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CAPÍTULO V: As vozes de mulheres profissionais do sexo: a construção de suas

5.2. As vozes das mulheres

5.2.3. O que é uma mulher?

O movimento feminista fez a sociedade olhar para a mulher de forma diferente. Trabalhos como o de Simone de Beauvoir mudaram a visão que a sociedade dirigia à mulher. É necessário superar o conceito de que a mulher está a serviço do homem, que lhe é somente uma auxiliar ou serviçal (doméstica e sexual).

Mesmo assim, ainda há camadas da sociedade onde o discurso patriarcal, reforçado pela religiosidade judaico-cristã e entranhado no seio da família ocidental, reforça à mulher que sua dignidade reside no cumprimento desses conceitos de cuidado do marido e da família, da natureza maternal tradicionalmente afirmada como natural. Contudo, conforme foi visto em Talbot (Cap. 2), essa natureza é construída, inclusive discursivamente.

5.2.3.1. Da liberdade sexual

Nas palavras das profissionais do sexo, mesmo mulheres que exercem liberdade sexual, ainda que escamoteada, por razões que já se pode verificar, reproduz-se o discurso de que a mulher livre das amarras da sociedade com relação ao uso do seu corpo não se encontra plenamente digna. Ágatha chega a utilizar a palavra “prostituta” de forma a trazer um conceito pejorativo para a ação de uma mulher que escolhe o seu parceiro sexual, conforme se pode perceber no relato abaixo:

Ágatha: Tem casos que (..) se uma menina não trabalha com

prostituição, mas lá fora ela, como uma... uma dondoquinha, uma gatinha, ela vai numa festa, ela fica com um, ela vai numa festa, ela

fica com outro. Entendeu? Ela fica com o marido da... da amiga, ela

fica com o vizinho, ela fica com fulano, ela fica com o motorista, ela fica com os PM... Ela também é uma prostituta.

As palavras de Ágatha têm a intenção de “defender” as prostitutas, as garotas de programa, contudo, elas reproduzem o discurso moralista da sociedade. É perceptível que à mulher não lhe dá o direito de exercer sua vida sexual de acordo com sua vontade. Além disso, Ágatha ainda aproxima essa atitude ao conceito de “prostituta”. A palavra, portanto, é utilizada, até mesmo por ela, para classificar uma mulher que toma uma atitude de exercer sua sexualidade conforme lhe aprouver. Ágatha reproduz o estigma à mulher,

bem como o estigma à prostituta, o que se pode verificar quando segue seu discurso na mesma direção.

Ágatha: Ela também é uma prostituta... Ela também tá se prostituindo, entendeu? Então, as pessoas não vêem isso. Uma garota que está trabalhando pra sobreviver, ganhando dinheiro ela É prostituta... E uma garota que dá pra todo mundo de graça, ela não é prostituta. Qual é a diferença? Não tem. Então as pessoas tão

vendo isso como... má... com más... né? Então eu acho assim, as pessoas têm que ter consciência do que vê, do que pensa e do que fala.

Encontra-se, nesse relato, um problema de nomenclatura. Prostituta, conforme a própria definição do Ministério do Trabalho e Emprego utiliza, seria uma profissional, que realiza atividades sexuais para lucro como trabalho. A mesma palavra, todavia, é utilizada também para desqualificar uma mulher quando se quer atribuir a ela uma prática sexual inadequada conforme os padrões da prática social. Ágatha reproduz esse problema, para o qual ainda se vê solução distante.

5.2.3.2. Da submissão à família: o discurso de controle64

Além do estigma da mulher com relação à sua possibilidade de exercer livremente sua vida sexual, o que está para o próprio controle de seu corpo, encontra-se na prática da sociedade a centralidade da família, especialmente a liderança patriarcal. Essa realidade também pode ser vista no relato das participantes, seja na relação com seus familiares – preservando de saber o que fazem – ou até mesmo criticando os homens que se apresentam buscando seus serviços.

A importância e a centralidade do pai na casa são encontradas no relato de Divina, ao responder sobre o apoio que tem de sua família.

Divina: O pessoal lá de casa? eu Deus... se meu pai souber... acho

que mato ele.

Não... (risos)... não vou matar ele... matar, né? (risos)... acho que ele tem um treco.

Nossa... não consigo nem ver ele brigando comigo... por isso acho que ele ia dar um negócio no coração.

Divina mostra uma relação de respeito e admiração por seu pai. O medo de decepcioná-lo é retrato de um núcleo em que alguém tem o controle da vida de outras pessoas. O pai é o centro emocional do grupo familiar. Ir de encontro ao seu pensamento

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é transgredir uma regra social enraizada ao longo do tempo e aceita pelo senso comum. A família é o centro da sociedade e o pai é o centro da família. O homem é quem dá equilíbrio e esse pensamento também é reproduzido quando ela se refere a mulheres que buscam sexo com garotos de programa ao realizar a afirmação abaixo.

Divina: Ah... eu sei que tem... éh... tem uns que atendem... éh... em

casa, né? Tipo essas coroas que não têm homem... sei lá... mas não conheço nenhum não...

A família de Cassandra também sofreu com a ausência da figura masculina quando o pai morreu, o que marcou muito sua vida, conforme seu relato a seguir.

Cassandra: Só meu pai ter morrido muito cedo que me marcou muito, né? Porque eu lembro dele brincando com a gente muito...

sempre agradava a gente... então, quando eu tinha oito anos ele

morreu... foi coração... mas era novo... minha mãe que ficou com a gente... mas foi normal... escola, brincadeiras, coleguinhas... normal. Segundo Cassandra, a ausência do pai fez com que os filhos “ficassem” com a mãe (fato analisado mais acima, em 5.2.1.1), mas mostra uma desestrutura grave para a família, uma reprodução da prática social centralizando essa célula da sociedade.

Fato importante no relato de Cassandra também é a transferência da responsabilidade sobre ela para os irmãos masculinos. Quando diz que a família não sabe em que trabalha e que também não pode saber, o controle do indivíduo masculino ainda é retratado.

Cassandra: Não... Deus me livre... já pensou? (risos) Acho que meus irmãos me mata...

Tenho dois... e é tudo brabo (risos)... eles não ia aceitar

mesmo... ih... ia ser uma briga danada comigo...

Cassandra não contesta a atitude dos irmãos. O discurso dessa profissional do sexo dá a eles o direito de sentir-se decepcionados com sua opção de trabalho e reagirem com protestos violentos (tudo brabo e briga danada). O controle está nas mãos deles e não é confrontado.