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O câncer infantil, a mãe e a dimensão do cuidado heideggeriano

1. INTRODUÇÃO

1.1. A MÃE, A CRIANÇA E O CÂNCER: CONFRONTOS EXISTENCIAIS

1.1.3. O câncer infantil, a mãe e a dimensão do cuidado heideggeriano

Sabe-se que a representação médica da doença pauta-se em referenciais físicos e anatômicos para definir sua existência. Sob esse olhar, o câncer infantil pode ser entendido como “patologias provocadas pela multiplicação desordenada de células, na maioria das vezes jovens, que dão origem a tumores ou substituem as células normais de um ou mais órgãos, prejudicando suas funções” (Andréa, 2008, p. 477). Sem desconsiderar os referidos parâmetros utilizados pelas ciências biomédicas, abre-se uma licença, nesta sessão, para a necessidade de ampliar o entendimento de saúde, doença e formas de intervenção a partir de outros referenciais, como a hermenêutica heideggeriana.

Recorrendo aos escritos dos Seminários de Zollikon (Heidegger, 2009), Nogueira (2007; 2008) colabora com a discussão acerca do cuidado na medida em que retoma algumas interpretações do filósofo em torno dos fenômenos da saúde e da doença. Sem ignorar a expressão ôntica - da ordem do visível manifesto - dos referidos fenômenos, Heidegger busca compreender o adoecimento a partir de uma leitura ontológica.

Nesse sentido, ele percebe que a doença apresenta-se, primeiramente, como uma vivência inerente à vida humana e que traz, em sua expressão, uma privação existencial, ou seja, uma limitação das suas possibilidades de cuidado, restringindo o exercício de estar

40 consigo mesmo e com os outros. Sob essa perspectiva existencial, na qual doença e saúde servem de referência uma para a outra, mas não estão, de forma alguma, separadas, Valle e Françoso (1997) complementam: “o adoecer é uma possibilidade, e sendo um fato real que pode surgir a qualquer momento da vida do ser humano, podemos concebê-lo como algo que faz parte da natureza humana” (p. 66).

Embora os entendimentos contemporâneos sobre saúde e doença ainda privilegiem o modelo biomédico, é interessante ressaltar que alguns poucos são partidários da demarcação conceitual proposta por Heidegger, fugindo, assim, de um entendimento causalista, dicotômico, oposto ou estritamente sustentado em correlatos físico-patológicos (Ayres, 2004; Caprara, 2003). Essa compreensão que, embora antiga, mostra-se legítima na atualidade, acaba por redimensionar, consequentemente, o entendimento das práticas de cuidado e atenção. Frente a este pensamento, as ações em saúde recolocam-se como possibilidades de espaço e tempo para ressignificar e responder aos motivos nascentes do mundo de uma forma mais satisfatória e autêntica. No devir histórico de cada sujeito, dentre as demandas e exigências que surgem ao seu redor, cuidar no contexto do sofrimento implica entender a si e ao outro enquanto existências permeadas por esses fluxos de sentidos e realizações (Ayres, 2007).

Percebe-se que falar de adoecimento implica, necessariamente, falar de cuidado, constructo este que é tratado por Heidegger sob uma perspectiva ontológica constituinte do

Dasein. Sem destacar os significados ônticos usualmente vinculados à ação do cuidado – “atenção, precaução, cautela; diligência, desvelo, zelo; encargo, responsabilidade, conta; inquietação de espírito; pessoa ou coisa que é objeto de desvelos; pensado, imaginado, meditado; previsto, calculado, suposto.” (Ferreira, 1999, p. 589), Heidegger aprofunda-se na exploração do termo compreendendo-o como estrutura fundamental do homem, que se expressa por modo de proceder com as pessoas e coisas que estão inseridas em seu contexto.

41 Em outras palavras, o Cuidado, sob o referencial ontológico, remete-se à qualidade de “ser de relação com os outros”.

De acordo com Heidegger (1927/2005b), o Dasein apresenta dois modos característicos de cuidado: o modo da ocupação, que se refere à maneira com a qual o Dasein se relaciona com os entes do mundo distintos de si. Neste modo, predomina o aspecto da utilidade e da instrumentalidade, ou seja, vigoram os usos predominantes que o homem estabelece em suas atividades no mundo. O modo da preocupação, por outro lado, diz respeito à maneira diferenciada dos Daseins se relacionarem entre si, graças a sua característica de ser- com (Silva, 2006).

Sobre este último modo de cuidar, Heidegger (1927/2005b) faz uma ressalva para como ele se expressa na cotidianidade. Nesse sentido, ele chama atenção de que, mesmo quando se apresenta a partir da característica geral da indiferença, ainda assim pode ser compreendida como uma forma de cuidado, sendo aquela uma forma conveniente à co-pre- sença intramundana cotidiana e mediana de um com outro. Dentre as formas não indiferentes de cuidado, Heidegger acrescenta ainda os modos de preocupação antepositivo e substitutivo, reconhecendo a forma mista de ambos se expressarem (Sá, 2000).

No primeiro, o Dasein relaciona-se com outro Dasein, permitindo que este se aproprie do próprio cuidado, possibilitando-lhe participação e poder de decisão. No segundo, Heidegger (1927/2005b) busca tratar de situações nas quais o Dasein “retira o ‘cuidado’ do outro e toma-lhe o lugar nas ocupações, substituindo-o” (p.173). Significa, portanto, colocar- se no lugar do outro, fazer pelo outro, quando este outro se vê impossibilitado de fazer por si mesmo. Embora reconhecido no seu valor positivo, a substituição, quando empreendida indiscriminadamente e sem tomada de consciência, pode instaurar uma relação de dependência prejudicial, na qual a vida de um torna-se subjugada às decisões de outro (Pala, 2008).

42 Heidegger (1927/2005b) chama atenção à ideia de que atividades como alimentação e vestuário e condutas associadas ao contexto do adoecimento (auxílio na prescrição e no uso de medicamentos) podem ser inclusas no conjunto de ações relativas ao modo característico da preocupação. Nesse sentido, é possível pensar o contexto do adoecimento infantil em decorrência do câncer como um período favorável a esse tipo de preocupação por parte das mães.

É interessante recordar, entretanto, que as circunstâncias do câncer infantil – sobretudo, o risco da morte impendente - solicitam, frequentemente, uma dedicação prolongada do cuidador principal, requerendo destas mães o estabelecimento deste modo de funcionamento por tempo indeterminado. Segundo essa linha compreensiva, pode-se supor que quando o advento da cura ou do óbito visitam essas mães, exige delas outras formas de se relacionar com o filho. Nesse novo cenário, elas parecem demonstrar dificuldade de transitar entre as diferentes formas de se relacionar, sugerindo, portanto, que a experiência de ser mãe de uma criança com câncer pode acarretar mudanças no modo dessas mulheres se relacionaram com o mundo, não se enxergando como dispostas e disponíveis a formas mais fluidas de contato e convívio.

Diante destas considerações fundamentadas na hermenêutica heideggeriana, pensar o cuidado no contexto do câncer infantil implica aceitar que a experiência de cada mãe estará legitimada na relação singular entre ela e seu filho que, por sua vez, convocará atos e palavras sempre de uma forma nova, caracterizando-se como um movimento helicoidal e não linear. Corroborando essas ideias, Spanoudis (1981) resume de forma simples e compreensiva que cuidar, no sentido heideggeriano, significa: “possibilitar o outro a assumir seus próprios caminhos, crescer, amadurecer, encontrar-se consigo mesmo”. (p. 19-20)

Partindo deste referencial, faz-se necessário ainda abordar a participação dos profissionais de saúde, situando-os frente à responsabilidade de suas ações e os efeitos que

43 podem ser produzidos a partir de uma relação autêntica de cuidado. Desta forma, pressupondo-se que todos os profissionais que atuam em um serviço de oncologia pediátrica convivem diariamente com situações desconhecidas e desafiantes, Ayres (2004) propõe um retorno e uma revalorização da sabedoria prática (conhecimento de natureza imprevisível e momentânea) como condição prévia de abertura para um encontro original na relação profissional de saúde-paciente. A originalidade desta proposta não está ancorada na produção de novas técnicas que encubram a singularidade do sujeito, mas sim numa abertura cuidadosa dos sentidos para o ser-no-mundo que padece, sofre e paralisa-se diante da vida.