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A onça continua o mistério

No documento O universo zooliterário-poético rosiano (páginas 95-100)

3 CATÁLOGO: OS PRINCIPAIS ÍCONES DO UNIVERSO ANIMAL EM AVE,

3.5 A onça continua o mistério

Também no universo dos felinos, o recorrente clima de enigma que envolve a onça escrita nas produções rosianas exige que a incluamos dentre os animais ícones. A figura da onça aparece nos textos de Guimarães Rosa com muita vivacidade. O apelo ilustrativo do animal é de fato tão intenso que o recorte de um trecho do conto "Meu tio o Iauaretê", de Estas estórias e, na sequência, uma enunciação do texto Zoo (Rio, Quinta da Boa Vista), de Ave, palavra, conseguem captar a natureza misteriosa dessa "fera".

As marcas de animalidade presentes no ser humano vêm à tona com a personagem do conto "Meu tio o Iauaretê", de Estas estórias, oferecendo-nos pontos de reflexão para ampliar as observações sobre a impossibilidade de definir limites entre o homem e o animal. O conto nos leva inclusive a identificar a transformação da personagem em onça, perdendo suas referências humanas e assumindo uma postura de não ser. Essas questões requerem atenção, estando longe de serem exclusividade das ficções.

Ao dedicar-se à figura da onça, desvencilhamo-nos da ideia de que o animal selvagem é muito distante do homem. O medo, tão imperativo, ao reporta-se à imagem da fera, é prova da omissão; ou seja, da atitude do homem de querer

excluir, de querer ignorar uma proximidade cuja existência dá-se por ela mesma, por ocuparmos o mesmo espaço.

O aspecto físico é incontestável, pois não há como negar que cada ser constitui também de matéria, ocupando um lugar; portanto, no tempo e no espaço. A exemplo da aparência dura da onça destacada na frase de observação de Rosa, durante a visita ao zoológico, por meio da qual podemos discutir sobre a importância de se considerar o ambiente bem como as características biológicas para uma aproximação mais efetiva do animal enquanto sujeito.

3.5.1 O homem-jaguar no encalço da onça, em "Meu tio o Iauaretê"

Embora tenhamos adotado como objeto de análise uma passagem, composta por dois parágrafos do conto "Meu tio o Iauaretê", de Estas estórias, cabe inicialmente uma breve contextualização da história cujo enredo, de forma muito geral e resumida, concentra-se na "proseação" de um homem contratado para matar onças, Tonho Tigreiro, a um interlocutor (um visitante) sobre suas aventuras.

Os registros dessa conversação foram engendrados por meio de uma linguagem oralizada ─ elemento de composição marcante neste conto. Como a ideia aqui é a partir do excerto, a seguir, elencar e relacionar pistas enunciativas capazes de nos aproximar da onça. Este trabalho de análise passa necessariamente pela forma da personagem expressar sua visão com relação ao animal:

Cachacinha gostosa! Gosto de bochechar com ela. beber despois. Hum-hum, Ããã... Aqui, roda a roda, só tem eu e a onça. O resto é comida para nós. Onça, elas também sabem de muita coisa. Tem coisas que ela vê, e a gente vê não, não pode. Ih! Tanta coisa... Gosto de saber muita coisa não, cabeça minha pega a doer. Sei só o que a onça sabe. Mas, isso, eu sei, tudo. Aprendi. Quando vim pra aqui, vim ficar sozinho. Sozinho é ruim, a gente fica muito judiado. Nhô Nhuão Guede homem tão ruim, trouxe a gente pra ficar sozinho. Atié! Saudade de minha mãe, que morreu, çacyara, Araã... Eu nhum ─ sozinho... Não tinha emparamento nenhum... Aí, eu aprendi. Eu sei fazer igual onça. Poder de onça é que não tem pressa: aquilo deita no chão, aproveita o fundo bom de qualquer buraco, aproveita o capim, percura o escondido de detrás de cada árvore, escorrega no chão, mundéu-mundéu, vai entrando e saindo, maciinho, pô-pu, pô- pu, até pertinho da caça que quer pegar. Chega, olha, olha, não tem licença de cansar de olhar, eh, tá medindo o pulo. Hã, hã... Dá um bote, às vez dá dois. Se errar passa fome, o pior é que ela quage morre de vergonha... Aí, vai pular: olha demais de forte, olha pra

fazer medo, tem pena de ninguém... Estremece de diante pra trás, arruma as pernas, toma o açoite, e pila pulão! ─ é bonito... (ROSA, 1994, p. 831)

Considerando aqui os limites da expressão oral do caboclo com suas construções truncadas, com seus grunhidos, com seus silêncios e tudo mais que compõe o modo de falar da personagem, damo-nos conta do conteúdo enunciativo que, por sua vez, alcança a onça. O saber daquele que se aproximou dela ao ponto de desenvolver em si mesmo atributos inatos ao animal oferece-nos acesso direto ao universo, ora palpável ora intocável, da onça.

A começar pela demarcação de um domínio restrito: "Aqui, roda a roda, só tem eu e onça. O resto é comida para nós". Há, de certo modo, um pacto de sobrevivência. O caboclo decide viver como onça. Eis um ponto muito importante: um processo duplo de assumir a identidade do animal e, ao mesmo tempo, apagar seus traços humanos. No entanto, esse processo não é possível por inteiro, visto que a completude de um ser se estabelece nos encontros das essencialidades; por exemplo, corpo e mente.

O conjunto, razão e natureza, agindo sob uma vivência autêntica manifesta-se de maneira original. Isto é, qualquer tentativa de se fazer igual será reprodução. Nesse sentido, o homem na história tem, mesmo contra sua vontade, rastros de sua humanidade. Ainda que sem consciência disso, ele reconhece sua limitação humana para agir tal qual a onça: "Tem coisas que ela vê, e a gente vê não, não pode. Ih! Tanta coisa...". Temos, assim, uma noção mais bem realizada de subjetividade animal.

O processo de metamorfosear-se em onça não conduz a personagem a uma identidade felina. Ao contrário, leva-o à descoberta de uma não essência, de uma subjetividade vazia e sem correlação objetiva sobre a qual assenta a aparência de um Eu (AGRÔ, 2017, p. 39). O raciocínio de Ettore Finazzi Agrô, em seu trabalho A

natureza (e o) animal. Ambiente e Mundo na obra de João Guimarães Rosa,

corrobora para evidenciar as implicações diretas entre o físico e aquilo que o transcende ─ sem colocá-los no mesmo plano ─ nas questões de animalidade e de humanidade.

As peculiaridades da onça são mostradas com um certo grau de dependência do ambiente: "aquilo deita no chão, aproveita o fundo bom de qualquer buraco,

aproveita o capim". Temos a sensação de que a onça não seria onça em outro habitat. Entretanto, não é tão inflexível assim, pois já discutimos, anteriormente, na análise sobre o gato, a questão da constituição do sujeito dar-se a partir dos sentimentos, emoções, aprendizagens, imaginação. O movimento de dentro para fora é de suma importância para revelar a natureza do animal.

Há, nas diversas teorias sobre a existência, um nó, principalmente no que se refere à essência. Mesmo sem aprofundamentos, são muito visíveis os embates e/ou convergências entre as correntes filosóficas da física, da metafísica e da ética por exemplo. Sem então aderir inteiramente a nenhuma concepção filosófica ou a qualquer outra perspectiva, essa visão sobre a conexão da onça ao meio circundante nos faz encaminhar um argumento a favor da subjetividade animal.

Tal observação aplica-se à medida que a compreensão de subjetividade não se fixa restrita à ideia de razão, consciência, Eu, mas sim, ao entendimento da existência do sujeito singular, do intérprete de sentidos para valer-se das denominações de Dominique Lestel.34 Nesse raciocínio, não cabe excluir o animal do espaço de sujeito. Logo, a onça possui uma identidade única de onça, onde quer que ela viva. Porém não há como negar a influência das características biológicas. Tais predicados são favorecidos pelo meio.

No conto "Meu tio o Iauaretê", a onça revela todo seu potencial biológico, pois há harmonia entre as habilidades inerentes ao ser onça e as condições naturais para manifestação dessas capacidades inatas: "Estremece de diante pra trás, arruma as pernas, toma o açoite, e pula pulão! ─ é bonito...". Temos mais clareza, com o desenvolvimento desse raciocínio, de que o homem aproxima-se do ser onça, mas de fato não o é.

Percebemos que conhecer plenamente a subjetividade é algo inalcançável, é o mistério. Contudo, as aproximações não só são possíveis como são inevitáveis. Evidentemente o grau dessas aproximações dá-se por vários fatores, mas o fato de os seres pertencerem ao mesmo biossistema já é incontestável mostra de interdependência. As incoerências advêm, portanto, das ações humanas, que, muitas vezes, insistem em não reconhecer os animais em suas singularidades, além de agirem como se, sobretudo os animais selvagens, fossem sempre ameaças.

34 Cf.: Entrevista com Dominique Lestel. In: MACIEL. Maria Esther. Literatura e animalidade.

Os animais ferozes normalmente despertam medo nos homens: "olha demais de forte, olha para fazer medo, tem pena de ninguém". Essa sensação fundamenta, em vários casos, o pensamento de que não existiriam elos entre eles e os humanos. A presença ou a ausência de medo não é, todavia, determinante para a interdependência entre os seres. Como negligenciar, por exemplo, as consequências do ato de interromper a interação presa-predador no ecossistema.

É um absurdo alegar que o homem é mais importante que o animal, como afirmar que o coração é mais importante que o cérebro. A vida partilhada de homens e animais deve ser pensada analogicamente, mais como órgãos que constituem um mesmo corpo do que como indivíduos que compartilham um espaço social comum, no qual seja necessário discutir seus respectivos lugares. A questão importante não é saber como viver com o animal, mas como eu me constituo através do animal e, inversamente, como certos animais se constituem através de mim. (LESTEL, 2016, p. 143)

A consideração acima de Dominique Lestel, além de nos ajudar a organizar melhor as reflexões sobre subjetividade animal já desenvolvidas, aponta para um norte interpretativo da frase de Rosa no texto "Zoo (Rio, Quinta da Boa Vista)". Se a onça no conto "Meu tio o Iauaretê" mostrou-se sujeito por meio da linguagem engendrada, tendo o seu meio circundante como ponto relevante para nos aproximar (enquanto leitores) das suas singularidades, como analisar agora a onça que está enjaulada, fora do seu habitat natural?

3.5.2 Gênero duro: a onça

O total de oito palavras e três pontos discursivos formam a sentença cuja dimensão é imensurável para discorrer sobre a observação feita a partir da presença da onça no Zoológico na cidade do Rio de Janeiro: "Onça ─ tanta coisa dura, entre boca e olhos" (ROSA, 1994, p. 1.000). Assim, é necessário um enfoque.

Nesse caso, atemo-nos a questão da constituição biológica do animal. Aproveitando a discussão anterior, por meio da qual chegamos à percepção de que o ambiente natural permite a onça exteriorizar seu perfil felino de maneira direta, espontânea, aberta. Ali, presa em uma jaula, não há o aniquilamento da sua identidade feroz, pois a expressão "dura" leva-nos a atribuir ao animal as características de forte, resistente, brava, indomável.

Associamos imediatamente esses atributos da onça à sua condição predadora. Contudo, como poderia a onça extravasar esses predicados selvagens trancada em um acanhado espaço? É complicado equilibrar suas facetas ao lugar. Podemos então ampliar o sentido de "dura" para adversidade, para dificuldade, para obstáculo. Ademais, a dureza da onça condicionada a uma situação contrária à sua natureza é percebida entre os olhos e a boca do animal, limitada ao que destaca na sua figura.

É interessante pontuar também que as frases referentes aos outros animais neste texto são marcadas pela presença de artigos definidos que acompanham os nomes. A citar: "O urubu é que faz castelos no ar", "A cobra movimenta-se: destra, sinistra, destra, sinistra..." (ROSA, 1994, p. 1.000, grifo nosso). No caso da onça, não há artigo, remetendo a uma possibilidade de incluir todas as onças, ou seja, não somente aquela presenciada naquele momento da visita ao zoológico.

Pode-se ainda inferir na observação de Rosa uma referência ao homem não compreender o animal, pois há "tanta coisa dura, entre os olhos e a boca" do ser humano que se coloca acima dos bichos, mesmo a onça de gênero duro é submetida aos caprichos de indivíduos que a observam como espetáculo, evidenciando o absurdo da ideia de superioridade humana, já citada na consideração de Dominique Lestel.

No documento O universo zooliterário-poético rosiano (páginas 95-100)