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Ser mãe de uma criança com câncer: significados e repercussões

1. INTRODUÇÃO

1.1. A MÃE, A CRIANÇA E O CÂNCER: CONFRONTOS EXISTENCIAIS

1.1.2. Ser mãe de uma criança com câncer: significados e repercussões

A literatura é unânime quando se trata da descrição do impacto do diagnóstico do câncer infantil na vida do paciente e, principalmente, dos seus cuidadores principais. Sentimentos de tristeza, dúvidas e incertezas quanto ao futuro, além do medo da morte aparecem de maneira recorrente em diversos trabalhos analisados (Angelo, Moreira & Rodrigues, 2010; Beltrão, Vasconcelos, Pontes & Albuquerque, 2007; Nascimento, Rocha, Hayes & Lima, 2005; Menezes, Passareli, Drude, Santos & Valle, 2007). Percebe-se que, a despeito dos resultados no campo da medicina indicarem evolução nas técnicas de tratamento da doença, a representação majoritária do câncer insiste em associar-se a conteúdos negativos e pessimistas, carregados de estigmas e preconceitos.

Bonfim, Bastos e Carvalho (2007) afirmam que o processo de hospitalização, em decorrência de adoecimento, inclui-se no grupo de eventos não normativos que podem surgir no ciclo de vida de uma pessoa. Compreendida como uma crise inesperada, a primeira comunicação sobre a doença pode desencadear momentos estressantes àqueles afetados diretamente ou indiretamente por ela. Segundo Chiattone (2003), a maneira como cada sujeito irá reagir está atrelada aos diversos fatores que interferem nessa resposta, tais como: o tipo da doença e o significado atribuído à mesma, a forma como a notícia é comunicada, experiências prévias com o adoecimento, dinâmica do grupo familiar, dentre outros. Steffen e Castoldi (2006) chamam atenção ainda para o lugar que cada criança ocupa no imaginário de seus pais, bem como para os planos e expectativas que elas despertam, individualmente, dentro desta relação específica.

36 Dentro do mundo diversificado de patologias que podem surgir na infância, alguns autores particularizam o lugar do câncer (Deitos & Gaspary, 1997). Silva, Andrade, Barbosa e Hoffman (2009) afirmam, por exemplo, que “a vivência do câncer é mais disruptiva para os pacientes e suas famílias do que outras formas de doença” (p. 36), uma vez que somente nela é possível verificar a presença de temores de morte desde a sua origem até a sua conclusão (seja ela a cura ou a morte) (Ortiz, 2003).

Individualizando ainda mais os efeito desta vivência, outros autores dedicam-se ainda a diferenciar os impactos dessa forma de adoecimento infantil no que se refere ao membro familiar, à dinâmica conjugal dos pais, bem como à relação mãe-filho doente. Santos e Gonçalves (2008), indo ao encontro desta última tendência de estudos, verificam que os significados negativos atribuídos à doença, sobretudo o temor diante da possível morte do filho, tornam-se a motivação principal de seus atos. Diante da consciência da ausência de controle sobre a vida do filho, as mães costumam lidar com o sentimento de impotência inicial buscando uma parcela mínima de segurança através das informações médicas e da sua participação ativa no tratamento do filho.

A maior parte dos estudos realizados com familiares/cuidadores de crianças com câncer enfatiza que a mãe é a personagem que mais se envolve nos cuidados com o filho enfermo (Beltrão, Vasconcelos, Pontes & Albuquerque, 2007; Moreira & Angelo, 2008; Santos & Gonçalves, 2008; Ortiz, 2003; Wegner & Pedro, 2010). Essa responsabilidade para com o cuidado, como já foi bastante explorada na primeira sessão deste capítulo, consistiu numa atribuição inaugurada pela modernidade como uma ação moral e desejada socialmente. Não diferente das outras situações da vida, nos casos de padecimento do público infantil, essa função reaparece e se reatualiza frente às novas necessidades de um tratamento.

Alguns fatores são alegados por essas mulheres como justificativa ou explicação para esse lugar privilegiado que elas ocupam, tais como: a autoridade frente a um conhecimento

37 historicamente “transgeracional” (passado de mãe para filha)¸ o instinto biológico e as dificuldades do homem para desempenhar tal atividade (Wegner & Pedro, 2010).

Quando uma criança adoece de câncer, seu cotidiano pessoal e o de sua família atravessam um vasto número de transformações físicas, psicológicas, econômicas e sociais (Beck & Lopes, 2007). No caso das mães, o enfrentamento da doença acarretará uma série de mudanças efetivas no seio familiar. Aquela que antes executava múltiplos papéis, vê-se solicitada a priorizar o seu papel de mãe, focalizando suas atenções e cuidados sobre o filho com câncer. É inevitável que, diante desses rearranjos impostos pelo processo de tratamento da doença, esta figura sofra algumas consequências, como o prejuízo com as demais relações familiares e a perda do emprego, diante da dificuldade em conciliá-lo com os sucessivos e necessários episódios de internamento da criança.

Nesse novo contexto no qual o cuidado com outro significativo se sobrepõe ao próprio autocuidado, o enfrentamento da doença do filho pode passar a significar total abandono e renúncia de coisas e situações que se remetiam ao prazer e à satisfação. É como se para autenticar a sua dedicação com o filho, houvesse uma exigência social de privação. Do conflito entre a saudade pela vida passada e o imperativo da doença, essas mães costumam deixar-se guiar pelas noções de perigo (contra o filho) e pela urgência do tempo, o amor do filho torna secundária qualquer outra coisa (inclusive ela mesma), sobrepondo-se a tudo (Beck & Lopes, 200; Santos e Gonçalves, 2008).

A despeito, entretanto, de grande parcela de mães se queixarem da sobrecarga de tarefas assumidas durante o tratamento oncológico infantil, nota-se igualmente que, para algumas delas, o cuidado com o filho torna-se uma atividade insubstituível, sem possibilidades de compartilhamento, sugerindo assim um caráter de posse, poder e exclusividade perante esta tarefa. Sobre esta conflituosa realidade, Wegner e Pedro (2010), refletem sobre algumas questões que permeiam a noção de cuidado:

38 Quais seriam as estratégias para preparar alguém a exercer o cuidado? Há alternativas para se instrumentalizar alguém a cuidar? Sabe-se que o cuidar faz parte das características singulares do ser humano, todos podem aprender e compreender o cuidar sob diferentes perspectivas. A mulher poderia ensinar e compartilhar com o homem o desempenho desse papel na sociedade contemporânea? (p. 338).

Percebe-se que, embora compreendam o cuidado como uma característica eminentemente humana, os autores recorrem ao fator da instrumentalidade do mesmo, ou seja, da forma como ele se concretiza, sugerindo pluralidade no seu saber-fazer. Longe de pretender responder as perguntas supracitadas, este trabalho dirige-se ao caminho de provocar novas indagações. Tomando o referencial fenomenológico e a discussão acerca da técnica alavancada por Heidegger nascem, neste momento, algumas inquietações.

Heidegger (1965/2010a) alega que a essência da técnica não se encontra na instrumentalidade, ou seja, não está assentada na realização de um feito, mas é, em última medida, uma forma de desencobrimento ou desvelamento, que permite que algo seja produzido. A sociedade moderna, fundamentada no conhecimento advindo das ciências exatas e da natureza, reservou sentidos próprios de utilidade à essência do desencobrimento, de modo que a técnica empreendida por ela mostrou-se marcada por um forte sentido de exploração. Esta marca tem conduzido toda a sociedade, nas suas mais diversas camadas de atuação, a uma trajetória construída sobre fortes ideais de controle. Sob essa lógica, as ações humanas têm se configurado como meios para atingir um fim.

Transpor essa realidade para o campo da saúde, no qual as práticas de cuidado assumem uma função privilegiada, significa questionar e refletir sobre a essência que tem orientado estas atuações humanas.

Na tentativa de aproximar toda a discussão efetuada até o presente momento da temática do cuidado materno, outras demandas insistem em aparecer: É possível falar de uma essência no cuidado que rege as relações entre mães e filhos? É aceitável, portanto, pensar em

39 um só modo de expressão que reúna todas essas mulheres na sua forma de agir? E nas circunstâncias de adoecimento em virtude do câncer infantil, qual ou quais modos de cuidado têm-se declarado proeminentes nesta relação? A próxima sessão tem como objetivo principal dedicar-se a esses últimos questionamentos, elaborando reflexões sobre o adoecimento e o papel materno, e utilizando-se do conceito de cuidado trazido pela fenomenologia de Martin Heidegger, como noção constituinte do ser humano que perpassa todas as suas relações.