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O Caráter Patrimonialista da Legislação e sua Mudança Paradigmática

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CAPÍTULO 3 ASPECTOS PRÁTICOS E PROCESSUAIS ADVINDOS DO

3.1 O Caráter Patrimonialista da Legislação e sua Mudança Paradigmática

A primeira codificação civil brasileira, Código Civil de 1916, assim como as Ordenações Filipinas – diploma legal que tratou das relações privadas no Brasil antes da sua independência -, sempre teve uma preocupação significativa pela proteção do patrimônio.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald destacam esse caráter materialista do Código Civil de 1916, ensinando que:

O Código Civil de 1916 seguia uma ideologia marcadamente individualista, na qual a vontade humana poderia atuar com total liberdade. Para que a liberdade econômica fosse plena, a legislação apreciava cada integrante de uma relação jurídica como um abstrato sujeito de direitos patrimoniais (FARIAS E ROSENVALD, 2016, p. 56).

O que se prestigiava sob a égide do Código Civil de 1916 era a posição formal que a pessoa exercia na relação jurídica, ignorando as particularidades de cada indivíduo e negando a especificidade de cada pessoa.

Como consequência lógica, o sistema das incapacidades fora influenciado e pensado sobre a ótica do patrimônio, não sendo observada, sob qualquer hipótese, preocupação com as questões existenciais relativas ao ser humano. A tônica da norma insculpida no Código Civil de 1916 era de preservar a segurança jurídica assegurando valores patrimoniais e evitando que a pessoa declarada incapaz pudesse praticar atos que gerassem efeitos no seu patrimônio e de terceiros (PEREIRA, 2007, p. 272).

Essa perspectiva patrimonialista, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, perdeu força frente aos novos ideais constitucionais prescritos na nova Carta Magna, que prega a proteção da pessoa humana no desenvolvimento de suas relações privadas.

À frente desse cenário, o Código Civil de 2002 necessitava abarcar em seu bojo referências e valores conectados com o que a Constituição da República aspirava, que é a garantia dos direitos fundamentais do ser humano.

Acoplado com a perspectiva de incluir o ser humano como núcleo central do ordenamento jurídico constitucional, o Código Civil de 2002 buscou dar um tratamento mais particular ao indivíduo, examinando-o em suas peculiaridades específicas (FACHIN, 2003, p. 56).

Esse processo de personalização do Direito Civil deflagrou uma mudança de paradigma no que diz respeito à interpretação das normas civis, implantando-se a obrigatoriedade de se analisar as relações jurídicas privadas sob a ótica existencialista advinda do texto constitucional.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald doutrinam que:

Fruto dessa socialização das relações patrimoniais, apesar da histórica influência do princípio da autonomia da vontade, é certo que o Direito Civil – no Brasil, especialmente após a Constitucional de 1988 – sofre alterações significativas no seu conteúdo valorativo. É que, como já dissemos noutra sede, a socialidade da norma civil ou a função social do direito civil consiste exatamente na manutenção de uma relação de cooperação entre os partícipes das relações jurídicas – bem como entre eles e a sociedade -, a fim de que seja possível, ao seu término, a consecução do bem (fim) comum da relação jurídica. É a despatrimonialização apontada pela doutrina mais contemporânea. (FARIAS E ROSENVALD, 2016, p. 105).

A teoria da incapacidade não foi elaborada com vista à proteção da personalidade do indivíduo incapacitado, mas sim fulcrado como instrumento da proteção patrimonial daquele que, em tese, não teria condições de praticar atos

tendentes à preservação de seu próprio patrimônio, visando a segurança jurídica da pessoa incapaz e das demais pessoas envolvidas na relação negocial.

Esse caráter materialista insculpido historicamente no sistema jurídico brasileiro demonstra indubitavelmente que a preocupação da legislação pátria sempre foi a proteção do patrimônio da pessoa incapaz, relegando as questões existenciais atinentes às pessoas incapacitadas a um segundo plano, quiçá, quando eram levadas em consideração.

Essa premissa é evidenciada quando se analisa as funções do curador nomeado para representar uma pessoa interditada, como se observa na dicção dos artigos 1.756 e 1.757 do Código Civil de 2002, senão vejamos:

Art. 1.756. No fim de cada ano de administração, os tutores submeterão ao juiz o balanço respectivo que, depois de aprovado, se anexará aos autos do inventário.

Art. 1.757. Os tutores prestarão contas de dois em dois anos, e também quando, por qualquer motivo, deixarem o exercício da tutela ou toda vez que o juiz achar conveniente. Parágrafo único. As contas serão prestadas em juízo, e julgadas depois da audiência dos interessados, recolhendo o tutor imediatamente a estabelecimento bancário oficial os saldos, ou adquirindo bens imóveis, ou títulos, obrigações ou letras, na forma do § 1º do art. 1.753.

A análise desses dispositivos legais, que estão indicados no Código Civil de 2002, demanda a ilação de que a preocupação precípua do legislador é o patrimônio do incapaz e a segurança jurídica dos negócios, não havendo qualquer comprometimento com os cuidados direcionados à personalidade do incapaz.

Se amostra clara a intenção em proteger o patrimônio em detrimento da pessoa do incapacitado, à medida que se exige do curador a prestação de contas anuais dos negócios que envolvem o patrimônio do incapaz e, ao mesmo tempo, não há que se falar em obrigação de prestação de contas com relação aos cuidados dispensados ao curatelado, com relatos da situação psicológica e física do interditado.

Como a tônica de que a antiquada concepção materialista que incide sobre a teoria da incapacidade civil deve ser esquecida é que se afirma haver uma mudança paradigmática na concepção afeta à matéria, a fim de que se dê tratamento digno às pessoas humanas consideradas incapazes de praticar atos da vida civil.

A pessoa humana nessa abordagem mais moderna se torna a grande referência para a codificação civil, vale dizer, volta a ser o centro epistemológico do

Direito Civil, que passa a ter como fundamento precípuo a afirmação da dignidade da pessoa humana (FACHIN, 2003, p. 57).

Nessa linha é que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Estatuto da Pessoa com Deficiência foram editadas, objetivando-se concretizar a eliminação dessa concepção patrimonialista e, por conseguinte, implementar dignidade e inclusão às pessoas com deficiência, que serão instrumentalizadas mediante a aplicação de uma abordagem isonômica e pautada no princípio da dignidade da pessoa humana.

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