• Nenhum resultado encontrado

SEÇÃO 3 – ESTUDO DAS CATEGORIAS DE PARCERIA, CIDADANIA E JUSTIÇA SOCIAL NOS PROGRAMAS DA SECRETARIA DE ESTADO DA

3.5. O Caráter Civilizador e Modernizante dos Programas

Expomos nos itens anteriores nossas análises referentes às concepções de parceria, cidadania e justiça social nos cinco programas sociais da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, apresentando seu caráter descentralizador e indutor. Descentralizador, pois assumem importante papel na política educacional numa atuação conjunta com o ideário neoliberal (administração gerencial) e adéquam-se às exigências internacionais a países da América Latina. Indutor, pois induzem a uma cidadania regulada, desprovida de direitos, a uma justiça social que se confunde com equidade (igualdade de oportunidades) e questões de mérito e à corresponsabilização dos jovens e membros das comunidades por problemas oriundos do próprio sistema de produção e distribuição de riquezas.

Neste item, pretendemos explorar o caráter civilizador dos programas da SEESP (exposto brevemente nos itens anteriores) à luz da obra O Processo Civilizador, de Norbert Elias, devido à maneira explícita de apresentar-se no discurso dos programas a ideia de que eles são necessários porque há um déficit na sociedade ou na comunidade ao qual eles são dirigidos. Não obstante, a obra de Elias (1994) permitir-nos-á articular as concepções de parceria, cidadania e justiça social, de forma a compreender seu papel do discurso oficial da SEESP, sua relação com as políticas compensatórias e sua articulação com o projeto de modernização e racionalização da política educacional determinada para o sistema estadual paulista de ensino.

Primeiramente, constatamos que a abordagem feita pelos programas sobre a violência trata-se de uma abordagem negativa, pois aponta para a ideia de que a violência é considerada um estado de ausência, algo “negativo”, ou uma “falta de civilização” ou de “conhecimento”, quase um estado de perdição. Ao mesmo tempo em que os programas são apresentados como projetos de salvação, que eliminariam a barbárie e recuperariam a paz social, há o caráter civilizador dos projetos, já apontado em diferentes momentos deste trabalho.

Pudemos observar também nos estratos dos documentos dos programas sociais da SEESP, expostos nesta seção, que há interesse por parte dos idealizadores dos programas em disseminar uma cultura de paz social por meio da corresponsabilização dos indivíduos por ações sociais voluntárias voltadas à solidariedade social. Tais ações corresponderiam ao exercício da cidadania e à justiça social, bem como à participação cidadã dos indivíduos nos problemas comunitários.

Vimos também que os programas buscam parcerias com o Segundo Setor a fim de captar recursos e conhecimentos técnicos de gestão empresarial para uma maior eficiência e, além disso, inculcam nos jovens, público-alvo dos programas, competências direcionadas por documentos educacionais de agências internacionais, como a UNESCO, e exigidas pelo moderno mercado de trabalho como condições essenciais ao sucesso profissional.

A partir dessas constatações, podemos verificar que há uma espécie de processo civilizador inserido no discurso dos programas, que inculca a gestão de si e do tempo livre nos jovens participantes dos programas a fim de que tenham consciência de que são responsáveis não só pelos problemas sociais de sua comunidade, mas por seu sucesso profissional. A partir disso, dissemina-se uma cultura de contenção das emoções e impulsos, que permitiria ao jovem adequar-se (adaptar-se) aos complexos mercado de trabalho e estrutura de diferenciação social. Simultaneamente, o discurso civilizador adquire caráter moderno por sua imersão em concepções e conteúdos gerenciais (advindos do Segundo Setor) que creditam valor a resultados positivos e ao sucesso.

Segundo Norbert Elias (1994), o processo civilizador é uma obra lenta de construção do homem pelo homem. A passagem de cada indivíduo humano por um processo civilizador é o que o leva a atingir o padrão de civilização conquistado pela sociedade no curso da sua história. O conceito de civilização expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo e resumiria tudo em que a sociedade ocidental dos últimos

dois ou três séculos se julga superior às sociedade mais antigas ou às sociedades contemporâneas “mais primitivas”. Neste sentido, a passagem pelo processo educacional seria uma forma de permitir o acesso a esta cultura civilizada e a violência pode ser considerada, nesta perspectiva, como ausência de polimento e indisciplinamento das paixões.

Do período mais remoto da história do Ocidente até os nossos dias, as funções sociais, sob pressão da competição, tomaram-se cada vez mais diferenciadas. Quanto mais diferenciadas elas se tornavam, mais crescia o número de funções e, assim, de pessoas das quais o indivíduo constantemente dependia em todas suas ações, desde as simples e comuns até as complexas e raras. À medida que mais pessoas sintonizavam sua conduta com a de outras, a teia de ações teria que se organizar de forma sempre mais rigorosa e precisa, a fim de que cada ação individual desempenhasse uma função social. O indivíduo era compelido a regular a conduta de maneira mais diferenciada, uniforme e estável. (ELIAS, 1994, p. 195-196)

Na perspectiva de Elias (1994), as ações cotidianas civilizadas nos parecem naturais, porque fomos adaptados e condicionados a esse padrão social desde a mais tenra infância. Estes procedimentos, entretanto, têm uma história social que foi lenta e laboriosamente constituída e desenvolvida pela sociedade como um todo de maneira nem racional nem irracional, ou seja, o processo civilizador não se caracteriza por uma ação intencional planejada a longo prazo por indivíduos de determinada sociedade, mas constitui-se de fatos históricos perpassados por conflitos de interesses e relações sociais cada vez mais complexas e diferenciadas.

Elias (1994) procura mostrar o processo pelo qual os hábitos, práticas e costumes foram se tornando educados, civilizados e considerados „boas maneiras‟. Trata-se de um processo de docilização e controle cada vez mais rigoroso dos impulsos e emoções. Esse controle é inicialmente imposto por elementos de alta categoria social, como a nobreza, aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus socialmente iguais. Mais tarde, com a instituição do núcleo familiar burguês, assume a tarefa de incutir o controle de impulsos. Por isso, no capitalismo, a dependência social da criança em relação à família torna-se o centro da regulação e modelagem para a vida social.

Por esse motivo, em uma sociedade na qual os valores burgueses e a concepção de progresso e modernização, característicos da civilização ocidental, não encontram solo fértil para enraizar – porque as desigualdades econômicas, sociais e políticas impõem um abismo entre os indivíduos dos diferentes níveis sociais –, é constituído outro tipo de organização social e cultura com lógica própria. Frequentemente à

margem do sistema, os indivíduos colocam-se à margem do próprio ordenamento jurídico, que não reconhecem por não se verem reconhecidos nele. Trata-se aqui de um processo de resistência e afirmação de uma identidade cultural própria com seus próprios conceitos éticos e morais e não de uma ausência de cultura.

A concepção civilizatória sempre caracterizou o ideário liberal, que pretende integrar o Brasil à civilização ocidental e, portanto, à própria concepção de mundo, à cultura e racionalidade ocidentais representadas pela vitória das luzes sobre as trevas, da razão sobre a ignorância, alicerces da paz, liberdade, ordem e progresso social das sociedades modernas. Esta tarefa é, desde o século XIX, responsabilidade da escola, que deveria ser concebida com o instrumento privilegiado de remodelamento dos indivíduos em prol de um futuro de esperanças (RISCAL, 2010).

A partir disso, constatamos que civilização é, nos programas estudados, tradução de modernização e de inserção no mundo de tecnologia e globalização, pois a contenção dos impulsos e a autogestão são competências objetivadas pelos programas para essa inserção.

Destaque-se que a autogestão e o sucesso almejados pelos programas têm caráter individual, isto é, o jovem poderá, só ele, se aderir aos preceitos que os programas defendem, entrar no competitivo mercado de trabalho. Esse objetivo é contraditório em relação aos ideais de comunidade e participação cidadã em favor do bem-comum que os programas tanto exploram e nos quais tanto se apóiam.

Portanto, o discurso dos programas sociais da SEESP objeto deste estudo tem caráter civilizador e modernizante por promover a adaptação dos jovens a um sistema que os diferencia numa competição desigual por meio de resultados individuais, sendo que seus fracassos advêm de suas condutas enquanto aspirantes a cidadãos com direitos. Mais que isso, percebemos que a política educacional dos órgãos internos da SEESP – FDE e CENP –, responsáveis pela criação da maioria dos programas sociais da Secretaria, bem como a própria Secretaria, estão engajados num processo de racionalização e modernização da educação paulista que, apoiando-se em valores morais e éticos, cultuam a coletividade por meio de concepções como cidadania, justiça social e participação, mas julgam pela individualidade, por meio (i) da articulação das concepções de parceria, cidadania e justiça social – bem como de outras, como participação, comunidade, bem-comum, etc. – com um processo civilizador que acalma e disciplina a conduta e (ii) de um processo que conforma seus públicos-alvo e demais

profissionais da educação e membros das comunidades em torno das unidades escolares aos resultados incertos de uma sociedade complexa e desigual.

3.6. Conjunto da Obra: o Discurso “Justo”, “Cidadão” e “Parceiro” dos