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Capítulo I – Bordado da Madeira: Uma revisão bibliográfica

1. Ponto da situação

1.4 O Bordado da Madeira: um património em vias de extinção?

Como acabamos de comprovar, a situação profissional da bordadeira de casa foi evoluindo. Foram sendo criadas medidas reguladoras da actividade, contribuindo para atenuar um trabalho moroso, a ocupação principal de muitas mulheres da RAM. Vejamos a progressão desta actividade pelas suas diversas fases: “Entre 1850 e meados

grande maioria fazia-o como actividade principal e uma minoria, pertencente à burguesia, como actividade de lazer.” (IVBAM, Maio de 2011: 43). Continua, actualmente, sendo a actividade principal do género feminino? Encarar o bordado como profissão só mesmo para quem gosta muito de bordar, ou que, por algum motivo, apenas se pode dedicar a este trabalho. A exigência de estar muito tempo sentada, a constante repetição dos movimentos, o cansaço e, sobretudo, o pouco rendimento que daí advém são os motivos constantemente enunciados, pelas próprias bordadeiras (de casa) e as suas descendentes (cf. capítulo III), para considerar esta profissão uma má ocupação. Claramente, não é a actividade profissional que hoje mais ocupa as mulheres madeirenses. Cada vez mais, verifica-se um decréscimo do número das que se interessam e continuam a dedicar-se a este trabalho.

O rendimento que as bordadeiras conseguem é sempre inferior ao que outras classes operárias auferem. A situação não é nova, como se nota pela seguinte citação: “Já em 1863 a bordadeira era entre todas as actividades que [sic] se ocupavam as mulheres, a mais mal paga sendo apenas de 100 reis no Funchal, enquanto as demais recebiam salários médios superiores a 300 reis.” (VIEIRA, 2006: 70). Apesar de, anualmente, os valores remuneratórios destas trabalhadoras ser revisto e alterado, em portaria, continua a ser considerada uma “profissão de desgaste rápido” (RTP, 28-11- 2013), em que o esforço não é financeiramente compensado. Os aumentos no valor a pagar às bordadeiras de casa são pouco significativos, levando a que as beneficiárias continuem a reclamar. As jovens mulheres que assistem a esta situação não desejam identificar-se com ela. Recorrem, por isso, a outras actividades que não à de bordadeira de casa para profissão.

Em finais do séc. XX, o início de uma escolaridade obrigatória tem impacto no decréscimo de jovens bordadeiras de casa. Os estudos são vistos como uma saída, um futuro, que possibilita um pouco mais de liberdade e autonomia. Com mais formação, perante oportunidades de trabalho diversificadas, a hipótese de ser bordadeira de casa passa para segundo plano. Conhecendo as condições de vida de quem borda, os seus baixos rendimentos e o grande esforço que lhe é exigido, e com a possibilidade de, por menos esforço, ou pelo mesmo, ganhar mais, ser bordadeira de casa não é opção. No passado, as mulheres optavam por se dedicar ao bordado porque não havia para elas muitos outros trabalhos remunerados. Com o aparecimento de mais oportunidades profissionais, jovens há que não pensam duas vezes em deixar o bordado de lado e em abraçar uma nova profissão. Elas querem alcançar melhores condições de vida e

aumentar os rendimentos, o que não é compatível com a actividade de bordadeira de casa. Essa procura por uma vida considerada melhor acontece tanto com as mulheres mais novas, que geralmente possuem mais formação, mas também com as mais experientes, que, por seu lado, não têm tantos estudos. Há casos em que a mudança, independentemente da faixa etária, resulta em emigração, como comprova o seguinte trecho: “Histórias há de mulheres camponesas que antes preferiam cavar do que bordar, só que eram exploradas pelos senhorios. Por tudo isto é que tanta história de emigração se fez.” (DIONÍSIO, 2002: 107). Pelo cenário a que temos assistido, o salário e o desgaste são os principais motivos de comparação entre profissões. Nessas situações, a actividade da bordadeira de casa acaba, sempre, ou maioritariamente, por ser considerada inferior relativamente às restantes.

Ser bordadeira de casa não dá a possibilidade de evoluir na carreira. Mudam os formatos do bordado, as horas de dedicação, as cores, as linhas, os pontos, mas, no fim de contas, o trabalho é sempre igual. Esperar que haja trabalho; sentar-se; bordar; devolver o trabalho realizado e aguardar a devida remuneração. Mesmo tratando-se de pequenas quantias, as bordadeiras de casa têm de esperar, muitas vezes, meses ou até um ano, pelos seus recebimentos, não sendo a legislação cumprida: “O pagamento atempado às bordadeiras tem sido um problema crónico do sector.” (FREITAS, 2013: 20). Como se não bastasse o baixo rendimento, as bordadeiras de casa, frequentemente, esperam e desesperam pelo ganho do seu trabalho. Estes aspectos, e a reflexão sobre os mesmos, levam-nos a considerar que podemos estar perante uma profissão em vias de desaparecimento. Várias são as referências a isso. Para exemplo, damos as seguintes: a) “se as bordadeiras não precisassem do bordado ninguém bordava (…) acabando as mais velhas acaba-se tudo, pois as mais novas não querem saber de bordados.” (Maria José Correia); b) “O bordado é mal pago e quem borda está sempre à procura de novos trabalhos para ganhar melhor (…). O bordado ainda existe «porque as pessoas antigas não gostam de estar paradas.” (Maria Ganança); c) “A verdade é que a camada jovem não quer aprender porque ser bordadeira é ganhar mal” (Guida Vieira) (FLORENÇA, 17-12-1991: 4). A seguinte citação sintetiza perfeitamente os testemunhos anteriores:

As «Lágrimas correndo mundo» que fizeram do bordado Madeira uma imagem de marca estão em vias de secar. Cada vez mais enrugadas, as mãos que transformaram o bordado em arte desaparecem também lentamente. A idade não perdoa e o tempo em que as fêmeas da família se sentavam junto à lareira pela noite dentro de agulha em riste são hoje só e apenas um retrato. Embora a nostalgia

sentimento de perda parece irreversível. Produzir agora como há 30 ou 50 anos é pura ilusão. (MENDES, 1997: 34)

Na Ribeira Brava e nos outros concelhos do arquipélago, consta que as mães ensinavam as filhas a bordar desde cedo para que estas conseguissem algum dinheiro para o enxoval. Ainda se mantém esta tradição? Cremos estar perante uma profissão cada vez com menos adeptas. As próprias bordadeiras de casa, se conseguem outras oportunidades, não as recusam e as mulheres mais novas não se interessam por esta actividade, como fica claro. Os tempos mudaram; as necessidades alteraram-se e novas

oportunidades surgiram, continuando a aparecer. As bordadeiras de casa, ao passarem

tempos de miséria, por vezes sem trabalho, com muito pouco dinheiro, embora resultante de muito esforço, à partida, não pretendem que as suas descendentes passem pelo mesmo: “Não conheço nenhuma jovem que tenha gosto em aprender a bordar. Quando éramos pequenas, éramos obrigadas a aprender. Hoje, não quero que a minha filha borde. Quem é que trabalha para ganhar 500 escudos por dia?” (VIEIRA, 2010: 39). Aprenderam o labor em criança, mas, no presente, parecem ser poucas as que ensinam as filhas desde pequenas. Cada vez mais se verifica um distanciamento dos jovens relativamente às actividades tradicionais e com a de bordadeira de casa sucede o mesmo. Iniciam o conhecimento e a prática sobre esta arte cada vez mais tarde, ao invés, do passado, em que as mulheres começavam a bordar desde muito cedo: “(…) as raparigas são iniciadas na arte de bordar cada vez mais tarde e com menor mestria” (FERREIRA, 1992: 13). As bordadeiras de casa das gerações passadas não tiveram grandes oportunidades a nível do ensino. Aliás, muitas delas, sobretudo as mais idosas, a faixa etária com, ainda hoje, mais representantes desta profissão, são analfabetas. Não tiveram, mas sonham, lutam e incentivam as filhas a estudar, conseguindo o que elas não puderam obter. Com mais estudos, com o conhecimento das experiências familiares, as mais jovens tendem a encarar o bordado como uma tradição para recordar. É, pelo menos, o que depreendemos da nossa investigação, nomeadamente das leituras realizadas.

Casos há de interesse em aprender, por curiosidade, ou por apelo familiar. Pode também ser por gosto e admiração pelo produto final. Qualquer que seja o motivo que desperta jovens a bordar, é, sobretudo, uma profissão encarada como passatempo, como constatamos em algumas respostas obtidas num questionário (cf. capítulo II, ponto 1). O incentivo da mãe e/ou da avó poderá ser uma das razões mais fortes para iniciar o contacto com o bordado. O convívio com elas, a curiosidade em aprender o que têm

para contar, o querer ouvir e conhecer as suas histórias são elementos que facilitam o iniciar a bordar. Quanto às que bordam por gosto e nos tempos livres, podem incentivar as mais novas, mas, decerto, não são o espelho de quem quer passar a vida a bordar. A influência é mais no sentido de esta arte não acabar e de transmitir alguns conhecimentos às gerações vindouras. As mulheres das gerações mais velhas consideram que é impossível sobreviver, tendo como actividade principal o bordado e não ganhando nada além disso.

Face a tantos aspectos negativos, como se justifica haver ainda quem se dedique ao Bordado da Madeira? Umas são bordadeiras de casa porque sempre o foram. Mesmo já sendo pensionistas, se a visão o permitir, continuam a bordar. Outras há que bordaram e bordam unicamente para alcançar a meta da reforma. Algumas aposentadas continuam a bordar, mas esses trabalhos vão para a casa de bordados com a identificação de outra pessoa que ainda necessite de descontar para a Segurança Social. Isso acontece para ajudar familiares ou amigas que, não tendo trabalho, podem assim continuar a dar as suas contribuições para a Segurança Social. Essas mulheres, não sabendo bordar, contribuem, no entanto, para as estatísticas13 como bordadeiras, o que

induz em erro (KLUT, 2003: 49). Com mais ou menos gosto, quem trabalhou toda a vida a conceber Bordado da Madeira não teve oportunidades de descobrir e aprender outras profissões. A resposta à pergunta “Bordado da Madeira: um património em vias de extinção?” não é linear, embora tenda para a afirmativa.

13 Relativamente a estatísticas, não são consensuais os números respeitantes às bordadeiras, uma vez que variam as definições atribuídas a este conceito. Para exemplo, recorremos a um excerto da dissertação de mestrado de Teresa Catarina dos Santos, onde é possível ler: “Informação do IBTAM que considera bordadeira profissional toda aquela mulher que executa bordados para a “fábrica de bordados”. No entanto o Instituto Nacional de Estatística só considera bordadeira profissional o indivíduo que borda pelo menos cinco horas diárias. Ora, muitas mulheres não dedicam esse tempo diários [sic] ao bordado, ficando assim excluídas das estatísticas.” (SANTOS, 2005: 48). No contacto com a Direcção Regional de Estatística, obtivemos a informação de que não efectuavam nenhum estudo tão pormenorizado. Possuíam apenas valores referentes à comercialização de bordados e outros elementos artesanais. Direccionaram-

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