• Nenhum resultado encontrado

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

2. TRANSFORMAÇÕES NA PAISAGEM PAULISTANA

2.1. O centro da cidade

Na história da cidade de São Paulo, algumas características despontam como constantes, desde o final século XIX: a renovação urbana, provocando diversas alterações na paisagem; o crescimento físico desorganizado, resultando na expansão territorial; a segregação socioespacial, estabelecendo no território os espaços a serem ocupados pelos diversos grupos econômicos; e a especulação imobiliária, determinando os locais de valorização e os vetores de crescimento desta mesma cidade.

Debatidos por especialistas de diversas áreas do conhecimento, esses processos têm ocorrido em partes diferentes da cidade, confrontando vários interesses, porém sempre evidenciando a recorrência de um processo que, ao mesmo tempo, é parte do passado da cidade, mas também de seu presente, determinando assim “[…] um eterno construir e

desconstruir” (YÁZIGI, 2006, p. 204).

Apresentaremos, de forma breve, como esses elementos se articularam ao longo da história da cidade e, posteriormente, caracterizaremos seus impactos na atualidade, especialmente em um perímetro da região central da cidade, onde se localizam os bairros Brás e Belém.

Entre 1862 e 1934, a cidade de São Paulo apresentou um crescimento populacional anual de 6,77%8, o que provocou sua expansão em várias direções, gerando a abertura de novos bairros, o loteamento das antigas chácaras e a necessidade de estruturar os serviços e equipamentos urbanos.

Ao receber milhares de novos moradores, a cidade passou a exigir transportes rápidos, pois as distâncias passaram a ser medidas em quilômetros, os chafarizes deixaram de dar conta do consumo, aumentou o risco de contaminação da água e o esgoto sem destino certo tornou-se o principal inimigo da saúde pública. (BONDUKI, 2004, p. 18).

Entre os fatores que fomentaram esse incremento populacional e culminaram com o processo de urbanização vivenciado a partir de 1870, destacaram-se a imigração para

8 SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 109.

a lavoura cafeeira em substituição à mão de obra escrava; a própria localização da cidade (ponto de ligação entre o interior do Estado e o Porto de Santos); a ferrovia e a industrialização. Conforme apontou Frehse (2005), esses elementos tornaram-se uma tendência interpretativa do desenvolvimento urbano paulista por meio das análises produzidas por Caio Prado Júnior, Eurípedes Simões de Paula, Richard Morse e Pierre Mobeing.

Aqueles que para cá vieram foram atraídos “por essa fabulosa acumulação de

recursos, de oportunidades na indústria e no comércio ou vislumbrando a possibilidade de enriquecimento” (SEVCENKO, 2005, p. 109). A cidade anunciava a sua grandiosidade e se consolidava no cenário nacional9.

Nesse contexto era necessária a implantação de um projeto urbano representativo da pujança econômica da cidade, que distinguisse o assentamento colonial,

“capitania de sertanistas e tropeiros” (MARINS, 2001, p. 172), da urbe dos cafeicultores e

empresários paulistas. A cidade precisava se modernizar e o modelo urbano desse desenvolvimento viria da experiência europeia, notadamente francesa e inglesa, e da norte- americana10.

A partir da gestão do prefeito Antônio Prado (1899-1910), os espaços localizados dentro do Triângulo Central11 foram remodelados:

[…] as reformas visaram melhorar a circulação pública, por meio do alargamento, retificação e descongestionamento das ruas; construção de grandes edifícios para abrigar os órgãos oficiais e destinação de espaços públicos ao lazer da população […] (OLIVEIRA, R., 2008, p. 108).

A construção de um projeto de Centro foi definida pelas elites locais com o apoio da municipalidade (GROSTEIN, 1994 apud FRÚGOLI Jr., 2000, p. 51), sendo necessário para isso implantar um modelo estético-arquitetônico que, ao mesmo tempo, distinguisse e reafirmasse a centralidade dessa parte da cidade. Priorizou-se, acima de tudo,

9 Segundo SILVA L. (2004), a cidade concentrava, em 1907, 15,9% do valor bruto da produção industrial, valor que aumentou para 31,5% em 1919 e 45,4% em 1939. Corroboram com esses dados, os estudos anteriores realizados por PETRONE (1955) e DEAN (1971).

10 SILVA J. (1994/1995); SEVCENKO (2003).

11 O Triângulo Central engloba as Ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro. Até a década de 1970 era o centro financeiro, comercial e de negócios da capital, posteriormente, essas funções foram transferidas para outras partes da cidade, gerando novas centralidades, sobretudo, no setor de serviços.

a criação de uma área central com espaços e edificações de prestígio, capaz de desempenhar suas funções de dominação local e regional.

Dessa forma, a colina histórica, onde se misturavam diferentes estratos sociais e uma variedade de usos do solo, foi transformada em núcleo central com função terciária e perfil elitizado, comandando um território urbano em expansão (CAMPOS, 2004).

O processo civilizador imposto à área central da cidade continuaria com as ações desenvolvidas nas gestões municipais seguintes. Coube à gestão de Raimundo Duprat (1911-1914) a criação do parque do Vale do Anhangabaú12 e do bulevar parisiense paulistano, a Avenida São João (CAMPOS, 2004).

Era preciso passar do quadro urbano herdado dos períodos colonial e imperial à configuração de uma capital que centralizasse regionalmente um sistema de trocas ancorado na dominação dos grandes centros do Hemisfério Norte. A forma urbana, além de abrigar as atividades envolvidas nessa intermediação, deveria simbolizar a representatividade desse núcleo em relação aos fulcros centrais do sistema. (CAMPOS, 2004, p. 79)

A partir de 1920, as intervenções urbanas buscaram assegurar a boa funcionalidade viária na região central (FREIRE, 1927 apud MEYER; GROSTEIN, 2011), uma vez que as suas ruas principais passaram a ficar constantemente congestionadas à medida que o automóvel se transformou em um importante protagonista urbano:

[…] Dos anos 1920 até os anos 1940 materializou-se a transformação de uma cidade cujo transporte público funcionava sobre trilhos em uma cidade onde o transporte sobre pneus se tornou hegemônico […] (SILVA L., 2004, p. 102). Durante a primeira gestão de Prestes Maia (1938-1945) iniciou-se parte da execução do Plano de Avenidas13 que, segundo Toledo (1996), buscava dar maior funcionalidade e embelezamento à cidade por meio da reformulação do sistema viário, mas que ajudou também a consolidar a expansão periférica da cidade:

A maciça intervenção do poder público no espaço urbano caminhava paralelamente à crescente separação entre local de trabalho e moradia, levando à crescente periferização da Cidade e, em contrapartida, à rápida verticalização do

12 Ao redor do qual criou uma série de edifícios como o Teatro Municipal, os palacetes e a residência Prates (atual sede da Prefeitura), o Clube Comercial, o Hotel Esplanada e a sede da Light (CAMPOS, 2004). 13

centro, que ia se especializando como zona terciária, com o aumento dos bancos e escritórios. (PAOLI; DUARTE, 2004, p. 69)

Para Frúgoli Jr. (2000, p. 53), “dos anos 30 em diante, a cidade e o Centro

passaram a sofrer novas modificações rumo à ‘metropolização’” e já na década de 1950,

esse espaço apresentava sinais que atingira seu ponto de saturação14. Em outras partes da cidade, o que se processou foi o crescimento acelerado sem o menor controle do poder público, que deixou para a iniciativa privada, o estabelecimento das regras do crescimento urbano:

O crescimento físico da área urbana não foi acompanhado pelos poderes públicos, quer municipal, quer estadual, ocorrendo pela necessidade dos moradores da cidade e pela ação dos especuladores imobiliários, que ocuparam e lotearam as regiões do entorno da cidade, em um processo que continua até nossos dias. (GLEZER, 1994/1995, p. 20).

Nesse cenário foi notório, por exemplo, o papel de empresas como a The São Paulo Tramway Light and Power Co., que exercia o monopólio do fornecimento de vários serviços como gás, energia, transportes, telefonia e abastecimento de água15 e que foi segundo Sevcenko (2003, p. 122):

O mais danoso agente especulador, que comprometeu definitivamente o futuro da cidade, forçando seu desenvolvimento em bolsões desconexos, espaços discriminados, fluxos saturados e um pavoroso cemitério esparramado de postos e feixes de fios pendurados como varais por toda a área urbana […]

O desenvolvimento de relações, nem sempre claras, entre os negócios imobiliários e os favores prestados pelas empresas privadas na cidade, teve como consequência a valorização do solo urbano, o que criou, paulatinamente, várias cidades dentro da cidade. Assim, a cidade legal, constituída pelo centro e os bairros da elite se opôs à cidade ilegal, formada pelos bairros operários e periféricos:

O resultado dessa prática sistemática era o surgimento de bairros inteiros completamente desconectados entre si, com uma heterogeneidade de arruamentos desencontrados, escassez drástica de praças, espaços públicos e amenidades. Essa anarquia especulativa era o oposto mesmo de qualquer ideia de planejamento ou princípio de urbanismo (SEVCENKO, 2003, p. 124).

14 De acordo com pesquisa iniciada em 1956 pela Sociedade para Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicada aos Complexos Sociais (SAGMACS), durante a gestão de Vladimir de Toledo Piza (1956-1957). 15

A cidade legal foi redesenhada seguindo os padrões de civilidade europeia, sob os auspícios ingleses e canadenses, com consultoria francesa do arquiteto Joseph Antoine Bouvard e pressão da especulação imobiliária, produzindo os bairros específicos da elite paulistana. A cidade ‘ilegal’, ao contrário, foi formada ao longo das várzeas dos rios Tietê e Tamanduateí e da linha férrea, misturando na paisagem fileiras de casas e indústrias, ressalte-se que ali, não havia proibições de usos do solo. Esse local congregando clandestinidade e ilegalidade se tornou, por excelência, lugar da moradia operária16.

A cada uma dessas “cidades” correspondia um espaço específico e um tempo determinado. De um lado, a cidade legal, onde tempos e espaços não se misturavam: o espaço do trabalho estava separado do tempo da casa, o tempo do lazer era distinto do espaço da rua. De outro lado, estavam os bairros populares onde trabalho, moradia e lazer estavam sobrepostos no tempo e no espaço. (PAOLI; DUARTE, 2004, p. 56).

Invisível à sociedade da época, esse território assim permaneceria caso os que ali habitavam não fossem considerados responsáveis pelos perigos sanitários que assolaram a cidade (BONDUKI, 2004), transformando-se em uma ameaça aos residentes da cidade legal. Nessa perspectiva, a criação de diversas medidas sanitárias teve por finalidade controlar o território habitado pelos pobres, as quais, por sua proximidade física, poderiam se tornar um foco de mobilização social:

Em outras palavras, tentava-se abolir a política vinda dos vários lados da diversidade da Cidade – sobretudo dos bairros de trabalhadores, cujas demandas sobre as condições de trabalho rebatiam sobre as de moradia e seu entorno, embora fossem pensadas como coisas separadas (PAOLI; DUARTE, 2004, p. 63).

Essa cidade invisível tornou-se alvo de ações sanitaristas e moralistas que buscaram tanto manter os indivíduos dos bairros populares distantes dos espaços ocupado pela elite, como disciplinar os usos possíveis dentro dos bairros operários e, dessa forma, uma questão de saúde pública se transformou em caso de polícia.

O desenvolvimento de formas de controle, cujos mecanismos foram sendo codificados e ministrados pela medicina urbana enquanto técnica geral de saúde, foi se afirmando e assumindo importante papel nas estruturas de poder administrativo […] A medicina se nomeava um “administrador do espaço coletivo”, diagnosticava o espaço urbano como um meio perigoso, e prescrevia

16

ações saneadoras (em múltiplos sentidos) investidas de autoridade policial, para integrar a grande massa populacional que assolava São Paulo no alvorecer da metrópole segundo uma ordem de fundamento “científico” (SEGAWA, 2004, p. 348).

Territórios desconexos, conforme conceituou Sevcenko (2003), a cidade cresceu para além do perímetro central. De um lado, os bairros exclusivos da elite como Campos Elíseos, Higienópolis e Cerqueira César, de outro, somente para ficarmos na vertente leste da cidade, os bairros operários como Brás, Belenzinho, Mooca e Pari.

Quando essas duas cidades porventura se encontravam, ficava evidente, para o conjunto da sociedade, suas próprias fendas e fissuras, e as dificuldades da coesão e da unidade sociais mostravam, sobretudo, as impossibilidades de comunicação (PAOLI; DUARTE, 2004, p. 71)

Portanto, desde o momento em que a cidade de São Paulo se expandiu, a segregação socioespacial configurou-se como elemento constitutivo de sua estrutura urbana e, ainda hoje, é um elemento presente que continuou determinando o lugar de cada estrato social no espaço físico da cidade.