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1. A RELIGIÃO COMO INSTITUIÇÃO DE AGREGAÇÃO SOCIAL E COMO FORMA DE

1.1. O Candomblé, inserido no Pluralismo Religioso Brasileiro

Buscando referenciais teóricos que me ajudassem a pensar a categoria “religião” no Brasil, constatei que a complexidade e a diversidade do campo religioso brasileiro têm despertado, historicamente, o interesse da Sociologia e da Antropologia. Principalmente com o surgimento de novos e instigantes movimentos, reafirmando – pelo menos no que diz respeito à religiosidade – características atribuídas à pós-modernidade, o pluralismo religioso surge – e se estabelece – no Brasil, desafiando a tese weberiana da secularização, ou seja, a ruptura do poder do Estado e dos dogmas da Igreja.

Marcado por uma perspectiva de inspiração weberiana, o debate sobre religião no Brasil pauta-se, em grande parte, pela questão da separação entre religião e a esfera pública. Portanto, perpassa pelas esferas do que é privado e público, pelo direito individual e o coletivo, pela distinção entre Religião e Estado e pelas agências de representação constituídas pela sociedade no âmbito da Religião e da Política.

Para DURKHEIM (2003) “Em primeiro lugar, não podemos chegar a compreender as religiões mais recentes a não ser acompanhando na história a maneira como elas progressivamente se compuseram [...]”.

MONTERO (2009) distingue que o pluralismo religioso da Europa principalmente na França – é fruto de uma longa história de guerras religiosas e movimentos cismáticos, desafiando a correspondência entre unidade política e unidade religiosa. Diferentemente do pluralismo religioso no Brasil, onde o próprio processo de separação entre a Igreja e o Estado teve como produto histórico o surgimento de novas religiões.

MONTERO (2009) afirma que:

[...] “Durante meio século práticas de cura, danças, tambores, reuniões de possessões, sacrifícios de animais enfrentaram a ordem repressiva do Estado, ora porque desafiavam a moralidade pública, ora porque levavam à histeria e outras doenças, ora porque eram simples expressão de incivilidade e “barbarie”. Ao mesmo tempo, no mesmo período e por diversas razões que não cabe aqui retomar, médicos, advogados, intelectuais e lideres de toda sorte tentavam demonstrar que essas práticas não representavam uma ameaça à ordem e à saúde pública porque, na verdade, deviam ser entendidas como práticas religiosas”.

Para MONTERO (2009), o pluralismo religioso brasileiro seria decorrente de um processo histórico de controvérsias sobre práticas de cura, feitiçaria e possessões, o que implicou na “invenção de novas religiões”.

Fruto do processo de extradição de povos de origem africana – tráfico negreiro – e da diversidade cultural na constituição do povo brasileiro, foram inseridas no pluralismo religioso brasileiro as “religiões de matriz africana” ou “religiões afro-brasileiras”.

As aspas colocadas nos termos “religiões de matriz africana” e “religiões afro-brasileiras” têm sido assim nomeadas ao longo da história em vasto referencial teórico produzido por autores e pesquisadores das Ciências Sociais no contexto religioso brasileiro, destacando-se Raimundo Nina Rodrigues e Roger Bastide.

PRANDI (2013, p.5) afirma que:

Para os censos de 1991, 2000 e 2010, podemos contar com dados que separam o Candomblé e a Umbanda, sendo que a classificação Candomblé reúne as chamadas religiões afro-brasileiras tradicionais: Candomblé, Xangô, Tambor de Mina, Batuque.

Em função da “diáspora africana”, o tráfico negreiro provocou no Brasil a mistura de negros originários de várias regiões do continente africano, de línguas, hábitos e culturas diferentes, inclusive a mitologia dos seus deuses. Porém, esses africanos eram mantidos misturados como escravos nas senzalas das fazendas na periferia urbana brasileira.

Nos centros urbanos havia negros alforriados, escravos de ganho e domésticos, que circulavam com maior frequência e, em virtude da maior liberdade de movimento, estreitavam seus laços com maior facilidade.

E aqui, os africanos se identificavam pertencentes a uma ou outra “Nação19” do continente africano. Embora cada uma delas era, na África, governada

por um orixá específico, em terras brasileiras puderam juntar a força dos vários orixás, estabelecendo assim, um elo de aproximação às suas origens e aos seus deuses, como forma de suportar o sofrimento e a opressão imposta pelo tráfico negreiro. Segundo CARNEIRO (2008), na Bahia, foram identificadas várias Nações como Ketu20, Nagô, Angola, Jeje21, Banto, Ijexá22, Congo, entre outras.

Despojados de seus símbolos, objetos e representações materiais, trouxeram um grande legado, principalmente pela palavra – oralidade – pelo canto,

19 Grupo de divindades provenientes da mesma etnia africana (Congo, Angola, Jeje, etc.) ou do mesmo grupo

étnico (Ketu, Ijexá, Oyó, etc.). A nação designa igualmente o grupo humano que no Brasil cultua estas divindades. (LÉPINE, 2004, p.74)

20 Nação do Candomblé. As primeiras Casas de culto kétu teriam sido fundadas por sacerdotes da cidade de

Kétu. (LÉPINE, 2004, p.73)

21 Nação do Candomblé, etnia africana de origem daomeana. (LÉPINE, 2004, p.73) 22 Nome de uma tribo ioruba, “nação” do Candomblé. (LÉPINE, 2004, p.72)

dança, culinária ritual, pelos mitos, ritos e crenças. Dando origem, assim, às religiões afro-brasileiras. Na citação de Prandi, é possível encontrar a estratégia e habilidade desses negros.

Para se viver no Brasil, mesmo sendo escravo, e principalmente depois, sendo negro livre, era indispensável antes de mais nada ser católico. Por isso, os negros que recriaram no Brasil as religiões africanas dos orixás, voduns e inquices se diziam católicos e se comportavam como tais. Além dos rituais de seu ancestrais, freqüentavam também os ritos católicos. […] Desde o início as religiões afro-brasileiras se fizeram sincréticas, estabelecendo paralelismos entre divindades africanas e santos católicos, adotando o calendário de festas do catolicismo, valorizando a freqüência aos ritos e sacramentos da igreja (PRANDI, 2003 p.16).

Fato é que, desde cedo, africanos, africanas e seus descendentes expostos à escravidão, ao se depararem com universos simbólicos diversos, ao invés de se fecharem, foram capazes de abrir uma série de diálogos, pois sabiam que disso dependia a manutenção de suas religiões tradicionais.

O resultado foi a construção de uma religião denominada Candomblé, que assumiu o significado de núcleo de africanidade, preservando grande parte das características de cada uma das “Nações Africanas”, das mitologias, dos dialetos, dos ritos, dos mitos, dos rituais, da estrutura hierárquica e das diferentes liturgias. Portanto, é essa trajetória que nos permite, atualmente, uma melhor compreensão das diferenças e semelhanças encontradas nos rituais de cultos aos orixás nos vários templos ou casas de Candomblé espalhados por todo o país.

O Candomblé assume sua vocação de reunir e manter memórias remotas dos rituais religiosos africanos no Brasil. Segundo BASTIDE (1989) “o Candomblé evoca bem essa África reproduzida no solo brasileiro, de novo florescendo”.

Os negros conseguiram re-significar o culto aos orixás, continuaram adorando e crendo nos seus deuses, preservando a tradição do culto religioso e seguindo a orientação do “Deus Supremo” de cada uma dessas “Nações” que, não por acaso, recebem diferentes denominações como Olofim, Olodumare23, Olorum24,

Obatalá25, Zaniapombo26, Oxalá27, Zambi28, entre outras.

Aqui no Brasil, as chamadas “Nações” são sistemas organizados a partir de referências etnolínguísticas e demais componentes sociais e culturais de povos que experimentaramseus legados no forçado processo de escravidão. Desde então, veem novas formas de reunir e reagrupar segmentos espalhados na diáspora, buscando, assim, retomar, viver, relembrar e transmitir sabedorias que as religiões africanas legitimavam nos seus territórios de origem.

Para os povos africanos, os mitos, ritos, crenças e rituais – inclusive o sacrifício de animais como oferenda – representam a ligação com os orixás. Nesse contexto a antropóloga Paula Montero afirma que:

[...] O pluralismo religioso no Brasil, isto é, o reconhecimento legal da diversidade de cultos e a garantia de liberdade religiosa foi o resultado de um longo debate político-científico em torno daquilo que o Estado (e a sociedade) podiam legitimamente reconhecer e aceitar como “prática religiosa”. (MONTERO, 2009, p.10)

Desta forma, acredito estar diante de evidência possível de apontar uma primeira controvérsia em que se insere o objeto desta pesquisa: a oposição entre os valores religiosos do Candomblé e a tentativa – permeada pela intolerância e pelo racismo – de obstar o direito à cidadania religiosa de um grupo social.

23 Segundo VERGER (1997, p.21) “Acima dos orixás reina um deus supremo, Olodumaré, cuja etimologia é

duvidosa. É um deus distante, inacessível [...] Ele criou os orixás para governarem e supervisionarem o mundo”.

24 Segundo a classificação de CARNERO (2008, p.63), é o “deus supremo para os nagôs”.

25 Também chamado de Orixalá. Divindade da criação. Deus supremo entre os fon. (VERGER, 1997, p.17) 26 Segundo a classificação de CARNERO (2008, p.63), é o “deus supremo para as nações Caboclo e Congo”. 27 Segundo BAÇAN (2012, p.43) “este é o nome pelo qual se conhece, no Brasil, Obatálá (o Senhor do Pano

Branco) e significa "o grande orisa". Filho de Olóorun foi encarregado por este de criar o mundo e os homens […]Costuma-se sincretizá-lo com Nosso Senhor do Bonfim”.

Antes de analisar estas controvérsias, é importante entender o que é o sacrifício animal no contexto religioso e sua origem. Além de considerar aspectos conceituais sobre o mesmo: o que compreende o rito e ritual; em que circunstância ele ocorre; qual seu objetivo e qual é importância da natureza e da função do sacrifício animal nos rituais do Candomblé.

2. O RITUAL RELIGIOSO DE SACRIFÍCIO ANIMAL NA HISTÓRIA