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O conceito de geração: continuidades e descontinuidades

Outra chave interpretativa para o entendimento dos aspectos que envolvem a noção de juventude, principalmente quando referida a uma fase da vida, diz respeito ao conceito de geração. Esse conceito apresenta duas questões centrais: por um lado coloca a possibilidade de se pensar a herança cultural, inserindo a problemática da reprodução contínua ou não dos valores, códigos e normas da sociedade; e por outro, põe em evidência aspectos que definem a similaridade situacional no interior de um mesmo contexto histórico, social e cultural – similaridade que, em tese50, distingue as gerações umas das outras.

Contudo, do mesmo modo que o conceito de juventude o conceito de geração também possui ambiguidades e indeterminações. Para percebê-las, torna-se importante uma breve discussão da abordagem clássica do conceito e em seguida situar o modo como se conformam às relações entre as gerações nas sociedades ocidentais contemporâneas.

O trabalho de Karl Manheim, O Problema sociológico das gerações (1982), apresenta a forma como esse conceito tem sido historicamente utilizado nas ciências sociais. Manheim define geração de acordo com uma similaridade de situações num mesmo tempo histórico. Ou seja, seriam membros de uma geração indivíduos presentes no mesmo grupo etário e que por isso apresentam situação comum em determinado período histórico. Para o autor, uma geração se define pelo lugar ocupado por indivíduos contemporâneos no processo social: “os indivíduos que pertencem a uma geração, que nasceram no mesmo ano, são dotados, nessa medida, de uma situação comum na dimensão histórica do processo social” (MANHEIM, 1982, p. 72).

Nesse sentido, Manheim distingue a situação geracional da situação de classe, pois a última baseia-se numa estrutura econômica e de poder em transformação na sociedade (daí a possibilidade de um indivíduo situado numa classe poder ascender ou descender socialmente). Já a primeira é definida pelo ritmo biológico da vida humana: os fatores de vida e morte, um período limitado de vida, o envelhecimento. No entanto, Manheim descarta a possibilidade de explicar o fenômeno da situação de determinada geração única e exclusivamente por esses fatores biológicos. Ao contrário, se o fenômeno sociológico das gerações está baseado, em última instância, no ritmo biológico de nascimento e morte, isso não significa necessariamente que ele possa ser reduzido a esse ritmo. Isto é, embora o fenômeno das gerações só possa existir porque está diretamente vinculado ao ciclo biológico da vida humana, ele pode ser sociologicamente equacionado (FORACHI, 1972), uma vez que possui certas características peculiares a si próprio que, de modo algum, são emprestadas do ritmo biológico51. Assim, de acordo com Manheim, “não fosse pela existência

de interação social entre seres humanos, pela existência de uma estrutura social definida, e pela história estar baseada em um tipo peculiar de continuidade, a geração não existiria

50 Em tese, porque, como veremos a seguir, esta similaridade não implica necessariamente a cristalização de identidades geracionais. Dependendo do ritmo de aceleração das transformações de uma sociedade, as gerações podem não criar para si identidades que as distingam umas das outras (MANHEIM, 1982).

51 Essas afirmações de Manheim sobre o conceito de geração podem ser estendidas para outros conceitos, como infância, juventude ou adolescência e envelhecimento, que, se por um lado estão vinculados ao ciclo biológico dos seres humanos – fator universal para todas as sociedades e culturas –, por outro, a ele não se resumem e não são por ele determinados, recebendo de cada sociedade elaborações culturais distintas.

como um fenômeno de localização social; existiria apenas nascimento, envelhecimento e morte” (MANHEIM, 1982, p. 72).

O conceito de geração tem como definição básica uma similaridade de situações no processo histórico e social. Entretanto, a similaridade não é dada somente pela contemporaneidade, mas, sobretudo, pela possibilidade que os indivíduos pertencentes à mesma geração têm de compartilhar experiências específicas, predispondo-os a certos modos característicos de pensamentos, ações e comportamentos definidos pelos contextos históricos, sociais e culturais em que estão situados. Nesse sentido, Manheim registra que a mera contemporaneidade cronológica não pode por si própria produzir uma situação de geração real. Somente quando vinculados a uma região geográfica, histórica e cultural comum, é que os indivíduos viverão a similaridade de situação e estarão, por isso, vinculados a uma geração específica, distinguida das demais. O autor toma como o exemplo o fato de que seria impossível pensar que havia similaridade de situação entre os jovens da China e da Alemanha por volta de 1800.

Contudo, a similaridade situacional de uma geração também é compreendida por Manheim em termos etários. Em primeiro lugar, pelo fato já mencionado de que as gerações se sucedem umas às outras e constantemente surgem novos participantes no processo sociocultural enquanto ao mesmo tempo antigos participantes desse processo estão continuamente desaparecendo. O fenômeno sociológico das gerações pode ser visto, em primeiro plano, como a sucessão de grupos etários. E essa questão nos leva ao ponto seguinte: não é porque os indivíduos nascem, crescem, envelhecem e morrem num período de tempo relativamente coincidente que se coloca a questão da similaridade de situação, mas porque a experimentação de um contexto sociocultural similar adquire significado singular para determinado grupo etário na medida em que os indivíduos nele presentes estão numa posição comum para experienciar os mesmos acontecimentos. Assim, Manheim, explica o fato de que grupos etários diferentes convivendo num mesmo contexto histórico, cada um num momento específico de seu ciclo vital, vivenciem acontecimentos similares de modo diferenciado, não se colocando, portanto, numa mesma situação de geração.

Outra dimensão já mencionada do fenômeno sociológico das gerações, mas não discutida, é o processo pelo qual se conforma a transmissão da herança cultural de uma geração para a outra. Segundo Manheim, o fato de as gerações se sucederem no tempo histórico implica que a criação e acumulação culturais nunca são realizadas pelos mesmos indivíduos. O surgimento recorrente e contínuo de novos grupos etários na sociedade põe em evidência a necessidade de transmissão contínua da herança cultural acumulada, bem como a criação de “elementos originais” por parte dos grupos etários recentes52.

A juventude assume então um papel significativo no fenômeno sociológico das gerações. De acordo com Manheim, é na juventude que pode se constituir o que ele denomina “estilo geracional”. É nessa etapa da vida que o indivíduo tem a possibilidade de problematizar a herança cultural transmitida. A reflexão e crítica dos padrões culturais recebidos se dá

52 Configura-se aqui outra característica peculiar do conceito de geração. Esse conceito não implica via de mão única, em que os elementos transmitidos pela geração mais velha são exclusivamente ou reproduzidos ou questionados e problematiza- dos pela geração mais nova. Ao contrário, como sugerem Manheim e Landowski, o conceito apresenta paradoxalmente esses dois processos. Sobre essa questão, afirma o segundo autor: “a lógica gradual e não categorial, que sustenta o dis- curso das gerações possibilita figurar igualmente bem (e frequentemente num mesmo movimento) tanto a distância entre os termos opostos como os laços que os unem. A noção de geração se apresenta assim como um operador de junção, ao mesmo tempo disjuntivo e conjuntivo, criador de desvios e produtor de continuidade” (LANDOWSKI, 1992, p. 53).

principalmente na juventude, momento em que o indivíduo penetra num mundo em que os hábitos, costumes e valores são diferentes dos vivenciados e apreendidos até então: é especialmente na juventude que os “problemas da vida” são localizados em um “presente” e a partir daí podem ser experienciados como tais. Para o autor, as experiências só se tornam relevantes quando são “concretamente” atribuídas ao presente. Daí Manheim (1982, p. 83) afirmar que a “modernidade” da juventude “consiste em estar mais próxima dos problemas atuais”. A nova geração vivencia potencialmente as transformações sociais, culturais e tecnológicas presentes na sociedade. É ela que tem a possibilidade de desenvolver “contatos originais” com a cultura, renovar e reformular a sociedade na qual paulatinamente se dá conta de que está inserida. Em outro ensaio, O problema da juventude na sociedade moderna, Manheim (1968, p. 74) define a juventude como “uma força latente da sociedade”, um “agente revitalizador”, isto é, “o pioneiro predestinado de qualquer mudança da sociedade”.

Estudos recentes têm enfatizado esse caráter contemporâneo da juventude. Margulius (1998), por exemplo, afirma que os jovens podem ser entendidos do ponto de vista dos adultos - ponto de vista comumente assumido pelos pesquisadores - como nativos do presente, uma vez que vivenciam com maior potencialidade os problemas e questões colocadas pela sociedade. No entanto, se a geração mais nova tem como atributo principal o fato de que vive potencialmente as questões colocadas pela sociedade, isso não quer dizer que os indivíduos ou grupos que a compõem elaborem de maneira comum as experiências de contato com esses problemas. Ao contrário, numa mesma geração podem ser encontradas formas distintas de elaboração e construção tanto da herança cultural recebida quanto das características similares no processo histórico, definidoras de uma situação geracional. Desse modo, para Manheim (1982, p. 87),

[...] os jovens que experienciam os mesmos problemas históricos concretos fazem parte da mesma geração real; enquanto aqueles grupos dentro da mesma geração real, que elaboram o material de suas experiências comuns através de diferentes modos específicos, constituem unidades de gerações separadas.

Ou seja, do mesmo modo que a juventude, compreendida enquanto fase da vida, configura “aparente unidade” logo desfeita quando se reconhecem as diversas formas de se vivenciar essa fase, a noção de geração também coloca essa ambiguidade entre unidade e diversidade. Como demonstra o autor, se por um lado uma “geração real” pode ser entendida pelo conjunto de indivíduos que experienciam um mesmo contexto histórico, social e cultural; por outro, tais indivíduos, sozinhos ou em grupos, se diferenciam entre si de acordo com a elaboração distinta de suas experiências de contato com esses contextos. Assim, em uma mesma geração real – definida de acordo com a similaridade de situações num mesmo contexto – configuram-se grupos diversos ou, nos termos do autor, unidades geracionais distintas.

As relações intergeracionais nas sociedades