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Capítulo II – Uma investigação a partir da Ribeira Brava

3. Um breve cancioneiro

Em grupo, as bordadeiras de casa cantavam “músicas” que todas conheciam. Havia, sobretudo, as religiosas aprendidas na igreja: “Avé, avé, avé Maria/ Avé, avé, avé Maria/ A 13 de Maio na Cova da Iria/ apareceu brilhando/ a Virgem Maria.” (R_AS_1). As músicas populares também eram incluídas no repertório. As mais tradicionais, como “Aldeia da roupa branca”, “A agulha e o dedal” (T_MLP_3) e outras que até fazem parte de rapsódias regionais, como “Primavera das flores” e “Bailinho da Madeira” (T_MLP_3). Cantavam tudo o que ajudasse a alegrar o ambiente e a quebrar a monotonia do trabalho. Cantavam ao sabor da ocasião, do estado de espírito e em resposta às companheiras. Inventavam, rimavam e conseguiam cantigas que, depois, se podiam repetir ou iam dando lugar a outras novas. Como para “despique”, ao desafio, o improviso era a chave para conseguir sobressair. Apesar de contarem que isso acontecia, poucas foram as informantes que se lembraram dessas “cantigas”. A memória e a capacidade de improviso já não são iguais. O que se alterou foi mesmo a convivência e o deixar de cantar. Deixaram de fazer as coisas como no passado: “Tinha mais [cantigas]. Eu é que não me lembro sequer. Naquele tempo, ora, aos anos que eu não canto (…). A gente cantava-se; apupava-se; ria-se qu’era uma alegria. Agora, acabou-se estas alegrias todas. Já não se sabe nada.” (C_AR_1).

Apesar desta manifesta “falta de memória”, conseguimos compilar algumas quadras e canções. A recolha para este tipo de material linguístico ficou aquém das espectativas. Esperávamos encontrar um património oral recreativo mais vasto. Mesmo assim, damos a conhecer o que conseguimos reunir. São elementos importantes porque pertencem a uma cultura popular tradicional, que nos parece poder estar em vias de extinção, pelo menos no que se prende com a herança das bordadeiras (de casa) da Ribeira Brava, como depreendemos da nossa amostra. Não conseguindo lembrar-se na hora do questionário, mas dizendo que sabiam muitas “cantigas”, as informantes C_AR_1 e C_GR_2, mãe e filha, acabaram por, posteriormente, entregar algumas quadras escritas por elas próprias. Reproduzimo-las integralmente, transcrevendo-as como as informantes as disponibilizaram, sem as corrigir (cf. composições apresentadas de Margarida Rodrigues, extraídas da obra de João Luís Rodrigues), o que também fizemos com as quatro composições (conjuntos de quadras soltas e canções) recolhidas

linguagem popular. O material recolhido está organizado por informantes, segundo a sequência da tabela 7.

C_MS_1

Quadras soltas (recolha oral) Oh, Maria, vamos à erva Qu’o cantar da erva alembra. Oh, Maria não vou à erva

Qu’o meu pai tem pouca fazenda. Eu fui ao mar às laranjas

laranjas no mar não tem. Fiquei toda alagadinha q’ando as ondas do mar vem. Acolá daquele mato,

’tá uma pedrinha moliça. Quando o meu amor se encosta, é quando vai e vem da missa. Eu subi a amexieira

p’apanhar a bela ameixa. Fui falar a rapariga.

O pai quer; a mãe não deixa. Eu falei à rapariga

quarta-feira c’a lua. Se ela não me der o sim, já não falo a mais nenhuma. Acolá daquele lado,

está um pau p’a castanholas, para dar às moças bonitas e também p’os mariolas. Manuel da vizinha

embarca na segunda-feira. Mal empregado do rapaz ir para a ilha Terceira. Manuel da vizinha já matou o seu desejo. Encontrou a sua mãe.

Deu-lhe um abraço e um beijo.

Tua boca fez um tinteiro, a língua pena parada, os dentes letra miúda, os beiços carta cerrada. Coitado quem tem amores da ribeirinha p’ra lá que a ribeirinha vai cheia. Deus sabe quem passará. Coitado quem tem amores que se deita e não os via. Vai pensando, imaginando, quando é que amanhecia. Os nossos dois corações com água foram ligados. Já fizeram juramentos só por morte separados. Acolá daquele mar,

’tá uma pedra, mas não bole. Certo que é o meu amor; quer me falar, mas não pode. Boneca, minha boneca, tens um bonito cacó. Eu queria dormir mais ti nem que fosse uma noite só. A boneca vem bonita, mas não é dela andar. É para ela sair em rifas, para o domingo do bazar. Eu fui ao fundo do mar buscar a pedra do lodo.

Deus me livre se eu não chamo ainda teu pai meu sogro. Fui à fonte beber água, debaixo do pé da murta. Fui só p’ra ver os teus olhos que a sede não era muita.

Não cortes o castanheiro. Não lhe ponhas o podão. Debaixo do castanheiro, tenho o meu amor João. Ó girassol dobrado, dobradinho d’inté o pé. Quem te disse girassol que o meu amor é José. Maria,vamos à erva atrás do poço caíado. Uma mão é uma gavela e uma troca é um braçado. Vou aviar o meu bordado, só me falta um garanito, p’ra levar a Santo António, para o caixeiro mais bonito. Vou bordar depressa

P’o meu bordado acabar, p’a mandar p’o meu amor que ’tá aí a chegar. O meu amor é vadio. Pendeu para a vadiação que ele tinha o mau costume de ’tar ao pé do garrafão. Tira o brinco das orelhas e o cordão do pescoço. Amarra na ponta do lenço e deita na beira do poço. Angelina tem um pente; ’tá sempre se a pentear. Chegou à bendita hora de Angelina se acabar. Na rua da Amoreirinha, se achares um lenço é meu. Com três beijos amarrados qu’o meu amor me deu. Amarrei o sol à lua

na ponta dum guardanapo. O sol era tão bonito

C_MS_1

Canção (recolha oral) Manuel, calça as botas. Anda aqui acima à levada falar c’a tua prima

p’ra ser tua namorada. As botas eu procurei para nos meu pés calçar. Quando eu cheguei à levada, com uma dor no coração, encontrei minha tia. Deite-me a sua bênção.

Conta-me meu sobrinho, conta. Tem confiança c’a tia.

Eu venho para aqui casar c’a minha prima Maria. A tua prima não ’tá. Foi tirar o leite à vaca. Manuel, sai p’a rua Encosta-te àquela estaca. A minha prima Maria já ’tá próxima a chegar. A minha tia que diga

que eu tenho vergonha de falar. Maria, não queres teu primo tu achas-lhe algum senão. Tem as patas alaradas. Parece as patas dum cão.

C_MS_1

Canto da barca (recolha oral) Adeus do canto da barca. O mais tem uma roseira. ’inda há pouco aqui morreu uma menina solteira. Era uma bela menina. Não sabia namorar. Pediu remédio ao noivo, para a morte la levar. O noivo que assim se viu, na formosa da calçada, arranjou limão e canela; arranjou uma garrafada. O noivo que assim se viu, neste mundo sem ninguém empinou as mãos ao céu; apareceu sua mãe.

Já lá vem o senhor doutor c’a sua bota engraxada. Vai pedindo à enfermeira; vamos ver a desgraçada. O hospital tem muitas camas ’inda há pouco las contei. Deitadinha numa delas, muitas lágrimas eu chorei.

C_AR_1

Quadras soltas (recolha oral) Aquele da casa na praça a muito se assujeitou. Uns dizem que ela qu’é alta; outros que de alta passou. Ó João, meu joãozinho, de fita verde nos calções, dizes que casas comigo. Vamos fazer os pregões16. Acolá fora, na barra, ’tá um cachorrinho a ganir com uma fitinha no rabo p’a fazer a gente rir. Eu sumi o meu lencinho ali’m baixo a brincar. Minha mãe não me dá outro. Em cabelo, eu vou andar.

C_AR_1/ C_GR_2

Quadras soltas (recolha escrita) Se fores domingo à missa fica bem onde eu te veja não me fassas andar louca em leilão por toda a igreja. Ó José muda o teu nome tens um nome bem cruel

muda o teu nome para António e de António para Manuel. Manuel cacho de uvas Óh quem te depenicasse desfamador das moças ó ladrão quem te matasse. Manuel, Manuel,

Manuel meu irmão, espero por ti à tarde, na viagem do avião. Apanhamos este trigo, escolhemos o balanco onde eu fui tomar amor ao lombinho do pau branco. Eu domingo fui à missa e no adro bem te vi

estavas a olhar para as outras e não olhaste para mim. Antoninho me namora eu nele não acho graça passa pelas raparigas deita-lhe a língua de fora. Ficaste de vir não vieste amor, à minha vindima não sabes quanto perdeste o verdelho que lá tinha. Ó meu amor vem cá hoje tenho seia para te dar cafézinho milho frito beijinhos ao caminhar.

O sol já vai lá baixo está perto do anoitecer não vi hoje o meu amor mas tenho intenções de o ver. A oliveira da serra

dá-lhe o vento e cai a flor só queria uma flor dela para dar ao meu amor. Ó quem me dera morrer que para morrer nasci o que me custa passar é caminhos que nunca vi. Ó quem me dera morrer depois de morta ter vida para eu ver quem te lugrava prenda amada tão querida. Vou embora para a cidade que o campo já me aborrece Dentro da cidade eu tenho quem penas por mim padesse. Vou-me embora, vou embora até à semana que vem

quem não me conhece chora que fará quem me quer bem. Vou-me embora para a deserta fazer vida com os peixinhos já que na terra não tenho

quem me logre os meus carinhos. Vou dizer à gente nova

o que custou a ganhar o pão, tudo acarretado às costas e trabalhado à mão. O povo muito trabalhou de manhã ao sol posto. p’ra sustentar a família com fome e suor no rosto. A água era só de poços, a luz era uma candeia,

Inesperadamente, esta recolha é constituída por poucos materiais. Pensamos que os textos compilados são uma pequena amostra de um vasto património que poderá estar a cair em desuso. Parecem ter ficado muitas histórias por contar, muitas quadras por lembrar. De geração em geração, pela “perda de memória” de quem as conhecia, deixam de ser transmitidas, como a profissão que já não é como era. Vão-se perdendo estes aspectos, porque não há, na família, quem se interesse em aprender ou pelo menos conhecer o trabalho destas bordadeiras de casa. As cinco composições, que congregam as quadras ditas por informantes, revelam isso mesmo. Observando-as, verificamos que espelham, muitas vezes, o estado de espírito de quem as cantava (mais do que as dizia), do ambiente do momento ou, inclusive, de algo que já tinha acontecido, nomeadamente situações amorosas. As bordadeiras de casa cantam, descrevendo relações de amor, quer seja o namorado ou a namorada a falar. Numa das quadras de C_MS_1 – quadras soltas, verificamos que o sujeito amoroso é masculino: “Eu falei à rapariga/ quarta-feira c’a lua./ Se ela não me der o sim,/ já não falo a mais nenhuma.” Nota-se o contrário em C_AR_1 – quadras soltas, em que é a jovem a dirigir-se ao namorado: “Ó João, meu Joãozinho,/ de fita verde nos calções,/ dizes que casas comigo./ Vamos fazer os pregões.”. O bordado, intimamente relacionado com o amor, por vezes, também era o elemento inspirador, como comprova a seguinte quadra de C_MS_1 – quadras soltas: “Vou aviar o meu bordado,/ só me falta um garanito,/ p’ra levar a Santo António,/ para o caixeiro mais bonito.”

A imagem das bordadeiras (de casa), que surge em algumas composições, tem sido tema de inspiração criativa, tornando-se estas mulheres protagonistas de poemas (cf. ANDRADE, 1986: 47-49; VIEIRA, 2010: 32, 103, 113), romances (cf. GOUVEIA, 1959), crónicas (VERÍSSIMO, 19-10-1997: 11) e até músicas. Faz parte do repertório do Grupo de Folclore da Casa do Povo da Ribeira Brava, uma música intitulada: Baile das Bordadeiras17, que, também, interliga o amor com o bordado. Este “baile” representa uma homenagem, já que: “Esta dança dignifica todas as bordadeiras da Ribeira Brava, e não só, que passavam dias e dias a bordar para ganhar uns tostões para poderem ajudar no sustento da família.” (Grupo de Folclore da Casa do Povo da Ribeira Brava, s/d).

17 Na página: https://www.youtube.com/watch?v=O00w6cUNaD8, é possível ouvir cantar e ver dançar este “baile”.

Julgamos que algumas das quadras registadas estão relacionadas com o local onde foram recolhidas, já que referem elementos pontuais, por exemplo, um topónimo como o “Lombinho do Pau Branco” em : “Apanhamos este trigo,/ escolhemos o balanco/ onde eu fui tomar amor/ ao lombinho do pau branco.” (C_AR_1/ C_GR_2 – quadras soltas). Pelo contrário, outras não serão específicas das bordadeiras (de casa), nem da zona da Ribeira Brava. É o caso de: “A oliveira da serra/ dá-lhe o vento e cai a flor/ só queria uma flor dela/ para dar ao meu amor.” (C_AR_1/ C_GR_2 – quadras soltas) que parece uma adaptação da canção popular “Oliveira da serra”. Por essa razão, e por várias outras, seria importante analisar, individual e colectivamente, as composições registadas, sobretudo a nível linguístico, para compreendermos até que ponto são património regional. Porém, embora as apresentemos, não o fazemos porque decidimos aprofundar a análise do tipo de material mais representado na recolha realizada: o léxico do Bordado da Madeira, que deu origem ao glossário (cf. capítulo II, ponto 4.2). Parece-nos que o estudo da terminologia, pela sua relevância, necessitava de um tratamento sistemático, visto que, enquanto bordavam, falavam mais do que cantavam, mesmo não se distraindo, nem se prejudicando no trabalho: “falavam, mas não tiravam os olhos do bordado porque as que estavam a ouvir não paravam de bordar e, quando as que estavam a falar reparavam, as outras já levavam um avanço considerável, daí nunca tirarem os olhos do bordado” (S_MD_2).

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