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O boi em "Entremeio com o vaqueiro Mariano"

No documento O universo zooliterário-poético rosiano (páginas 63-68)

3 CATÁLOGO: OS PRINCIPAIS ÍCONES DO UNIVERSO ANIMAL EM AVE,

3.2.1 O boi em "Entremeio com o vaqueiro Mariano"

O conto "Entremeio com o vaqueiro Mariano", pertencente ao livro Estas

estórias, publicado postumamente em 1969, é composto por três capítulos, por sua

Barandão. Ainda temos um prefácio inicial do conto que precede essa divisão em capítulos citando Bandarra.18

Ao olhar à primeira vista essas referências, é possível perceber a habilidade em reconhecer e sobretudo combinar conteúdos tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão valorosos, conjugando sentidos, originários das tradições britânicas, portuguesas, folclóricas do sertão brasileiro e até mesmo proféticas. Assim já se reconhece ingênua a leitura que simplifica o conto à narração de uma conversa entre o narrador, um pesquisador, com o vaqueiro José Mariano da Silva.

Nessa constatação de desconfiar do simplório e aceitar o convite para uma leitura mais meticulosa, o título já começa a descortinar possibilidades interpretativas. Por exemplo, entremeio no sentido de os pontos de junção dos elementos composicionais da narrativa, ou entremeio reportando-se aos espaços a serem refletidos, ou ainda entremeio como os lugares a serem alcançados e/ou como os tempos revisitados. Além das possíveis associações com a ideia de intervalo, vale considerar a própria analogia entre o animal e a palavra "entremeio", a qual pode se referir ao depósito gorduroso no períneo dos bovinos, relacionando-se diretamente com a proposta de leitura deste trabalho.

É muito válido, ainda, delinear mais uma possibilidade interpretativa, resgatando o sentido de “meio a meio”, empregado por Guimarães Rosa no texto “A terceira margem do Rio”, da obra Primeiras estórias. No conto, a trama desenvolve- se a partir da decisão do pai em construir uma canoa que servirá de abrigo para os longos anos vividos, como se deduz, no meio do rio. O entremeio nesse caso pode se referir ao espaço penetrado no rio, “aquém da margem”; ou seja, um contraponto entre abstrato/concreto, curto/longo.

O animal é posto no centro da narrativa, como confessa o narrador: "Eu tinha precisão de aprender mais, sobre a alma dos bois" (ROSA, 1994, p. 775). Para

18 Joseph Conrad (1857-1924) foi um escritor britânico, mais conhecido pelas obras Lord Jim

e O Coração das Trevas. De origem polonesa, radicado na Inglaterra, foi considerado um

dos mais importantes autores da língua inglesa. Luís de Camões (1524-1580) foi um poeta e soldado português, considerado o maior escritor do período do Classicismo. O autor do poema épico Os Lusíadas é apontado como um dos maiores representantes da literatura mundial. João Barandão, autor de cantigas apócrifas, que, segundo a pesquisadora Walnice Nogueira Galvão, é um dos heterônimos de Guimarães Rosa. Gonçalo Annes

Bandarra foi um sapateiro que viveu em Trancoso, pequena cidade comercial da região da

Beira, no início do século XVI, e que, posteriormente, foi identificado como o fundador do sebastianismo e profeta da Restauração Portuguesa. (Grifo nosso).

depreender sobre a vida do animal, o intermédio, ou seja, o entremeio é a conversa com vaqueiro que se inicia com uma descrição física e psicológica de Mariano que, embora afirme que ele "reunia em si, em qualidade e cor, quase tudo o que a literatura empresta esparso aos vaqueiros principais" (ROSA, 1994, p. 775), lança indícios de um outro olhar para a figura do vaqueiro, comprovada com o desenvolvimento da conversa.

Desde os parágrafos iniciais, é perceptível que o narrador não empresta somente tempo, lugar, enredo, voz para contar sobre Mariano nem sobre o que Mariano fala. Ele engendra recursos múltiplos da arte literária para permitir que o vaqueiro revele-se de forma natural e espontânea, dando vazão ao vislumbre da figura do boi, chegando ao ponto de confiar a interdependência entre o vaqueiro e os animais: "Aqui, o gado é que cria a gente..." (ROSA, 1994, p. 777).

No primeiro capítulo, a partir da curiosidade do narrador: "Eu quis saber suas horas sofridas em afã maior, e ele foi narrando, compassado, umas sobressequentes histórias" (ROSA, 1994, p. 777), o vaqueiro conta de modo contagiante em uma sequência que unifica as vozes do pesquisador e do vaqueiro em uma linguagem transcendente entre o erudito e o sertanejo, cuja comunhão resulta em uma prosa poética capaz de exteriorizar os comportamentos, os pensamentos, os sentimentos dos homens e dos bichos em um mesmo patamar.

A interação homem e natureza é instigante, as falas de Mariano propagam-se tão instintivamente que nós, leitores, podemos nos embrenhar no sertão,

vivenciando as cenas de forma detalhada por meio dos cinco sentidos, por exemplo:

sentir a aspereza do lugar: "─ Foi há três anos, na seca. No levantar o gado do curral, sobe um poeirão, e tapa tudo" (ROSA, 1994, p. 777); sentir o contato puro, bucólico e até mesmo primitivo entre o homem e o animal, a natureza: "em vez de empurrar p'ra diante da porteira segurei foi um touro enorme, que vinha saindo... Me abracei com ele, u'a mão no pescoço, a outra no chifre" (ROSA, 1994, p. 777-778); sentir o cheiro, o ruído e o contato dos animais em sintonia com ambiente e com tudo que o cerca: “A força daquilo, relando o corpo de um, era coisa monstra demais ─ no peso, no ronco, na mexida, até no cheiro... Balançou comigo, e me tampou longe, uns dez metros, no meio do poeirão..." (ROSA, 1994, p. 778, grifo do autor).

A linguagem das falas traduzidas em palavras por Guimarães compreende um universo de formas de expressão, como é o caso das imagens surgidas do narrar

cujos desenhos possuem contornos sincronicamente bem delineados e muito abstratos. À medida que o leitor tem acesso às cenas de forma pormenorizada, há também mistérios, quase que um culto ao mítico, ao inexplicável. Há espaços, intervalos; isto é, entremeios para serem preenchidos, como as reticências que iniciam as falas de Mariano.

Percebe-se que o narrador, ao compartilhar a experiência de estar em meio ao pantanal, conta a lida do sertanejo, ou melhor, recita; pois a poética favorece a narrativa para aclarar nossa visão com relação aos bichos, especialmente ao boi. A linguagem poética, que também é entremeio19, funciona como lentes, contribuindo para o leitor reconhecer o animal como um semelhante, fazendo-nos compreender a força do dom da vida:

─ [...] Mas uma coisa eu guardei, por última, porque a gente gosta. Se alembra do boi que eu disse, do boi preto, coitado, que deitou-na- cama no charravasco, sem querer vir, e nós largamos?

─ [...] Pois eu não tinha podido me esquecer, e estava pensando nele, quando chegamos no salvo. Se tivesse achado fé p'ra um arranco mais, estava vivo agora, escapava do fim pior que há, de fogo nos ossos. E, então, a gente estava acendendo o contafogo em volta da baía, quando: que é que evém lá? Era ele, chê! Decerto, na horinha em que o fogo fomentou, fez ele pensar mais e se aprumar pulando, às carreiras, e veio na batida dos outros. Chegou num galopinho, trotando ligeiro, feito um cachorro. Mancava dum quarto de trás, e tinha sapecado o rabo. Por um pouquinho só, e ele não ganhava mais passagem. A gente deu viva! Chegou e se aninhou com os outros, na fome de bezerro que vem na teta. [...] (ROSA, 1994, p. 782)

No segundo capítulo, o narrar das cenas no curral decodificam ações, particularmente comportamentos do gado ─ das vacas, dos bezerros, dos bois ─ que humanizam os animais, não em um processo de personificação que mais nos induz à fantasia do que à realidade, mas sim de uma ordem que nos conduz a integrar ao meio natural; ou seja, fazer parte da natureza e assim senti-la, ainda que do nosso jeito e com nossas limitações, de maneira afetiva. Um extraordinário exemplo dessa humanização são estes parágrafos, que disfarçam versos de requintada poesia:

19 Na linguagem poética há a criação de imagens, há intermediação entre o conotativo e o

Mas, no crepúsculo da manhã, os mugidos vão pungentes; tremulam. O que é sopro e músculos, e golpe no ar, se hospeda música nos ouvidos.

─ É essa aflição sangrada... Todo dia elas fazem reclamação... Ser mãe é negócio duro...

As vacas mugem. Vibra no espaço, tonto, terno, quase humano, o sentimento dos brutos. Libera-se, doendo, o antigo amor, plantando na matéria. (ROSA, 1994, p. 785-786)

O capítulo terceiro nos traz a sensação de intensificação da percepção do bucólico, do original; enfim, do natural. O Pantanal20 torna-se movimento poético com nuances de intelectualidade, misticismo, primitivismo e, acima de tudo, tradição popular, como bem já anuncia o prefácio em forma de cantiga: "desapeio, rezo o terço,/Almoço, tomo café,/o meu boi dança comigo,/Meu cavalo dorme em pé".

Entende-se que não há como dissociar o boi do boiadeiro, pois não conseguimos determinar se a boiada é a rotina do vaqueiro ou o vaqueiro é a rotina da boiada. Ambos estão imersos em um universo que agiganta a natureza com as inúmeras espécies da sua fauna e da sua flora e, ao mesmo tempo, singulariza uma relação de puro comprometimento entre os seres, o amor. Como bem se experimenta nos parágrafos finais do conto:

─ Melhor a gente dar volta e deixar passarinho em paz. Não tem medo de nada! Às vezes, com esse rompante doido, eles costumam fazer uma boiada destorcer p'ra um lado e quebrar rumo...

─ Melhor, sim Mariano.

─ É, sim senhor. O amor é assim. (ROSA, 1994, p. 799)

20 Após essa primeira viagem, Rosa realizou outra viagem que se tornaria emblemática dentro

do processo de construção de sua obra, além de motivo e assunto para conversas com o pai: em 1947 foi ao Pantanal e a cidades do Mato Grosso, onde conheceu o vaqueiro Mariano – na companhia de quem conhece o Pantanal – e com quem dizia ter aprendido “muito da alma dos bois”. Dessa viagem, resultaram o conto Sanga Puytã e a narrativa Entremeio com o Vaqueiro Mariano, publicado no Correio da Manhã, em 1947 e 1948, em três partes. O texto “Entremeio com o Vaqueiro Mariano” provocou do ministro Bernardino José de Souza palavras de “alta admiração” e, em carta de 24 de fevereiro de 1948, – provavelmente escrevendo seu livro O ciclo de carro de bois no Brasil – o ministro solicitava a Rosa o esclarecimento de algumas palavras e lamentava apenas que a narrativa não trouxesse um “vocabulário explicativo”. Uma semana depois, Rosa responde a Bernardino afirmando-lhe ser seu “leitor número 1”, revela que muitas palavras da narrativa haviam sido inventadas e criadas por ele, e, ao mesmo tempo, arrisca esclarecer algumas outras palavras que escutara “do nosso povo” e de Mariano. Cf.: FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. Entre a arte e a

interpretação [manuscrito]: figurações do Brasil na literatura de Guimarães Rosa. 2010.

Cf. Tese (Doutorado em História) – História e Culturas Políticas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010, p. 85.

Muitas dessas manobras narrativo-poéticas empregadas no conto "Entremeio com o vaqueiro Mariano" são percebidas no texto "Pé-duro, chapéu-de-couro" cuja tessitura, principalmente estrutural, dá-se de forma bem diferente do conto, mas ainda assim manifesta conteúdos tais quais aqueles empreendidos na narrativa da obra Estas estórias que permitem uma leitura direcionada para/pela figura do boi.

No documento O universo zooliterário-poético rosiano (páginas 63-68)