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Quando o lar e a prisão: a repercussão do cárcere na garantia dos direitos humanos dos filhos de mulheres presas

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

MARIÉLE ZULEICA FIGUR

QUANDO O LAR É A PRISÃO: A REPERCUSSÃO DO CÁRCERE NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DOS FILHOS DE MULHERES PRESAS

Ijuí (RS) 2018

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MARIÉLE ZULEICA FIGUR

QUANDO O LAR E A PRISÃO: A REPERCUSSÃO DO CÁRCERE NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DOS FILHOS DE MULHERES PRESAS

Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Conclusão de Curso - TCC. UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS - Departamento de Estudos Jurídicos.

Orientadora: Dra. Joice Graciele Nielsson

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À minha família, por todo o incentivo, amor e carinho.

À Violeta, por trazer à tona a criança que sempre habita em nós e pela felicidade de todos os dias.

À minha avó Elli e nona Nena, por todo o afeto e o mais doce colo.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, professora doutora Joice Nielsson, pelo apoio essencial, pela paciência e por todo o conhecimento dispensado e proporcionado ao longo deste trabalho, meu muito obrigada!

Ao professor doutor Maiquel Wermuth, por toda dedicação e disponibilidade, me guiando com seu saber.

À minha mãe, que acreditando e ajudando devotamente, foi meu suporte durante toda a graduação.

Aos meus irmãos e cunhadas, que direta ou indiretamente contribuíram para que esse trabalho se realizasse, amo vocês.

Aos tios Ilo e Shirlei, que me conferiram apoio, incentivo e carinho.

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“A cura pra tudo é sempre água salgada: o suor, as lágrimas ou o mar.‖ Isak

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RESUMO

Partindo do estudo da realidade do sistema carcerário brasileiro, o presente trabalho tem o propósito de analisar as condições e o impacto da gravidez, puerpério e maternidade de mulheres cumpridoras de pena privativa de liberdade sobre os direitos humanos dos filhos e filhas. Considerando as normas que determinam pela permanência destas crianças em presídios, na companhia de suas genitoras, o trabalho visa abordar as consequências que esta estadia provoca nos infantes, que acabam por compartilhar com suas mães das mazelas próprias da privação de liberdade. Para tanto, o trabalho divide-se em duas etapas. Inicialmente investiga a situação atual, e as condições gerais do sistema prisional brasileiro, e a situação de extrema violação de direitos de todos que lá permanecem, situação que se agrava ainda mais se tratando de mulheres encarceradas. Em um segundo momento, investiga as condições em que se dão a maternidade, a gravidez e o puerpério de mulheres presas, tanto do ponto de vista legislativo e jurisprudencial, quanto a partir da realidade. Finaliza considerando que o sistema prisional é um ambiente extremamente prejudicial às crianças, comprometendo significativamente seu desenvolvimento. Também indica o quanto é prejudicial a separação dos filhos de suas mães, indicando, por fim, que a melhor alternativa seria o exercício da maternidade em liberdade. O trabalho foi desenvolvido com a metodologia de pesquisa do tipo exploratória, usando para tanto a coleta de dados em fontes disponíveis em meios físicos e na rede mundial de computadores.

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ABSTRACT

Based on the study of the reality of the Brazilian prison system, the present work has the purpose of analyzing the conditions and the impact of pregnancy, puerperium and maternity of women serving prison sentences on the human rights of their sons and daughters. Considering the norms that determine the permanence of these children in prisons, in the company of their parents, the work aims to address the consequences of this stay in the infants, who end up sharing with their mothers the problems of deprivation of liberty. For this, the work is divided into two stages. Initially it investigates the current situation, and the general conditions of the Brazilian prison system, and the situation of extreme violation of the rights of all who remain there, a situation that is further aggravated when it comes to imprisoned women. In a second moment, it investigates the conditions in which maternity, pregnancy and the puerperium of women prisoners are given, both from the legislative and jurisprudential point of view, and from the reality. It concludes that the prison system is an extremely harmful environment for children, significantly compromising their development. It also indicates how harmful the separation of the children from their mothers is, and finally suggests that the best alternative would be the exercise of motherhood in freedom. The work was developed with the research methodology of the exploratory type, using for this the collection of data in available sources in physical media and in the world wide computer network.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...9

1. O SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS...10

1.1 O Sistema carcerário brasileiro: delimitando o cenário...12

1.2 O estado de coisas inconstitucional ...15

1.3 As mulheres e o sistema prisional...19

2. MATERNIDADE NA PRISÃO E A CRIANÇA ENCARCERADA...25

2.1 Gravidez, maternidade e puerpério na prisão sob o ponto de vista legislativo...24

2.2 O chão da prisão e a realidade de filhos/filhas de mulheres presas...29

2.3 Filhos/filhas de mulheres encarceradas e as repercussões do cárcere: violando direitos humanos...35

CONCLUSÃO...40

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INTRODUÇÃO

A falência do sistema carcerário brasileiro é notória e de conhecimento público. A escalada vertiginosa do número de encarcerados e o déficit de vagas, unidos à política de encarceramento em massa, consequência da desigualdade social no Brasil, faz com que se verifique no país hoje, o ápice de uma crise que é antiga.

O jus puniendi confere ao Estado o direito de punir o indivíduo infrator, impondo-lhe a pena conforme a previsão das normas dispostas na Constituição Federal, Carta Magna da República brasileira. Dessa forma, a pena deve buscar o objetivo da punição, respeitando, contudo, os valores fundamentais e básicos de proteção da integridade física e psíquica do indivíduo em situação de privação de liberdade.

Diversa social e culturalmente, a décadas a população pobre vem sendo estigmatizada e inferiorizada pelo poder público, gerando com isso o seu aprisionamento em massa. Não é sem razão que somos a terceira maior população carcerária no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia, conforme dados do Ministério da Justiça.

A partir do desenvolvimento dessa política criminal infértil, as violações dos direitos humanos dentro dos presídios brasileiros é uma realidade que deve ser observada, para que se avalie as consequências que estas denotam para o Estado Democrático de Direito e para a profunda vulnerabilidade que recai para o apenado, que, distante de uma vida digna, convive com o sofrimento do esquecimento e da invisibilidade.

Partindo dessa inquietação, o primeiro capítulo deste trabalho abordará o cárcere de maneira mais ampla, delimitando seu cenário e tratando da mulher prisioneira e de todo o estigma e consequências dele em suas vidas dentro e fora da prisão, buscando demonstrar o quanto a estadia em um ambiente prisional é adversa à vida humana, especialmente no que se refere à manutenção ou mesmo

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ao estabelecimento de vínculos afetivos e sociais, quando a detida é a única responsável pelo lar, a mãe.

A violação de direitos inerentes ao ser humano adquirem dimensões gigantescas quando são analisadas sob a ótica do gênero feminino.

Já no segundo capítulo, chamaremos a atenção para o exercício da maternidade, uma das situações mais caras para a mulher detenta e as consequências desta nos seus filhos, consigo aprisionados, bem como sobre os direitos das crianças e das mulheres nos períodos gestacionais e de amamentação, destacando a especial atenção que a eles deve ser outorgada pelo Estado e pela sociedade.

A metodologia para a realização do trabalho, quanto aos objetivos gerais, será a de pesquisa do tipo exploratória. Utiliza-se no seu delineamento a coleta de dados em fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos e na rede mundial de computadores.

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1 O SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

Já é de conhecimento público a falência do sistema carcerário pátrio e o fato de que as penitenciárias acabam tornando-se o destino de muitos indivíduos marginalizados em todas as sociedades modernas. Esta marginalização é, geralmente, consequência do desemprego, da fome, da falta de moradia, de saúde precária, bem como de limitado acesso a todo tipo de benefícios sociais. Neste contexto é que surgem muitos dos infratores que são os alvos preferenciais do sistema prisional: tendo poucas oportunidades de inserir-se na sociedade, muitos indivíduos aventuram-se no mundo do crime para buscar, ilicitamente, aquilo que por direito lhes foi negado.

No Brasil o sistema prisional não cumpre com seus objetivos reais, tendo em vista que estes deveriam tratar de sancionar as condutas delituosas do preso, bem como de reeducá-lo para, posteriormente, reinseri-lo na sociedade. Verdade é que como consequência direta dessa não realização temos os elevados índices de reincidência criminal nos estados brasileiros, bem como o desafio por parte ex-detentos e ex-detentas de se reintegrarem ao mercado de trabalho e ao ambiente social, visto a visão estigmatizada que a maioria da sociedade ainda tem acerca de ex-presidiários e ex-presidiárias.

A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem e se agravam as grandes contradições que existem no sistema social exterior [...] A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função social ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação (MIRABETE, 2002, p. 145).

Por conseguinte, considerando que os detentos estão inseridos em um sistema precário que viola de toda forma sua integridade física e psíquica, uma vez que a superlotação é uma realidade nas unidades prisionais e impede que necessidades vitais humanas, como o sono, a higiene e a alimentação sejam

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realizadas adequadamente, além da violência dentro do sistema que por si só já constitui um ambiente totalmente hostil e que é agravado por esta absurda concentração de detentos em um mesmo espaço, é importante destacar que não há separação de presos em razão da natureza do crime cometido, apresar de estabelecido como norma na Constituição Federal de 1988.

Dentre toda a precariedade do sistema carcerário no Brasil, há que se enfatizar o fato de as mulheres não terem um tratamento diferenciado daquele dispensado aos homens.

O sistema carcerário foi feito por homens e para homens. As mulheres são simplesmente tratadas como homens que menstruam. Ou seja, o sistema trata como se a única diferença em relação aos presos fosse a menstruação. (PASTORAL CARCERÁRIA, 2016).

A superlotação dos presídios tem sido apontada como uma das principais causas de violação de diversos direitos humanos consagrados em vários instrumentos internacionais, muitos deles dos quais o Brasil é parte, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948; as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, de 1955; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966; a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, de 1969, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica; e a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984. A própria Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, também é violada em diversos de seus dispositivos.

Diante deste contexto inicial, este parágrafo analisará a situação do sistema carcerário brasileiro, considerando o mesmo como uma fonte constante de violação de direitos humanos, seja de homens, e especialmente de mulheres que ali permanecem.

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1.1 O Sistema Carcerário Brasileiro: delimitando o cenário

Os problemas hoje encontrados no sistema prisional são inúmeros e dizem respeito tanto à esfera estrutural, administrativa quanto à jurisdicional e são resultantes da falta de compromisso destes órgãos e do próprio Estado, já que demonstram desinteresse em efetivar o que está disposto em lei e superar os problemas do cárcere.

A Lei de Execuções Penais (Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984), por exemplo, não pretende somente proteger o direito dos presos, mas também a integridade do ser, tendo como meta principal a sua reinserção na sociedade combatendo a criminalidade.

Se de um lado a função das unidades prisionais é recuperar o delinquente e mantê-lo excluso da sociedade até que ele esteja pronto para o convívio social, na prática, mesmo as garantias mais básicas como alimentação, assistência médica, integridade física e moral são violadas, arruinando qualquer expectativa de ressocialização desses indivíduos.

De acordo com o relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, do Ministério da Justiça, referentes aos anos de 2015 (dezembro) e 2016 (até junho), divulgados em dezembro de 2017, fica claro que continua em disparada no Brasil o número de pessoas presas, a taxa de encarceramento por habitante e o déficit de vagas no sistema prisional (INFOPEN, 2016).

O Brasil contava, em junho de 2016, com 726.712 (setecentos e vinte e seis mil, setecentos e doze) pessoas privadas de liberdade, o que significa quase o dobro do número de vagas disponíveis no sistema, que é de 368.049 (trezentos e sessenta e oito mil e quarenta e nove) vagas.

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Figura 1. Pessoas privadas de liberdade no Brasil em junho de 2016.

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho/2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública, Junho/2016; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Dezembro/2015; IBGE, 2016.

Se comparado com os dados registrados no início da década de 1990, verifica-se um aumento na ordem de 707%. Foi a primeira vez na história que houve a superação da marca de 700 (setecentas) mil pessoas em condição de privação de liberdade no país, o que nos tornou o terceiro país no mundo com maior número de pessoas presas. Só temos menos presos que os Estados Unidos (2.145.100 presos) e a China (1.649.804 presos). O quarto país com maior número de detentos é a Rússia (646.085 presos) (INFOPEN, 2016).

Figura 2. População carcerária no Brasil em junho de 2016.

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De acordo com o mesmo estudo, o perfil do preso no nosso sistema penal é bem definido: jovens negros de baixa escolaridade, acusados de tráfico e crimes patrimoniais. Os dados revelam que 55% dos presos têm entre 18 e 29 anos, fração que se eleva a 74% se considerarmos os que possuem até 34 anos, 64% são negros, 75% não concluiu o Ensino Médio e 55% foi preso por crimes ligados ao tráfico de drogas, roubos e furtos.

Do total, 45.989 (quarenta e cinco mil, novecentas e oitenta e nove) é composto por mulheres. Desse contingente feminino, 62% das prisões estão relacionadas ao tráfico de drogas – quando levados em consideração somente os homens presos, essa taxa é de 26%. (INFOPEN, 2016).

Nesse sentido, asseveram Wermuth e Nielsson (2017, p. 51), permite-se a afirmação de que ―a vulnerabilidade social é fator determinante para o lançamento de certos indivíduos no sistema carcerário, uma vez que esta condição social os transforma em seres considerados ‗perigosos‘‖. A partir dessa seleção, que se revela pelo perfil da população carcerária nacional, ―compreende-se que a prisão, antes de uma instituição disciplinar, transforma-se em uma espécie de ‗depósito humano‘, local destinado àqueles sujeitos considerados inservíveis ao modelo de produção/sociedade vigente‖.

Neste contexto, as violações de direitos humanos dos aprisionados são corriqueiras. Segundo o relatório intitulado ―Mutirão Carcerário: um Raio-X do Sistema Penitenciário Brasileiro‖, por exemplo, nos presídios de Rondônia, a média de ocupação chega a dois presos por vaga, sendo que em alguns estabelecimentos quatro homens vivem em um espaço que só deveria abrigar um. O mesmo se evidenciou no Pará, onde, em 2012, o déficit de vagas correspondia a 75% da capacidade do sistema (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2012).

No Nordeste, o Conselho Nacional de Justiça (2012) constatou que edifícios históricos abrigam detentos em condições subumanas, com escassez de água, sujeira e esgoto a céu aberto, além da superlotação, o que impõe aos reclusos a necessidade de criação de esquemas de revezamentos para dormir. No Rio Grande do Norte, algumas prisões foram comparadas a ―calabouços‖ em virtude da

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má ventilação e do mau cheiro. No Ceará, ―ruínas‖ foi o adjetivo utilizado para descrever algumas penitenciárias inspecionadas. Na Bahia, o pátio de uma unidade foi comparado a um ―campo de concentração‖ (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2012).

No Rio Grande do Norte, segundo o Conselho Nacional de Justiça (2012, p. 109) ―vários estabelecimentos prisionais do Estado não são dignos sequer de abrigar animais irracionais ferozes‖, reiterando, no ano seguinte (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2013, p. 103), que o sistema carcerário ―encontra-se em verdadeiro colapso, com diversas unidades prisionais corretamente interditadas pelo Judiciário, em virtude de condições absurdamente precárias que somente uma inspeção pessoal poderia retratar de forma fidedigna‖. A estes fatos somam-se as situações analisadas pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos do Presídio Central de Porto Alegre, e da Penitenciária de Pedrinhas, dentre muitos outros (WERMUTH; NIELSSON, 2017, p. 58).

Por tudo isso, pode-se afirmar, conforme Wermuth e Nielsson (2017, p. 58), ―que o descaso do Estado brasileiro com a situação dos apenados que superpovoam os cárceres do país representa uma estratégia de incapacitação seletiva daqueles que são considerados irrelevantes e/ou inservíveis para o atual modelo de sociedade‖. O que transforma nosso sistema em uma fonte constante de violação de direitos, reconhecido pelo próprio STF, conforme veremos a seguir.

1.2 O Estado de Coisas Inconstitucional

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura a sua população a dignidade da pessoa humana, tal como os Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos humanos que o país recepciona. A ideia de que pode haver um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) surgiu na Corte Constitucional da Colômbia, em 1997, com a chamada Sentencia de Unificación (SU) e é uma teoria aplicada frente a situações de grave e generalizada ofensa a direitos e garantias fundamentais de populações vulneráveis.

De acordo com Campos (2015), o Estado de Coisas Inconstitucional ocorre, então, quando verifica-se a existência de um quadro de violação sistêmica de

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direitos fundamentais, causado pela inércia reiterada e persistente das autoridades públicas no que se refere à modificação da conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público podem mudar a situação inconstitucional.

O ECI está relacionado, portanto, afirma Pereira (2017) à constatação e declaração de um quadro de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos humanos fundamentais que, para ser superado, requer a ocorrência de transformações na estrutura e na atuação dos poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário), que importem na construção de soluções estruturais aptas a extirpar a situação de inconstitucionalidade declarada.

No mesmo sentido, afirma o autor (PEREIRA, 2017), A declaração do ECI ocorre no âmbito dos chamados casos estruturais, que são aqueles caracterizados por Garavito (2009): (i) atingir um grande número de pessoas que alegam a violação de seus direitos, (ii) envolver diversas entidades estatais, que são demandadas judicialmente em razão de sua responsabilidade por falhas sistemáticas na implementação das políticas públicas, e (iii) implicar em ordens de execução complexas, mediante as quais os juízes determinam a várias entidades públicas que empreendam ações coordenadas para a proteção de toda a população afetada, e não apenas dos demandantes do caso concreto.

No Brasil houve o reconhecimento deste instituto apenas no ano de 2015, nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, ocasião em que o sistema carcerário brasileiro contava com níveis alarmantes de violações aos direitos constitucionais dos detentos, e por intermédio do qual os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF),

Concederam, parcialmente, cautelar a fim de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão. Os ministros também entenderam que deve ser liberado, sem qualquer tipo de limitação, o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen, para utilização na finalidade para a qual foi criado, proibindo a realização de novos contingenciamentos (BRASIL, 2015).

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A ADPF n. 347 teve como objetivo pleitear providências no sentido de sanar graves danos às normas fundamentais no que tange os direitos das pessoas cumpridoras de penas privativas de liberdade no país. A ADPF teve por base a formulação apresentada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), por meio de sua Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito, a qual relatou o quadro dramático e inconstitucional do sistema prisional brasileiro, por meio de relatórios oficiais que demonstravam tal situação:

Assim o pedido demonstrou que as principais características do sistema prisional brasileiro são: superlotação, insalubridade, multiplicação de casos de contágio por doenças infectocontagiosas, comida estragada, temperaturas incompatíveis, escassez de água potável e de produtos higiênicos básicos.

Demonstrou-se que: homicídios, espancamentos, tortura e violência sexual contra presos são frequentes e praticados tanto por outros detentos como por agentes do próprio Estado. (CARVALHO; OLIVEIRA; SANTOS, 2017, p. 11).

Em razão deste acúmulo de violações a direitos e garantias fundamentais no sistema prisional brasileiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão principal da Organização dos Estados Americanos (OEA) encarregado da promoção e proteção dos direitos humanos no continente americano, cobrou do Estado brasileiro, de forma inédita, explicações e soluções para a violência e a superlotação nas instituições carcerárias do país. (CARVALHO; OLIVEIRA; SANTOS, 2017).

Nesse sentido, também se deve notar que Tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo país, como o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos estão sendo desrespeitados e, ainda, há ofensa à Lei de Execução Penal na atual situação penitenciária brasileira.

A própria Corte reconheceu que o problema é estrutura e resultante de uma política equivocada que se baseia no encarceramento em massa.

Trata-se de uma política irracional, ineficiente e inviável economicamente, ainda mais em um país como o nosso, em grave crise e sem condições orçamentárias de arcar com o alto custo

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desse sistema. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cada preso custa ao Estado brasileiro 2,4 mil reais por mês. No Amazonas, onde 56 morreram no primeiro dia do ano, o custo é mais do que o dobro da média nacional, chegando a 5,1 mil reais por detento. A vultosa cifra em nada corresponde às condições em que vivem os aprisionados, classificadas pela ONU como ―medievais‖ (SERRANO, 2017).

Em seu voto, o relator da ADPF 347, Ministro Marco Aurélio, lembrou José Eduardo Cardozo que comparou as prisões brasileiras às ―masmorras medievais‖, afirmando que não poderia haver melhor analogia (Id, p. 22). Para o Ministro, a conclusão não pode ser outra: ―no sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica‖, devendo-se ressaltar que,

A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se ―lixo digno do pior tratamento possível‖, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. (STF, 2015, p. 24-25).

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen/2016, entre os anos 2000 e 2016 a taxa de aprisionamento aumentou em 157% no Brasil. Em 2000 existiam 137 (cento e trinta e sete) pessoas presas para cada grupo de 100 (cem) mil habitantes. Em Junho de 2016, eram 352,6 (trezentos e cinquenta e duas mil e seiscentas) pessoas presas para cada 100 mil habitantes.

Conforme com o mesmo Levantamento, 40% das pessoas presas no Brasil em Junho de 2016 não haviam sido ainda julgadas e condenadas. Este dado varia sensivelmente entre os levantamentos mais recentes do Infopen: no levantamento de junho de 2014, essa população representava 41% do total; em dezembro do mesmo ano representava 40%; já em dezembro de 2015, as pessoas sem julgamento somavam 37% da população no sistema prisional.

De acordo com Pereira (2017), ao reconhecer o ECI em relação ao sistema prisional, o Ministro também salientou em seu voto que a responsabilidade pelo estado de coisas a que se chegou não pode ser atribuída única e exclusivamente a

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apenas um poder, mas aos três (Legislativo, Executivo e Judiciário), tanto da União, como dos Estados Federados e do Distrito Federal.

Há, na realidade, problemas tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal. Falta coordenação institucional. O quadro inconstitucional de violação generalizada e contínua dos direitos fundamentais dos presos é diariamente agravado em razão de ações e omissões, falhas estruturais, de todos os poderes públicos da União, dos estados e do Distrito Federal, sobressaindo a sistemática inércia e incapacidade das autoridades públicas em superá-lo [...] A ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa falha estrutural a gerar tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e o agravamento da situação [...] A responsabilidade do Poder Público é sistêmica, revelado amplo espectro de deficiência nas ações estatais. Tem-se a denominada ―falha estatal estrutural‖ (STF, 2015, p. 26-27).

Diante deste cenário, conforme reconhecido amplamente pelo próprio STF, há a falência do sistema carcerário pátrio e a completa violação de direitos de todos que ali estão, inclusive, como veremos, dos filhos de mulheres presas.

1.3 As mulheres e o sistema prisional

Segundo os últimos dados do Infopen Mulheres, do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, de 2014, há no Brasil 37.380 (trinta e sete mil, trezentas e oitenta) mulheres encarceradas, destas, 9.565 (nove mil, quinhentas e sessenta e cinco) vivem em ambientes superlotados e insalubres, sendo que mais de 50% destas detentas foram presas por crimes sem violência ou grave ameaça, tendo o tráfico doméstico de entorpecentes como o delito que mais encarcera, ou seja, são mães e mulheres em grave situação de vulnerabilidade (INFOPEN MULHERES, 2016).

No que se refere exclusivamente às mulheres submetidas ao cárcere, em geral são jovens, 50% delas têm entre 18 e 29 anos, ou seja, percebe-se que o perfil etário da mulher encarcerada repete o perfil jovem dos homens presos. Em relação à cor, raça ou etnia, destaca-se a proporção de mulheres negras presas, 67%. A maior parte das mulheres encarceradas é solteira e tem filhos, 57%, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar, possui baixa escolaridade, 50% delas não concluíram o ensino fundamental e são oriundas de extratos sociais

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desfavorecidos economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento.

Em torno de 68% dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas. A maioria dessas mulheres ocupa uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico (BRASIL, 2014).

Ainda segundo o Infopen Mulheres: ―no período de 2000 a 2014 o aumento da população feminina foi de 567,4%, enquanto a média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%, refletindo, assim, a curva ascendente do encarceramento em massa de mulheres‖ (BRASIL, 2014).

Significa dizer que a população de mulheres presas segue crescendo em torno de 10,7% ao mês no país. Com 42,3 (quarenta e duas mil e trezentas) presas, as brasileiras compõem a quarta maior população feminina encarcerada do mundo. O crime cometido por 62% delas é o tráfico de drogas. No entanto, via de regra, essas mulheres não estão no topo da pirâmide do tráfico, exercendo atividades menores na hierarquia, como o transporte de drogas, por exemplo.

No entanto, conforme sintetiza Braga (2015, p. 531), ―o chão da prisão é feito de violações de direitos, que caracterizam o passado e o presente do sistema prisional brasileiro e se acentuam em relação às mulheres encarceradas.‖ Há desta forma, um déficit histórico em relação ao planejamento e à execução de políticas públicas voltadas ao coletivo feminino nas prisões, uma vez que a maioria das políticas penitenciárias foi pensada para a população majoritária, qual seja, a masculina. Em razão deste cenário, ainda hoje milhares de mulheres vivem gestações, partos e maternidades precárias, e seus filhos formam parcela invisível da população prisional – como nos casos ilustrados nas considerações iniciais do presente estudo, emblemáticos, pela sua dramaticidade, para ilustrar o contexto ora delineado (WERMUTH; NIELSSON, 2018).

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A prisão é uma experiência em família para muitas mulheres no Brasil não apenas para Ieda, Marta e Márcia. Em geral, é gente esmagada pela penúria, de áreas urbanas, que buscam o tráfico como sustento. São, na maioria, negras e pardas, mães abandonadas pelo companheiro e com ensino fundamental incompleto.

Segundo a autora, é justamente em razão deste abandono e, muitas vezes, pela emancipação das mães de famílias, o que as torna as chefes de casa, que mais e mais mulheres têm entrado para o mundo do crime, buscando, portanto, uma complementação na renda, tendo em vista a histórica falta de equiparação salarial entre homens e mulheres. Ainda conforme a autora (2015, p. 63), ―Os crimes cometidos por mulheres são, sim, menos violentos, mas é mais violenta a realidade que as leva até eles‖.

Inegável é que um dos mais graves problemas das unidades prisionais brasileiras é no que concerne à própria estrutura física: celas superlotadas, sem ventilação, iluminação, higiene e outras tantas mazelas são comuns. A Lei de Execução Penal (lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984), prevê a separação de instalações penais entre masculinas e femininas. Essa destinação dos estabelecimentos de acordo o gênero, portanto, é um dever estatal, e representa aspecto fundamental para a implementação de políticas públicas específicas, voltadas a esse segmento. No entanto, não é o que verificamos ao observar os dados disponibilizados pelo Infopen Mulheres, que aponta que: A maior parte dos estabelecimentos (75%) é voltada exclusivamente ao público masculino. Apenas 7% são voltadas ao público feminino e outros 17% são mistos, no sentido de que podem ter uma sala ou ala específica para mulheres dentro de um estabelecimento anteriormente masculino (BRASIL, 2014).

Significa dizer, então, que a maior parte das mulheres encontra-se em unidades prisionais com estrutura mista. Ainda de acordo com o Infopen, apenas 48 (quarenta e oito) das 1.420 (mil quatrocentos e vinte) unidades prisionais brasileiras dispõem de celas ou dormitórios adequados para gestantes, sendo 35 (trinta e cinco) em unidades específicas para mulheres e 13 (treze) em unidades mistas.

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Segundo a especialista Thandara Santos, do Fórum Brasil de Segurança Pública, ―o fato de haver poucas unidades um pouco melhores do que outras confirmam que uma mulher grávida não deveria estar dentro do sistema prisional, muito menos uma criança, que acaba tendo a pena da mãe estendida para ela‖.

De acordo com Queiroz (2015, p. 71-72),

Entre uma contração e outra, ela foi observando a rua, as pessoas que olhavam o carro com medo, com curiosidade, com hipocrisia. A ninguém importava Gardênia ou o bebê que carregava. Eles eram o resto do prato daquela sociedade. O que ninguém quis comer. E seu filho já nascia como sobra.

Apesar de sancionada a Lei nº 11.942/09, que deu nova redação aos artigos 14, § 3º, 83 e 89 da Lei de Execuções Penas (Lei nº 7.210/8), assegurando às mães reclusas e aos recém-nascidos, condições mínimas de assistência durante o exercício da maternidade, das penitenciárias que recebem somente mulheres – que representam apenas 7% do total de unidades – em torno de 30% garantem dormitórios adequados para gestantes e disponibilizam berçários. Das penitenciárias que recebem homens e mulheres – que correspondem a 17% do total de unidades prisionais no Brasil – a porcentagem daquelas que garantem dormitórios adequados para gestantes diminui para 13% e 3% que disponibilizam berçários.

Durante os seis primeiros meses de vida do bebê, portanto, as mulheres apenadas em instituições com a estrutura adequada podem ter garantido o direito à convivência com seus filhos. Mas a partir disso, a criança é entregue ao pai, familiares ou ao Estado. No caso daquelas que não estão apenadas em instituições com a estrutura adequada, nem mesmo essa garantia de contato nos primeiros meses de vida está assegurada.

Quando homens são encarcerados, a estrutura familiar se mantém e aguarda seu regresso, quando mulheres são encarceradas, elas perdem a casa e o marido, e seus filhos são redistribuídos entre familiares ou entregues ao Estado. Neste último caso, ao terminar de cumprir suas penas elas têm de pedir de volta a guarda de seus filhos à Justiça. Não é um caminho fácil a ser percorrido e muitas

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não conseguem. Para atestar a capacidade em criar uma criança é necessário comprovante de residência e de salário. Em se tratando de mulheres com antecedentes criminais o salto a ser dado é grande. ―Enquanto o homem volta para um mundo que já o espera, ela sai e tem que reconstruir seu mundo‖ (QUEIROZ, 2015, p. 77).

Quanto ao aleitamento materno, é de entendimento comum sua essencialidade para a nutrição da criança. Além de o contato com a mãe ser de grande importância para o seu desenvolvimento físico, psicológico e afetivo, amamentar significa um momento ímpar para estabelecimento de laços entre a mãe e o seu filho. Este direito deve ser valorizado e garantido, no mínimo, até os seis meses de idade do infante, conforme aconselha o próprio Ministério da Saúde do país. Esse prazo deve ser respeitado também nos casos em que a mãe esteja cumprindo uma pena privativa de liberdade em estabelecimento prisional. Cabe à unidade prisional oferecer espaços adequados para a permanência das crianças pequenas.

A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 5º que:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (BRASIL, 1988).

Da mesma forma são as disposições trazidas Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90): ―Art. 9º O poder público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas à medida privativa de liberdade‖ (BRASIL, 1990).

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2 MATERNIDADE NA PRISÃO E A CRIANÇA ENCARCERADA

Na primeira parte deste trabalho foi analisada a situação caótica vivenciada pelo sistema carcerário brasileiro e a profusão de violações de direitos ali encontradas. Esta situação torna-se mais danosa quando se refere ao encarceramento feminino, e mais ainda quando ocorre a gravidez, puerpério e maternidade encarcerada, momento no qual passa a haver uma criança, conforme veremos, diretamente afetada pelo contexto já evidenciado. É sobre esta temática que se debruça este capítulo.

2.1 Gravidez, maternidade e puerpério na prisão: o que diz a legislação

Como já se verificou na primeira parte deste trabalho, a instituição prisional foi, historicamente, pensada e planejada para abrigar homens. Neste sentido, somente mais recentemente, no Brasil e no mundo, teve curso de forma mais contundente o ingresso das mulheres neste universo, que não estava pensado para ela, suas particularidades e mais especificamente, para a maternidade.

Diante disso, também a preocupação legislativa apenas mais recentemente começou a abordar esta temática, inicialmente no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Como exemplo, pode-se inferir que a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, aprovou, em 1957 as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso, estabelecendo princípios e orientação de prática e organização penitenciária, porém, somente depois de mais de 50 anos, jovens e mulheres em condição de privação de liberdade tiveram reconhecidos seus direitos e especificidades pela legislação internacional. Neste sentido, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU em 2010, foram aprovadas as chamadas Regras de Bangkok - Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.

O ponto principal das Regras de Bangkok é no que se refere à necessidade de avaliar as diferentes necessidades da mulher presa, tendo em vista que as

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mulheres em situação prisional carecem de necessidades muito específicas. Para tanto, foram estabelecidas normas referentes ao ingresso, à alocação, à higiene pessoal, ao atendimento médico específico, à saúde mental, capacitação adequada de funcionários, flexibilização do regime prisional e assistência subsequente ao encarceramento, cuidados especiais com gestantes e lactantes, entre outras.

Segundo o item 02 da Regra 02, no momento do ingresso de mulheres e crianças no sistema prisional, deve haver permissão para que as mulheres responsáveis pela guarda de crianças possam tomar as providências necessárias em relação a elas, inclusive permitindo que seja suspensa a medida privativa de liberdade por um período razoável, levando em consideração o melhor interesse da criança. Esta regra se apresenta, então, de maneira que visa a respeitar o direito da criança e do adolescente à convivência familiar.

A Regra 03 determina que no momento do ingresso, deverão ser registrados o número e os dados pessoais dos/as filhos/filhas das mulheres introduzidas nas prisões. Os registros deverão incluir, sem prejudicar os direitos da mãe, ao menos os nomes das crianças, suas idades e, quando não acompanharem a mãe, sua localização e situação de custódia ou guarda.

As mulheres detentas devem, também, ser alocadas em prisões próximas às suas famílias, e, como complementação ao estabelecido nos itens 15 e 16 das Regras para o tratamento de reclusos, ter fornecimento de água e artigos de higiene, necessários à saúde e limpeza individual.

As Regras 22 e 23 apresentam determinações importantes no que concerne à aplicação de sanções às detentas, sendo que a Regra 02 determina que ―não deverão ser aplicadas sanções de isolamento ou segregação disciplinar a mulheres gestantes, nem a mulheres com filhos/as ou em período de amamentação‖, e a Regra 23 dispõe que ―sanções disciplinares para mulheres presas não devem incluir proibição de contato com a família, especialmente com crianças‖. Estes regramentos, em um primeiro momento parecem absurdos, visto ser nítido que o castigo, além de extremamente prejudicial para a presa, se estenderia à criança, fazendo com que o filho seja punido com a pena da mãe sem ter cometido crime

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algum. Porém, além de necessário, é preciso que as autoridades públicas respeitem esses regramentos, para que tanto a mulher presa como seus filhos tenham seus direitos respeitados.

Mas, ainda que o governo brasileiro tenha participado das negociações para a elaboração e para sua aprovação na Assembleia Geral da ONU, e de que tenha sido um importante passo na garantia dos direitos das mulheres/crianças, e, ainda que o Estado Brasileiro seja membro da ONU e deva respeito às Regras de Bangkok, ―até o momento elas não foram transformadas em políticas públicas consistentes no país, sinalizando a carência de fomento à implementação e à internalização eficazes pelo Brasil das normas de direito internacional dos direitos humanos‖ (STF, 2017).

Como medidas mais significativas para a aplicação das diretrizes das Regras de Bangkok no âmbito interno, podemos destacar (OLIVEIRA, 2017):

a) a inclusão dos incisos IV, V e VI no art. 318 do Código de Processo Penal;

b) o indulto especial e comutação de penas às mulheres presas que menciona, por ocasião do Dia das Mães, e dá outras providências; e,

c) inserção do parágrafo único no art. 292 do Código de Processo Penal, que veda o uso de algemas em mulheres em trabalho de parto, durante o parto e no período imediatamente posterior.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, veda as penas cruéis, na expectativa de garantir ao preso respeito à sua integridade física e moral, além de determinar a separação de detentos por gênero. Assegura, também, o direito das mães permanecerem com seus filhos durante o período de amamentação. É importante lembrar que a situação de cárcere não é suficiente para justificar o afastamento entre mães e filhos, uma vez que a segregação cautelar ou o cumprimento de pena privativa de liberdade não podem atingir outros direitos que não a própria liberdade, como prevê a Lei de Execução Penal, Lei nº 7.210/1984.

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A Lei nº 12.962/2014 alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei nº 8.069/1990, para assegurar a convivência da criança e do adolescente com os pais em condição de privação de liberdade, e, ainda, fixou, na redação do parágrafo 2º do artigo 23 que: ―a condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão, contra o próprio filho ou filha‖.

Já, no que diz respeito à Lei da Primeira Infância, Lei nº 13.257/2016, e que responde à convocação dos organismos internacionais para a especial atenção que deve ser dispensada aos filhos de pessoas aprisionadas para diminuir o impacto da penalidade na sua prole, trouxe alteração ao artigo 318 do Código de Processo Penal, que passou a vigorar prevendo a possibilidade de o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante, mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos, ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos de idade incompletos.

Mais recentemente, e em uma decisão inédita, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em atenção à ação impetrada por membros do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos, concedeu Habeas Corpus Coletivo – HC 143.641, para determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mulheres presas, em todo o território nacional, que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência, sem prejuízo da aplicação das medidas alternativas previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal (WERMUTH; NIELSSON, 2018).

O Habeas Corpus tem o intento de substituir a prisão preventiva pela domiciliar a todas as mulheres nestas condições, com exceção daquelas que tenham cometido crimes mediante violência ou grave ameaça contra os próprios filhos, ou, ainda, em situações excepcionalíssimas — casos em que o juiz terá de fundamentar a negativa e informar ao Supremo da decisão. O entendimento, no entanto, atinge apenas presas que ainda não foram condenadas.

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Jéssica Monteiro, de 24 anos, foi presa por tráfico de drogas. A polícia diz ter encontrado 90 gramas de maconha na casa dela. No dia seguinte, ela entrou em trabalho de parto e deu à luz um menino, no hospital da Mooca, em São Paulo, para onde foi levada. A Justiça negou o pedido de prisão domiciliar. Ela e o bebê recém-nascido voltaram para uma cela na delegacia, onde ficaram por dois dias (GLOBO, 2018).

Foram casos como o de Jéssica que levaram o Supremo a tomar a histórica decisão do Habeas Corpus Coletivo. Como já citado anteriormente, o Estatuto da Primeira Infância garante a prisão domiciliar a mulheres grávidas ou com crianças de até 12 anos. O tema, porém, só ganhou repercussão quando ministros do Supremo Tribunal de Justiça - STJ concederam Habeas Corpus à advogada Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral.

―É chegada a hora de agirmos com coragem e darmos uma abrangência maior a esse histórico instrumento que é o Habeas Corpus", afirmou o relator do HC, ministro Ricardo Lewandowski (BRASIL, 2018). Para o Ministro, ―numa sociedade burocratizada, a lesão pode assumir caráter coletivo e, neste caso, o justo consiste em disponibilizar um remédio efetivo e funcional para a proteção da coletividade‖.

No mesmo sentido, explana Lewandowski (BRASIL, 2018), ―num cenário crescente de maior igualdade de gênero, é preciso dar atenção especial à saúde reprodutiva das mulheres", acrescentou o ministro. As crianças também merecem a atenção do Judiciário. "São mais de dois mil pequenos brasileirinhos que estão atrás das grades sofrendo indevidamente contra o que dispõe a constituição, as agruras do cárcere", enfatizou o ministro.

De toda forma, distante da soberania das leis, a permanência na prisão ocorre com a frequente violação de direitos, o que caracteriza tanto o passado quanto o presente do sistema carcerário brasileiro e que se intensifica quando relacionada às mulheres presas (BRAGA, 2015). Historicamente há um déficit no que tange ao planejamento e execução de políticas públicas voltadas à comunidade feminina no cárcere, tendo em vista que a maioria das políticas penitenciárias foi pensada para o público masculino, historicamente predominante nos estabelecimentos prisionais.

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Por conta disso, ainda hoje, milhares de mulheres vivem gestações, partos e maternidades precárias e suas crianças formam parcela invisível da população prisional – contrariando a Regra de Tóquio n. 3, que determina que sejam registrados número e informações pessoais das crianças que ingressam nas prisões com a mãe (BRAGA, 2015, p. 9).

Embora a solução para o problema deva ser vista caso a caso, para se possa falar em exercício de direito da mulher encarcerada, necessário de faz falar em mudanças na política criminal, principalmente, por no que diz respeito à reforma na Lei de Drogas, tendo em vista que mais da metade das mulheres brasileiras estão presas por crime relacionado às drogas, e da aplicação das garantias da legislação já existente, visando o não encarceramento dessas mulheres e crianças.

2.2 O chão da prisão e a realidade de filhos/filhas de mulheres presas

Ainda com base no levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, em junho de 2016 a população carcerária feminina era de 42.355 (quarenta e duas mil, trezentas e cinquenta e cinco) mulheres, 13% a mais do que o levantamento anterior e apresenta um déficit de 15.326 (quinze mil, trezentos e vinte e seis) vagas.

A taxa de ocupação no sistema prisional brasileiro, em relação às mulheres, é de 156,7%, conforme registrado em Junho de 2016, o que significa dizer que em um espaço destinado a 10 (dez) mulheres, encontram-se custodiadas 16 (dezesseis). Além disso, quase metade, 19.223 (dezenove mil, duzentas e vinte e três), está encarcerada sem sequer ter sido condenada.

O documento encontra, no entanto, dificuldade em precisar números sobre o encarceramento de mães no Brasil. Um trecho do relatório salienta que: ―a disponibilidade de informação sobre o número de filhos, no entanto, permanece baixa em todo o país e foi possível analisar dados referentes a apenas 7% da população prisional feminina em Junho de 2016, o que corresponde a uma amostra de 2.689 (duas mil, seiscentos e oitenta e nove) mulheres sobre as quais se tem informações. Nos estados do Rio de Janeiro, de Sergipe e no Distrito Federal, não

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existiam quaisquer informações acerca da quantidade de filhos entre as pessoas privadas de liberdade, homens ou mulheres‖ (INFOPEN, 2016).

Neste sentido, segundo o próprio documento, é impossível extrair conclusões acerca da totalidade da população prisional no sistema carcerário feminino. Dos dados colhidos, ainda no ano de 2016, registrou-se que 74% das mulheres privadas de liberdade têm filhos e que 55% das mulheres encarceradas têm de um a três filhos e, ainda, que existem 1.111 (um mil cento e onze) crianças encarceradas com suas mães.

O Conselho Nacional de Justiça - CNJ, por sua vez, disponibilizou em abril de 2018, acesso público aos dados do cadastro de grávidas e lactantes presas por Unidade da Federação. O sistema informa que, em março de 2018, havia 514 (quinhentas e quatorze) presas gestantes ou amamentando em unidades penitenciárias do País: 308 (trezentas e oito) mulheres estão grávidas e 206 (duzentas e seis) são lactantes.

Durante a colheita de dados, a Juíza Auxiliar da Presidência do CNJ, Andremara dos Santos, esteve em visitas a várias unidades prisionais em diversos Estados brasileiros, constatando que: ―Ficou clara a necessidade de estabelecermos padrões de procedimentos em relação aos cuidados com grávidas, lactantes e seus filhos a serem adotados no sistema prisional‖ (CNJ, 2018).

A juíza do CNJ adverte, ainda, que boa parte das crianças que vivem no interior do cárcere com suas mães não são acompanhadas pela Justiça da Infância e Juventude, e que muitas mães ―chegam a esconder que possuem outros filhos, por medo de que a situação precária em que vivem as crianças legitime a entrega delas para a adoção‖.

A separação dos filhos é um martírio à parte. Privado da liberdade resta ao homem o consolo de que a mãe de seus filhos cuidará deles. Poderão lhes faltar recursos materiais, mas não serão abandonados. A mulher, ao contrário, sabe que é insubstituível e que a perda do convívio com as crianças, ainda que temporária, será irreparável, por que se ressentirão da ausência de cuidados maternos, serão maltratadas por familiares e estranhos, poderão

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enveredar pelo caminho das drogas e do crime, e ela não os verá crescer, a dor mais pungente (VARELA, 2017, p. 45).

Tradicionalmente, à mulher é dado o papel da maternidade, papel este que exige desempenhos e atividades que parecem não compatibilizar com a vida no crime. ―O entrelaçamento dos universos da prisão e da maternidade produz um exercício da maternidade no registro do sacrifício e da disciplina, atendendo ao projeto mais amplo de domesticar o desvio e o desejo feminino, criminal e sexual‖. Segundo a autora, ―A casa e a cria são trazidas para dentro do cárcere, vigiadas, ensinadas, disciplinadas a partir de parâmetros restritos de normalidade de gênero e família‖ (BRAGA, 2015, p. 6).

Ser taxada como criminosa põe fim a qualquer possibilidade de uma presa ser vista como boa mãe. Na prisão, a mulher perde seu papel de mãe, de esposa, de filha e de mulher, deixando evidente a quebra dos vínculos familiares. O julgamento moral, sob a ótica machista, é potencializado no ambiente prisional.

É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos que lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam (QUEIROZ, 2015, p. 19).

Quando se investiga a introdução da mulher no sistema penal, imagina-se, inicialmente, que há a consideração através de uma perspectiva de gênero, tendo em vista que as diferenças sociais e biológicas existentes entre homens e mulheres as ponha em condições de vulnerabilidade próprias do gênero feminino, ao lado do estigma de ser inferior, que recai sobre os presos de maneira geral. Porém, o que se vislumbra, realmente, é a lamentável constatação de que as mulheres são desconsideradas no ambiente prisional, considerando que este foi construído para atender a criminalidade masculina.

Tratando todos os presos da mesma forma, como se todos fossem homens, acaba não se considerando "os bebês nascidos no chão das cadeias" (QUEIROZ, 2017, p. 19) e as demais situações envolvendo a maternidade, o cuidado com a gestação, com o parto, com a amamentação e com a criação dos filhos nos

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primeiros dias de vida. ―Até nisso é diferente a gente presa do que a gente solta. Solta, você pega seu filho, vê. E eu nem consegui olhar os dedos da mão e do pé, pra ver se não tava faltando nenhum‖ (QUEIROZ, 2015, p. 73).

Presas relatam ser comum, depois de uma rápida inspecionada no filho que acabara de nascer, serem novamente algemada na cama. No livro ―Presos que menstruam‖ (2015, p. 73), a escritora Nana Queiroz narra o relato da ativista americana Heidi Cerneka, ―tem mulher que até dá à luz algemada na cama. Como se pudesse levantar parindo e sair correndo. Só homem pode pensar isso. Porque mesmo que ela pudesse levantar, qualquer policial com uma perna só andaria mais rápido que ela‖.

É importante destacar que o uso de algemas, nessas circunstâncias, por si só é um abuso ao direito da dignidade da pessoa presa, uma vez que sua utilização é absolutamente desnecessária, considerando que a presa gestante ou em trabalho de parto não representaria qualquer ameaça à segurança.

O médico Dráuzio Varela, no livro Prisioneiras, fala sobre o mesmo tema usando de sua experiência de onze anos de trabalho voluntário ―atendendo a realidade da penitenciária feminina da cidade de São Paulo, situada onde um dia foi a prisão chamada de Carandiru‖ (VARELLA, 2017). Suas percepções vão na mesma linha apresentada acima, e identificam o tratamento igual dispensado a homens e mulheres. Ele mostra que enquanto o atendimento das prisões igualam homens e mulheres, até as reclamações de saúde são diferente entre os presos e as presas:

Em vez de feridas mal cicatrizadas, sarna, furúnculos, tuberculose, micoses e as infecções respiratórias dos homens, elas se queixavam de cefaleia, dores na coluna, depressão, crises de pânico, afecções ginecológicas, acne, obesidade, irregularidades menstruais, hipertensão arterial, diabetes, suspeita de gravidez (VARELLA, 2017, p.13.).

As desigualdades vislumbradas, entre homens e mulheres, na sociedade e nas relações de trabalho se repetem no ambiente criminal, portanto. De acordo com delineamento feito pelo já citado Levantamento, são jovens de baixa renda, que têm filhos que dependem econômica e funcionalmente delas, e a sua

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vinculação penal se deu por envolvimento com o tráfico de drogas em conduta não relacionada à gerência do tráfico de entorpecentes ou a organização criminosa.

No momento da prisão, estão sujeitas a todo tipo violência e não são raros os relatos de abuso sexual e de discriminação em relação ao gênero. Na prisão, quando existem, desenvolvem atividades ocupacionais voltadas para os trabalhos manuais, como o artesanato e a costura, reproduzindo e reforçando nas prisioneiras que seu mundo se reduz à vida doméstica. Não há espaço para que pratiquem algum esporte, que serviria para o seu desenvolvimento físico, para estimular a competição e a capacidade de adquirir um grau mais elevado de autoestima e valorização no grupo pertencente. Não se vislumbra uma efetiva preocupação para que as mulheres se preparem para uma futura disputa no mercado de trabalho ao deixar o cárcere. Fora da prisão continuará restrita ao mundo doméstico e a subempregos que lhe permitam continuar a cuidar sozinha da casa e dos filhos (WERMUTH; NIELSSON, 2018).

Diante disso, sem oportunizar às mulheres novos modos de vida, resta-lhes o mesmo papel inferior de cuidar da casa e empacotar as drogas ou servir de mula no transporte das mesmas, voltando-se a repetir a conduta que as levou a serem presas. Presas, essas mulheres têm o convívio com seus filhos interrompido e estes acabam com a guarda dada a familiares ou instituições custodiadas pelo Estado. Se a maternidade ocorre durante o cárcere, algumas mães permanecem com seu filho durante o período de amamentação, sendo ambos submetidos ao precário ambiente prisional.

As que chegam grávidas ou engravidam nas visitas íntimas saem da cadeia apenas para dar à luz. Voltam da maternidade com o bebê, que será amamentado e cuidado por seis meses nas celas de uma ala especial. Cumprido esse prazo, a criança é levada por um familiar que se responsabilize ou por uma assistente social que o deixará sob a guarda do Conselho Tutelar. A retirada do bebê do colo da mãe ainda com leite nos seios é uma experiência especialmente dolorosa (VARELLA, 2017, p. 46).

Grande número dessas mulheres é abandonado pelos companheiros, o que não ocorre de maneira tão significativa quando o homem é o preso. É o caso, por exemplo, de Telma, ―presa com o seu filho nos braços. Após permanecerem juntos

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em uma cela por algumas horas, ela foi levada para uma Penitenciária e o filho para um abrigo. Os dois nunca mais se encontraram (VALENTE, CERNEKA E BALERA, 2011).

Detentos, comumente, são tidos como seres com humanidade reduzida, como a sobra de uma sociedade comprometida com os direitos humanos. De acordo com Foucault, ―o presídio é o local de negação de todo o direito real‖. Nessa ótica, detentos do sistema carcerário brasileiro são vistos como inimigos da sociedade, e, desta forma, a segregação imposta a eles é naturalizada. O presídio, longe do intento de humanizar, desde a sua concepção e tido como um mecanismo de controle.

Em meio a esse contexto social, ―a dificuldade está em não estender a pena da mãe à criança – uma medida difícil de atingir. O último levantamento do Ministério da Justiça mostrava que 166 (cento e sessenta e seis) crianças viviam no sistema prisional do país. Destas, só 62 (sessenta e duas) estava em locais dignos‖, relata Queiroz (2016, p. 117). As demais moravam em presídios mistos, com pouca ou nenhuma adaptação para recebê-las. Cadeias de homens e mulheres ainda predominam fora das capitais, e, ―quando nascem em locais assim, as crianças vivem em celas superlotadas, úmidas e malcheirosas, chegando até mesmo a dormir no chão com as mães. Apiedadas pelos filhos, muitas presas preferem devolvê-los à família ou entregar para adoção a vê-los vivendo em tais condições‖ (QUEIROZ, 2016, p. 117).

Além disso, conforme observam os autores (2011), a falta de políticas públicas que considerem a prisão sob a perspectiva de gênero acaba por gerar uma verdadeira ―sobrepena‖ para as mulheres. Constata-se uma ―inadequação estrutural do sistema prisional às necessidades femininas‖, pois, em regra, as prisões femininas seriam adaptações das masculinas, o que torna os impactos da prisão ainda mais severos, implicando uma sistemática violação dos direitos humanos.

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2.3 Filhos/filhas de mulheres encarceradas e as repercussões do cárcere: violando direitos humanos

Dedicar nossa atenção aos nossos presídios nos faz perceber um mundo à parte. Distante da nossa realidade. Nesses locais vê-se vontades desbotadas, eficácias políticas dissolvidas e carências reveladas.

Especialistas em desenvolvimento humano (BRASIL, 2006), independentemente de sua orientação teórica, são unânimes em destacar a importância fundamental dos primeiros anos de vida, concordando que o desenvolvimento satisfatório nesta etapa aumenta as possibilidades dos indivíduos de enfrentarem e superarem condições adversas no futuro.

É comprovadamente produtivo considerar muitos distúrbios psiconeuróticos e da personalidade nos seres humanos com um reflexo de um distúrbio na capacidade para estabelecer vínculos afetivos, em virtude de uma falha no desenvolvimento na infância ou de um transtorno subsequente (KUROWSKY, 1990, p. 15). A segurança e o afeto sentidos nos cuidados dispensados, bem como pelas primeiras relações afetivas, contribuirão para a capacidade da criança de construir novos vínculos, para o sentimento de segurança e confiança em si mesma, em relação ao outro e ao meio, desenvolvimento da autonomia e da autoestima, aquisição de controle de impulsos e capacidade para tolerar frustrações e angústias, dentre outros aspectos (SILVA, 2014).

Neste momento são estabelecidos e despertados os primeiros estímulos sensoriais e emocionais da criança, razão pela qual neste período é fundamental o contato entre mães e filhos. Por mais estranho que possa parecer, o direito de ficar preso com sua mãe é uma conquista dos bebês no Brasil. Certamente que nascer e viver cercado por grades não se traduz na infância ideal, mas por anos especialistas debatem o tema e concluem que ainda é melhor nascer preso do que sem mãe.

Claudia Stella (2009), ao trabalhar o impacto do aprisionamento materno na vida de crianças salienta que, ―a ausência paterna e/ou materna gera

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implicações específicas ao grupo familiar. Por exemplo, quando da ausência ou desaparecimento do pai, a família pode passar por problemas, como disputa do papel de autoridade; já a ausência materna pode levar a problemas afetivos‖. No caso da ausência materna pela prisão, ―o grupo familiar é atingido por outros aspectos como o estigma social, que pode influenciar as relações posteriores e a inserção de seus membros em outros grupos e meios‖.

Já a jornalista e ativista pelos direitos das mulheres Nana Queiroz (2016) apresenta dados de estudos feitos em 2003, por pesquisadores da Escola de Amamentação da Universidade de Columbia, nos Estado Unidos, que revelaram que crianças que foram criadas pelas mães, mesmo em situação de cárcere obtiveram vantagens a curto e a longo prazo. De modo geral, conforme a pesquisa, se comparados a bebês separados das mães logo após seus nascimentos, eles sofriam menos de ansiedade e depressão e a grande maioria deles desenvolveu senso de segurança e estabilidade comparável a crianças livres e bem cuidadas de classe média. Esta pesquisa mostrou ainda que o índice de reincidência criminal das mães que puderam cumprir a pena com seus bebês foi de 0%

O aprisionamento causa na interna uma ansiedade muito grande, um sentimento de inferioridade, impotência, menos valia, e tendo a presa a oportunidade de estar junto com seu filho, poderá aliviar essa situação, dedicando boa parte de seu dia em função do filho, e/ou um trabalho que estará diretamente ligada a ele, onde ela canalizará sua energia. (KUROWSKY, 1990, p.34)

Por outro lado, as crianças, merecedoras que são de cuidado diferenciado, de estímulos e de proteção, quando condenadas, por tabela, a passar seus primeiros meses ou ano de vida nesse ambiente intramuros, ficam impedidas de desenvolver plenamente e de forma sadia suas potencialidades. A rotina da instituição, com suas normas, frieza e obediência hierárquica marcam, certamente, a construção da sua personalidade por que os presídios, mesmo contando com a presença de bebês e crianças não perde sua característica de instituição que prende e inibe a idealização de novos horizontes, fazendo com que as crianças aprisionadas dividam com suas genitoras o sofrimento próprio da privação da liberdade.

Referências

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