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O Bibliodrama e o mundo do texto

No documento manoelmendoncasouza (páginas 78-81)

CAPÍTULO 3 AS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DOS PAPÉIS PARA O

3.2 O BIBLIODRAMA E A HERMENÊUTICA BÍBLICA

3.2.1 O Bibliodrama e o mundo do texto

Por meio de metáforas, parábolas, relatos ficcionais e provocando estranheza ao mundo de hoje, o “mundo do texto”, Sagrada Escritura, revela a Palavra Sagrada, a nominação de Deus, a vinda do Seu Filho ao mundo dos homens, possibilitando novos sentidos de existência e novas maneiras de ser-no-mundo e viver na realidade cotidiana. A linguagem religiosa é condição de Revelação e transmissão da Palavra, da mensagem divina àqueles que, por meio da fé e pela interpretação dos textos sagrados, sentem-se mobilizados, tocados e transformados no seu cotidiano:

O mundo bíblico tem aspectos cósmicos – é uma criação –, comunitários – trata-se de um povo –, histórico-culturais – trata-se de Israel, do reino de Deus –, e pessoais. O homem é atingido nas suas múltiplas dimensões que são cosmológicas histórico-mundiais, tanto como antropológicas, éticas e personalistas (RICOEUR, 1989, p. 133).

A linguagem religiosa aponta também a mensagem de liberdade, de esperança em uma hermenêutica da salvação, manifestando-se por meio da vontade e da imaginação do leitor, acolhendo os “figurativos” que sustentam a esperança e os novos sentidos da existência. Dito de outra forma, trata-se de símbolos que afirmam a possibilidade real de o homem tornar-se livre apesar de sua finitude (AMHERDT, 2006, p. 28).

A especificidade da hermenêutica bíblica advém, segundo Ricoeur (2006), do “funcionamento poético do discurso bíblico”, num “dinamismo criativo” no texto-obra e na interpretação imaginativa:

Paul Ricoeur demorou-se menos na gênese e nas condições de produção dos textos dos dois Testamentos do que na sua capacidade „poiética [...] de produzir significações novas e a seu valor de „revelação‟. Como as metáforas e os relatos de ficção, os textos da Escritura têm condição para mudar a realidade porque lhe conferem uma configuração nova e reescrevem através de seus modos de discursos contrastados (AMHERDT, 2006, p. 21).

Fundamental na hermenêutica bíblica, já que seu distanciamento corresponde ao distanciamento que a “coisa” do texto produz na realidade vivida, a imaginação produz uma poética da existência que corresponde à “poética do discurso”, segundo a dimensão temporal própria da estrutura narrativa dos mitos (AMHERDT, 2006, p. 28).

Estabelecendo-se uma distanciação (separação) entre a interioridade do sujeito e a exterioridade do texto, possibilita-se compreender como a ação dramática, no bibliodrama, tem a mesma função da escrita (linguagem) na hermenêutica, já que esta produzirá a mediação entre a humanidade e o mundo, entre os próprios seres humanos e entre o ser humano e ele mesmo. De acordo com Amherdt (2006, p. 30), essa tríplice mediação também é aplicável ao bibliodrama, na medida em que ocorre referencialidade (mediação entre humanidade e mundo), comunicabilidade (entre o sujeito e o outro) e autocompreensão (do sujeito consigo mesmo).

Tais mediações ocorrem por meio da função distanciamento71, descrita por Ricoeur (1989). Primeiro um distanciamento do autor em relação ao texto. No bibliodrama, esse distanciamento, a partir das leituras específicas, possibilita ao texto ganhar vida própria, tornando-se autônomo, e, tendo vida, passa a ter sentido próprio para cada leitor. Esses leitores, em consonância com o mundo do texto, a princípio utilizam-se dos métodos de interpretação tanto de análise literária quanto histórica, valendo-se, portanto, da conserva cultural. Esses métodos de interpretação só foram possíveis devido ao estabelecimento de uma escrita que perpetuou a “palavra espontânea”, através dos signos e símbolos (conserva cultural), permitindo a interpretação de uma infinidade de leitores, cada um a sua maneira. Dessa forma, apreende-se o real em sua própria significação individual (compreensão de si), como apropriação, através das “projeções de sentido incluídas no texto”.

Mais uma vez, Moreno aproxima-se de Ricoeur ao propor a espontaneidade e a criatividade como categorias fundamentais à ação bibliodramática. Os objetivos somente serão alcançados caso essa ressignificação agregue novos valores existenciais à experiência humana. Mobilizado pela mensagem divina, esse sentido existencial é despertado pela vivência religiosa que emerge do mundo do texto bíblico.

Encontra-se, nesse aspecto, o papel imprescindível do diretor do bibliodrama, que possibilita ao grupo e aos indivíduos manterem-se em sintonia com a fé proferida, em detrimento de uma interpretação desfigurada e sem sentido, de modo que a experiência bibliodramática tenha consonância com a fé propagada e seja coerente com a comunidade em que se encontra inserida.

A ação bibliodramática é concluída quando essas novas experiências, esses ressignificados possibilitam a apropriação do texto, segundo as Escrituras, por meio do momento vivenciado, de modo que seu maior desafio é o ponto em que a liberdade humana choca-se contra o enigma do mal e do fracasso. Nesses momentos, diante das situações limites, como a morte, o sofrimento e a culpa, as experiências vividas tomam dimensões de difícil manejo, com dificuldades de elaboração: “No coração da modernidade corrosiva, o homem é chamado pelo poder transformador dos textos da Revelação, suscitando nele um ato criativo de interpretação e um testemunho novo” (RICOEUR, 2006, p. 2).

Essas significações emergem como representação narrativa metafórica e poder poético, agregando novos sentidos e significados que, implicitamente, estavam no texto.

71 Ricoeur (1989, p. 109) revela a função primordial e positiva da distanciação para a hermenêutica: “um

aspecto fundamental da própria historicidade da experiência humana, a saber, que ela (a distanciação) é uma comunicação na e pela distância”.

Trata-se de uma criatividade de sentidos, o “ainda-não-dito” revelado no texto, possibilitando espaço à ação bibliodramática. A partir das metáforas, da narrativa e da imaginação composta de elementos históricos ou fictícios (invenção), em consonância com elementos circunstanciais e contextuais, obtêm-se os elementos necessários à dramatização dos novos sentidos e descobertas existenciais despertadas pela vivência do bibliodrama. Desenvolve-se a ação dramática a partir da mobilização dos papéis do imaginário e do desempenho da realidade suplementar.

Isso só é possível devido à interseção entre o “mundo do texto” e o “mundo do leitor”: dramatizando-se novos sentidos bíblicos, constrói-se uma identidade dinâmica do texto, desenvolve-se o que é revelado e comunicado, indo além da significação interna do texto, isto é, projetando um novo horizonte a partir da vivência bibliodramática.

No documento manoelmendoncasouza (páginas 78-81)