Nas palavras de Beatriz, reproduz-se a estrutura de um trabalho como outro qualquer: o pagamento, os dias e horários de trabalho, as folgas semanais. A única falha, para ela, é a falta da carteira assinada (fichado). Ela também utiliza a palavra “normal”. Mas seu detalhamento para uma atividade “normal” faz dessa escolha uma ocorrência diferente da que fizeram Ágatha e Cassandra acima (5.2.1.1) ao tentarem definir sua família, quando se considera a palavra vazia de significado. Aqui, Beatriz define o que significa para ela a palavra normal, a saber, como qualquer outra. No caso da profissão, há somente a ressalva da ausência do registro profissional, o que também mostra a prática social da pressão por um emprego “fichado”.

As profissionais do sexo sabem do estigma, elas repetem essa marca da sociedade, assumem os reveses, como diz Beatriz, até mesmo na relação com um companheiro.

Beatriz: Mas tem aquela... sabe que é um dinheiro... que ela vai ter dinheiro muito fácil, vai ter sempre... sempre vai ter dinheiro... pra que

homem vai querer largar uma mulher dessa? Não tem como. Mesmo (xxx)... qual o homem que vai ficar com uma mulher ficando com

Beatriz sabe que o senso comum não admite que um homem esteja com uma mulher que se entrega a outros. É vergonha para ele e indignidade para ela. No caso da atividade profissional com o sexo, alguns homens admitem estar com essas mulheres pelo dinheiro, contudo, segundo o relato de Beatriz, por amor é impossível. Esse discurso demonstra que na prática social o interesse pelo dinheiro está acima de qualquer coisa. Admitem-se muitas situações em favor do lucro.

O lucro é importante para Beatriz e o objetivo aqui é reforçar seu discurso para tal e ressaltar que ele representa uma reprodução da prática social, a saber, a busca do sucesso financeiro.

Beatriz: Eu falei e daí, eu saio com os meninos (.) de graça, é melhor ganhar dinheiro com isso.

(...) Homem mais velho paga mais.

(...) Homem mais novo paga pouco, homem mais velho não... é

rapidinho e paga mais...

Mas Beatriz, que compara a profissão a qualquer outra somente fazendo a ressalva da carteira assinada, ainda reluta a aceitar esse benefício se ele for legalmente oferecido pelo Estado. Essa é mais uma marca da força do estigma reproduzido na sociedade, conforme se vê a seguir.

Beatriz: Eu não assinaria (...) Imagine você indo num local “não... vou

fazer um cartão de alguma coisa”... fazer alguma coisa. (...) Exatamente... “me dá tua carteira... trabalha de quê?” Não... sou garota

de programa.

A solução para o problema apontado por Beatriz, ou seja, a falta de registro profissional, não é suficiente para que ela assuma sua profissão. O discurso reproduz a prática de discriminação da sociedade e é muito forte ainda a ponto de afastar uma profissional que, para si, não tem reserva à sua atividade. Todavia ainda não está pronta pra enfrentar o estigma da sociedade.

Enfim, a pressão por emprego, por lucro, a necessidade de subsistência levam, na maioria dos casos, ao ingresso nessa profissão. Contudo encontram-se elementos no discurso das prostitutas que mostram uma incompreensão da falta de reconhecimento de sua atividade. Mas a marca negativa da sociedade e sua resistência a essa profissão fazem com que a profissional exerça seu trabalho às escondidas. Se a crítica do senso comum busca acabar com essa atividade, é importante dizer que não está surtindo efeito.

Pelo contrário, tudo acontece – e sempre vai acontecer – contudo sem controle do Estado, sem dignidade para as pessoas que a esse trabalho se dedicam.