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Capítulo 3: Da construção da morte às mortes em Veja

3.2. Análise das reportagens por eixos temáticos

3.2.2. Morte por assassinato

3.2.2.2. O caso Isabella Nardoni

Por tratar-se de um crime envolvendo o pai e a madastra da menina, todos os veículos noticiaram, no primeiro momento, como se Isabella tivesse caído da janela ou repetiram a história contada pelo pai e madastra de que alguém teria entrado no quarto da menina, enquanto o pai desceu à garagem para apanhar os outros filhos, e jogado Isabella pela janela. A polícia já levantava suspeita de que a historia poderia ser outra.

Sem uma posição firmada e dados concretos, Veja optou por uma capa que induzia o leitor ao seu ponto de vista, sem nada explicitar. Com a chamada “O Mal – crianças abandonadas, torturadas e assassinadas”, a revista trata o assunto de forma geral, abordando crimes brutais que aconteceram naquele período e outros durante a história da humanidade, mas leva o leitor a acreditar no mal e na perversidade do ser humano que pode motivar um pai a matar a própria filha, uma das hipóteses aventadas, naquele momento, no caso de Isabella.

Na capa seguinte, a revista confirma a sua suspeita e mostra para os seus leitores que realmente tem um conhecimento que se baseia na análise correta dos fatos, na leitura perspicaz do cenário e na vasta experiência na cobertura dos acontecimentos. Embora, se utilize da fala da polícia para sustentar a sua posiçao, o

faz em uma legenda com fonte pequena. Os que não têm a revista a poucos palmos dos olhos só conseguem ver a manchete “FORAM ELES”, logo abaixo da foto, em close, do pai e da madastra. Na foto, há uma tarja de luz iluminando o rosto dos dois, como se tivessem sidos descobertos pela revista na escuridão. A frase com pouca visibilidade: “Para a polícia, não há mais dúvidas sobre a morte de Isabella”.

Na matéria “Quando o Mal Triunfa”, Veja rememora fatos recentes de crimes contra crianças, acontecidos no Brasil, como o da empresária de Goiânia que torturava cotidianamente uma menina de 12 anos; uma garota que pulou do quarto andar para fugir dos maus tratos do pai; crianças que ganharam bolo envenenado da vizinha; o bebê jogado no lago em Belo Horizonte e, agora, o assassinato de Isabella Nardoni, para dizer que esse lado monstruoso do homem pode até ser contido, mas jamais será definitivamente domado.

Essa sucessão de fatos macabros traz a incômoda lembrança de uma constante da história da humanidade: a maldade. O mal está presente em toda parte. Na grande arena da política internacional pode-se divisá-lo no genocídio de Darfur, na repressão política de Cuba e no Tibete, no terrorismo da Al Qaeda e das Farc, na leniência do governo americano com práticas de tortura. Esse tipo de mal é mais assimilável, pois se esconde atrás de razões de estado e de pretensas causas nobres (2008, p. 89).

Na matéria, Veja usa cautela ao falar na morte de Isabela, afirmando que a menina foi “aparentemente jogada pela janela”, o que já seria brutal, mas o caso é tanto mais chocante porque “o pai da criança aparece como principal suspeito do crime”. Porém toda a construção do texto leva à conclusão da participação do pai e da madastra. A revista questiona como aceitar o mal doméstico, que vem nu, sem disfarces, sem o véu de sofismas que poderiam desculpá-lo e torná-lo suportável pela racionalização da sua origem, como acontece nos fatos de origem política ou religiosa. Como entender que o sorriso de uma criança de 6 anos foi substituído pela máscara da morte? “Esse tipo de mal parece ser uma zona de sombra que aprisiona a alma humana. Esse tipo de mal simplesmente existe. Isso é o que existe de mais assustador”.

Na sequência, busca apoio na história e na filosofia para mostrar que o mal sempre existiu e para torná-lo suportável e evitar a loucura, a razão humana apelou para os desígnios dos deuses e a resignação como forma de tolerá-lo. “Séculos afora

teólogos e filósofos tentaram ensinar a humanidade a conviver com o mal”. A revista, por meio de uma linha do tempo, mostra historicamente como o mal foi tratado na religião, começando pelo zoroastrismo que faz a separação do bem e do mal; da bíblia, com anjos e demônios e os grandes filósofos da Igreja que veem a soberba como a origem do mal.

O enunciador explica que o mal na natureza é lembrado por grandes terremotos, o que provocou pensadores a levantar a possibilidade de o universo, ou Deus, seu criador, ser mau. E por fim, o mal do homem, que é inaugurado com Maquiavel, com uma perspectiva pragmática do bem e do mal, em que o mal pode ser utilizado, sem levar em conta preceitos morais, quando está em jogo o cargo de um dirigente. O relato passa por Kant, Nietzche, chegando ao diagnóstico da filósofa Hannah Arrentd, em que a banalidade do mal do totalitarismo faz com que as políticas perversas sejam decididas com frieza burocrática.

Veja diz que a partir da segunda metade do século XX, a psicologia ganha espaço ao estudar como organizações coletivas, partidos políticos e grupos armados podem induzir pessoas comuns a cometer atos monstruosos. Mais recentemente, as explicações chegaram ao plano da metafísica e se tornaram objeto de estudo além da psicologia, da sociologia e das ciências biológicas.

Devido ao grau de maldade, como no caso da menina de Goiânia, que apresenta marcas de ferro quente na pele e necrose debaixo das unhas, Veja não descarta a possibilidade de psicopatia – da ação daquele sujeito que entende a diferença entre o bem e o mal, mas é desprovido de piedade, empatia, remorso. Esse deve ser tratado como doente e retirado da sociedade ou controlado. “Seria cômodo imaginar que todo o mal vem de uma falha neuroquímica, mas não é assim. A psicopatia, afinal, é um distúrbio raro. Não explica o mal em larga escala”.

Para exemplificar que o mal está arraigado em todo o ser humano e se revela mesmo nas pessoas que parecem normais e extremamente civilizadas, levando-as a atos criminosos, Veja utiliza-se de um experimento realizado na universidade de Stanford, em 1971. Uma falsa prisão foi improvisada em um corredor da universidade nos Estados Unidos e estudantes que se voluntariaram para a pesquisa foram divididos aleatoriamente em carcereiros e prisioneiros. Eram todos jovens e normais, sem tendência notável para a violência, mas as humilhações que os prisioneiros foram submetidos como revistas sem roupas, exercícios forçados, celas solitárias, tornaram-

se tão intensas que o estudo que deveria durar duas semana foi interrompido no sexto dia.

De acordo com o estudo, nem todos os guardas agiram mal, mas os “bonzinhos” nada fizeram para impedir os “malvados”. Os guardas sentiam-se autorizados a agir com brutalidade por terem o aval da universidade e os prisioneiros foram desumanizados. Mesmo sendo amigos e conhecidos anteriormente passaram a ser identificados por um número. Os três elementos – respaldo de uma instituição, ação em grupo e desumanização do outro – estão quase sempre presentes em situações em que prisioneiros de guerra são humilhados e torturados. O enunciador é enfático em defender que essas ações não eximem a responsabilidade individual e como no julgamento de Nuremberg, ninguém pode se esconder atrás de “ordens superiores”. Portanto, a justiça deve ser feita com rigor.

O enunciador afirma que o mal contra crianças pode vir de pessoas perversas, ou psiquicamente perturbadas, ou que sentem prazer em impingir sofrimento alheio; outras podem não participar diretamente dos atos maléficos, mas se calam diante das injustiças. Na verdade, o enunciador não sabe em qual situação se encaixam os assassinos de Isabella, mas sugere as várias hipóteses para enquadrar pai e madastra ou qualquer ser humano que pratique esse tipo de crime.

Em um trecho da reportagem, o enunciador afirma que quando o pai e a mulher foram intimados pela polícia a depor, uma multidão de cerca de 1.000 pessoas pedia o linchamento do casal e atirava ovos contra os carros de polícia em que eles estavam. Com isso, Veja procura demonstrar que a população, assim como o enunciador, já tinha uma opinião formada sobre quem eram os culpados pelo assassinato.

O enunciador conclui a reportagem com uma última matéria “O anjo e o Monstro”; o texto não é conclusivo, pois Veja não aponta diretamente os culpados, mas constrói o enredo de maneira a que o leitor chegue ao final certo que os Nardoni são os assassinos.

As primeiras conclusões da polícia também são detalhadas pelo enunciador, dizendo que havia vestígio de sangue da menina no trajeto do elevador até o apartamento, bem como em vários cômodos. Veja não menciona se o sangue encontrado era compatível com o de Isabella. Utilizando-se do procedimento de delegação de voz, através da fala da polícia, a revista afirma que a menina apresentava sinais de asfixia sofrida antes da queda e que em dado momento Nardoni e Ana Carolina podem ter considerado que a menina já estava morta.

Ao delegar à voz a fala da polícia, o enunciador busca credibilidade, ou seja, luta por produzir efeitos de sentido de veridicção e, ao encher a reportagem de detalhes, a revista quer dirimir qualquer dúvida que impeça o seu objetivo de levar o enunciatário ao seu ponto de vista, que é a condenação do pai e madastra.

Na segunda capa “Foram Eles”, o enunciador de Veja é contundente no seu discurso para qualificar pai e madastra como assassinos e se mostra à vontade em seu papel de justiceiro, pedindo punição exemplar, pois já havia de alguma forma, antecipado o resultado na capa anterior. “Frios e dissimulados” é o título da matéria acompanhada por uma linha fina “Pai e madastra mataram Isabella, numa sequência de agressões que começou ainda no carro, conclui a polícia”. O monstro que matou a menina, que seu pai jurou não descansar enquanto não o colocasse na cadeia, estava diante do espelho, era ele próprio. A mulher, Anna Carolina, que também havia divulgado carta dizendo que a menina era “tudo na vida” dela, havia ajudado a matá-la com as próprias mãos.

A polícia está convencida de que Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá combinaram jogar Isabella pela janela na tentativa de encobrir o que supunham já ser um assassinato. Para os investigadores, Anna Carolina asfixiou Isabella ainda no carro, no trajeto entre a casa dos pais dela e o apartamento da família. A menina ficou inconsciente e o casal achou que estava morta. Na sexta-feira, vinte dias depois da morte de Isabella, Nardoni e Anna Carolina foram indiciados por homicídio doloso e coautoria de homicídio (2008, p. 84 e 85).

O texto segue descrevendo, em detalhes, os momentos que antecederam a morte de Isabella, no dia 29 de março de 2008. De acordo com a matéria, o assassinato teria começado logo depois de a família ter participado de uma festa no salão do prédio dos pais de Anna Carolina, horas depois de terem sido filmados fazendo compras, tranquilamente, em um supermercado. Isabella também aparece, em filme, brincando e correndo feliz no prédio do avô. Testemunhas, no entanto, viram quando Alexandre Nardoni teria se enfurecido e gritado com a filha por algo que ela teria feito e lhe deu um safanão, ela caiu no chão e começou a chorar. “Você vai ver quando chegar em casa”, teria dito o pai.

Em 13 quadros desenhados, a revista simula como a história aconteceu. Ao legendar os desenhos, Veja usa os verbos no afirmativo e não no condicional. Conta ao

leitor de tal forma que o leva a crer que foi testemunha dos fatos. Antes de socorrer a menina, Nardoni e Anna Carolina ligaram para os próprios pais e só depois foram ver Isabella caída no jardim do prédio. Os vizinhos chamaram a polícia que, ao chegar, encontrou a menina ainda viva; ela morreu no caminho do hospital.

Para caracterizá-los como “do mal”, Veja relata o histórico de Nardoni, que nunca trabalhou, sempre foi sustentado pelo pai, ganhou o apartamento onde mora, sempre teve carros e motos durante a faculdade, financiada pelo pai, e era agressivo. Fez direito e nunca passou no teste da OAB, deixou a mãe de Isabella ainda grávida, para ficar com Anna Carolina. Mostrou-se frio durante a interrogação da polícia, não chorou. Por sua vez, a mulher foi descrita como encrenqueira, ciumenta, e por muitas vezes era quem começava as brigas, batendo no marido.

A mãe de Isabella, Ana Carolina Oliveira, em depoimento, disse que a filha nunca havia reclamado de maus tratos, mas havia comentado episódios ocorridos com os meios-irmãos. Em uma discussão com o marido, Anna Carolina havia jogado o filho Cauã de 11 meses sobre a cama, antes de partir para cima de Nardoni furiosa. E em outro, Nardoni teria suspendido no ar o filho de três anos e o soltado no chão como forma de repreendê-lo por ter beliscado Isabella. No final da matéria o enunciador sanciona os dois como culpados e garante que levarão pelo resto da vida mais que a culpa por ter matado Isabella. “Eles são pais de duas crianças, cuja vida estará para sempre marcada pelas cenas a que elas - muito provavelmente - assistiram aterrorizadas”.