• Nenhum resultado encontrado

O chão da prisão e a realidade de filhos/filhas de mulheres presas

2. MATERNIDADE NA PRISÃO E A CRIANÇA

2.2 O chão da prisão e a realidade de filhos/filhas de mulheres presas

Ainda com base no levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, em junho de 2016 a população carcerária feminina era de 42.355 (quarenta e duas mil, trezentas e cinquenta e cinco) mulheres, 13% a mais do que o levantamento anterior e apresenta um déficit de 15.326 (quinze mil, trezentos e vinte e seis) vagas.

A taxa de ocupação no sistema prisional brasileiro, em relação às mulheres, é de 156,7%, conforme registrado em Junho de 2016, o que significa dizer que em um espaço destinado a 10 (dez) mulheres, encontram-se custodiadas 16 (dezesseis). Além disso, quase metade, 19.223 (dezenove mil, duzentas e vinte e três), está encarcerada sem sequer ter sido condenada.

O documento encontra, no entanto, dificuldade em precisar números sobre o encarceramento de mães no Brasil. Um trecho do relatório salienta que: ―a disponibilidade de informação sobre o número de filhos, no entanto, permanece baixa em todo o país e foi possível analisar dados referentes a apenas 7% da população prisional feminina em Junho de 2016, o que corresponde a uma amostra de 2.689 (duas mil, seiscentos e oitenta e nove) mulheres sobre as quais se tem informações. Nos estados do Rio de Janeiro, de Sergipe e no Distrito Federal, não

existiam quaisquer informações acerca da quantidade de filhos entre as pessoas privadas de liberdade, homens ou mulheres‖ (INFOPEN, 2016).

Neste sentido, segundo o próprio documento, é impossível extrair conclusões acerca da totalidade da população prisional no sistema carcerário feminino. Dos dados colhidos, ainda no ano de 2016, registrou-se que 74% das mulheres privadas de liberdade têm filhos e que 55% das mulheres encarceradas têm de um a três filhos e, ainda, que existem 1.111 (um mil cento e onze) crianças encarceradas com suas mães.

O Conselho Nacional de Justiça - CNJ, por sua vez, disponibilizou em abril de 2018, acesso público aos dados do cadastro de grávidas e lactantes presas por Unidade da Federação. O sistema informa que, em março de 2018, havia 514 (quinhentas e quatorze) presas gestantes ou amamentando em unidades penitenciárias do País: 308 (trezentas e oito) mulheres estão grávidas e 206 (duzentas e seis) são lactantes.

Durante a colheita de dados, a Juíza Auxiliar da Presidência do CNJ, Andremara dos Santos, esteve em visitas a várias unidades prisionais em diversos Estados brasileiros, constatando que: ―Ficou clara a necessidade de estabelecermos padrões de procedimentos em relação aos cuidados com grávidas, lactantes e seus filhos a serem adotados no sistema prisional‖ (CNJ, 2018).

A juíza do CNJ adverte, ainda, que boa parte das crianças que vivem no interior do cárcere com suas mães não são acompanhadas pela Justiça da Infância e Juventude, e que muitas mães ―chegam a esconder que possuem outros filhos, por medo de que a situação precária em que vivem as crianças legitime a entrega delas para a adoção‖.

A separação dos filhos é um martírio à parte. Privado da liberdade resta ao homem o consolo de que a mãe de seus filhos cuidará deles. Poderão lhes faltar recursos materiais, mas não serão abandonados. A mulher, ao contrário, sabe que é insubstituível e que a perda do convívio com as crianças, ainda que temporária, será irreparável, por que se ressentirão da ausência de cuidados maternos, serão maltratadas por familiares e estranhos, poderão

enveredar pelo caminho das drogas e do crime, e ela não os verá crescer, a dor mais pungente (VARELA, 2017, p. 45).

Tradicionalmente, à mulher é dado o papel da maternidade, papel este que exige desempenhos e atividades que parecem não compatibilizar com a vida no crime. ―O entrelaçamento dos universos da prisão e da maternidade produz um exercício da maternidade no registro do sacrifício e da disciplina, atendendo ao projeto mais amplo de domesticar o desvio e o desejo feminino, criminal e sexual‖. Segundo a autora, ―A casa e a cria são trazidas para dentro do cárcere, vigiadas, ensinadas, disciplinadas a partir de parâmetros restritos de normalidade de gênero e família‖ (BRAGA, 2015, p. 6).

Ser taxada como criminosa põe fim a qualquer possibilidade de uma presa ser vista como boa mãe. Na prisão, a mulher perde seu papel de mãe, de esposa, de filha e de mulher, deixando evidente a quebra dos vínculos familiares. O julgamento moral, sob a ótica machista, é potencializado no ambiente prisional.

É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos que lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam (QUEIROZ, 2015, p. 19).

Quando se investiga a introdução da mulher no sistema penal, imagina-se, inicialmente, que há a consideração através de uma perspectiva de gênero, tendo em vista que as diferenças sociais e biológicas existentes entre homens e mulheres as ponha em condições de vulnerabilidade próprias do gênero feminino, ao lado do estigma de ser inferior, que recai sobre os presos de maneira geral. Porém, o que se vislumbra, realmente, é a lamentável constatação de que as mulheres são desconsideradas no ambiente prisional, considerando que este foi construído para atender a criminalidade masculina.

Tratando todos os presos da mesma forma, como se todos fossem homens, acaba não se considerando "os bebês nascidos no chão das cadeias" (QUEIROZ, 2017, p. 19) e as demais situações envolvendo a maternidade, o cuidado com a gestação, com o parto, com a amamentação e com a criação dos filhos nos

primeiros dias de vida. ―Até nisso é diferente a gente presa do que a gente solta. Solta, você pega seu filho, vê. E eu nem consegui olhar os dedos da mão e do pé, pra ver se não tava faltando nenhum‖ (QUEIROZ, 2015, p. 73).

Presas relatam ser comum, depois de uma rápida inspecionada no filho que acabara de nascer, serem novamente algemada na cama. No livro ―Presos que menstruam‖ (2015, p. 73), a escritora Nana Queiroz narra o relato da ativista americana Heidi Cerneka, ―tem mulher que até dá à luz algemada na cama. Como se pudesse levantar parindo e sair correndo. Só homem pode pensar isso. Porque mesmo que ela pudesse levantar, qualquer policial com uma perna só andaria mais rápido que ela‖.

É importante destacar que o uso de algemas, nessas circunstâncias, por si só é um abuso ao direito da dignidade da pessoa presa, uma vez que sua utilização é absolutamente desnecessária, considerando que a presa gestante ou em trabalho de parto não representaria qualquer ameaça à segurança.

O médico Dráuzio Varela, no livro Prisioneiras, fala sobre o mesmo tema usando de sua experiência de onze anos de trabalho voluntário ―atendendo a realidade da penitenciária feminina da cidade de São Paulo, situada onde um dia foi a prisão chamada de Carandiru‖ (VARELLA, 2017). Suas percepções vão na mesma linha apresentada acima, e identificam o tratamento igual dispensado a homens e mulheres. Ele mostra que enquanto o atendimento das prisões igualam homens e mulheres, até as reclamações de saúde são diferente entre os presos e as presas:

Em vez de feridas mal cicatrizadas, sarna, furúnculos, tuberculose, micoses e as infecções respiratórias dos homens, elas se queixavam de cefaleia, dores na coluna, depressão, crises de pânico, afecções ginecológicas, acne, obesidade, irregularidades menstruais, hipertensão arterial, diabetes, suspeita de gravidez (VARELLA, 2017, p.13.).

As desigualdades vislumbradas, entre homens e mulheres, na sociedade e nas relações de trabalho se repetem no ambiente criminal, portanto. De acordo com delineamento feito pelo já citado Levantamento, são jovens de baixa renda, que têm filhos que dependem econômica e funcionalmente delas, e a sua

vinculação penal se deu por envolvimento com o tráfico de drogas em conduta não relacionada à gerência do tráfico de entorpecentes ou a organização criminosa.

No momento da prisão, estão sujeitas a todo tipo violência e não são raros os relatos de abuso sexual e de discriminação em relação ao gênero. Na prisão, quando existem, desenvolvem atividades ocupacionais voltadas para os trabalhos manuais, como o artesanato e a costura, reproduzindo e reforçando nas prisioneiras que seu mundo se reduz à vida doméstica. Não há espaço para que pratiquem algum esporte, que serviria para o seu desenvolvimento físico, para estimular a competição e a capacidade de adquirir um grau mais elevado de autoestima e valorização no grupo pertencente. Não se vislumbra uma efetiva preocupação para que as mulheres se preparem para uma futura disputa no mercado de trabalho ao deixar o cárcere. Fora da prisão continuará restrita ao mundo doméstico e a subempregos que lhe permitam continuar a cuidar sozinha da casa e dos filhos (WERMUTH; NIELSSON, 2018).

Diante disso, sem oportunizar às mulheres novos modos de vida, resta-lhes o mesmo papel inferior de cuidar da casa e empacotar as drogas ou servir de mula no transporte das mesmas, voltando-se a repetir a conduta que as levou a serem presas. Presas, essas mulheres têm o convívio com seus filhos interrompido e estes acabam com a guarda dada a familiares ou instituições custodiadas pelo Estado. Se a maternidade ocorre durante o cárcere, algumas mães permanecem com seu filho durante o período de amamentação, sendo ambos submetidos ao precário ambiente prisional.

As que chegam grávidas ou engravidam nas visitas íntimas saem da cadeia apenas para dar à luz. Voltam da maternidade com o bebê, que será amamentado e cuidado por seis meses nas celas de uma ala especial. Cumprido esse prazo, a criança é levada por um familiar que se responsabilize ou por uma assistente social que o deixará sob a guarda do Conselho Tutelar. A retirada do bebê do colo da mãe ainda com leite nos seios é uma experiência especialmente dolorosa (VARELLA, 2017, p. 46).

Grande número dessas mulheres é abandonado pelos companheiros, o que não ocorre de maneira tão significativa quando o homem é o preso. É o caso, por exemplo, de Telma, ―presa com o seu filho nos braços. Após permanecerem juntos

em uma cela por algumas horas, ela foi levada para uma Penitenciária e o filho para um abrigo. Os dois nunca mais se encontraram (VALENTE, CERNEKA E BALERA, 2011).

Detentos, comumente, são tidos como seres com humanidade reduzida, como a sobra de uma sociedade comprometida com os direitos humanos. De acordo com Foucault, ―o presídio é o local de negação de todo o direito real‖. Nessa ótica, detentos do sistema carcerário brasileiro são vistos como inimigos da sociedade, e, desta forma, a segregação imposta a eles é naturalizada. O presídio, longe do intento de humanizar, desde a sua concepção e tido como um mecanismo de controle.

Em meio a esse contexto social, ―a dificuldade está em não estender a pena da mãe à criança – uma medida difícil de atingir. O último levantamento do Ministério da Justiça mostrava que 166 (cento e sessenta e seis) crianças viviam no sistema prisional do país. Destas, só 62 (sessenta e duas) estava em locais dignos‖, relata Queiroz (2016, p. 117). As demais moravam em presídios mistos, com pouca ou nenhuma adaptação para recebê-las. Cadeias de homens e mulheres ainda predominam fora das capitais, e, ―quando nascem em locais assim, as crianças vivem em celas superlotadas, úmidas e malcheirosas, chegando até mesmo a dormir no chão com as mães. Apiedadas pelos filhos, muitas presas preferem devolvê-los à família ou entregar para adoção a vê-los vivendo em tais condições‖ (QUEIROZ, 2016, p. 117).

Além disso, conforme observam os autores (2011), a falta de políticas públicas que considerem a prisão sob a perspectiva de gênero acaba por gerar uma verdadeira ―sobrepena‖ para as mulheres. Constata-se uma ―inadequação estrutural do sistema prisional às necessidades femininas‖, pois, em regra, as prisões femininas seriam adaptações das masculinas, o que torna os impactos da prisão ainda mais severos, implicando uma sistemática violação dos direitos humanos.

2.3 Filhos/filhas de mulheres encarceradas e as repercussões do cárcere:

Documentos relacionados