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O conceito de posse

No documento ROBERTA CRISTINA PAGANINI TOLEDO (páginas 48-55)

Pela análise do artigo 1.196 do Código Civil, a posse nada mais é do que a exteriorização do direito de propriedade, através do exercício de fato de alguns

dos poderes constitutivos do domínio. Na realidade, o Código Civil oferece um conceito de possuidor, e não de posse.

Primeiramente, “constitui, pois, a posse uma situação de fato, na qual alguém mantém determinada coisa sob a sua guarda e para o seu uso e gozo, tendo ou não a intenção de considerá-la como de sua propriedade” 94.

Em outras palavras, “na sistemática de nosso direito civil, a posse não requer nem a intenção de dono nem o poder físico sobre o bem, apresentando-se como uma relação entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a função sócio- econômica desta”.

O Projeto de Lei nº 6.960/200295 pretende modificar alguns artigos do Código Civil, por sugestão do jurista Joel Figueira Junior, de modo a se promover o aperfeiçoamento da redação do acima citado artigo 1.196. Acompanhando as teorias sociológicas de Silvio Perozzi, Raymond Saleilles e Hernandez Gil, já claramente expostas, tentar-se-á aproximar esse conceito de posse, tal como se apresenta, dessa função social tão prelecionada no mundo contemporâneo, revestindo o possuidor do poder fático de ingerência sócio-econômico sobre a coisa.

No direito brasileiro, para que haja posse deve haver a conjunção dos seguintes elementos: corpus, animus, sujeito capaz, objeto e uma relação de dominação entre o sujeito e o objeto.

94 Arnold Wald, Curso de direito civil brasileiro. Direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 27 95

“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem o poder fático de ingerência sócio-econômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse.”

O corpus se caracteriza pela exterioridade da propriedade no estado externo, normal das coisas, sob o qual desempenha a função econômica de servir e pelo qual o homem conhece e distingue quem possui e quem não possui. O animus, já incluído no corpus, trata-se do modo como o proprietário age em face do bem de que é possuidor. O sujeito capaz poderá ser pessoa natural ou jurídica,96 e o objeto, coisa, corpórea ou incorpórea. Finalmente, a relação de dominação é um ter da coisa por parte do sujeito97.

Em decorrência desses aspectos, a posse, no direito brasileiro positivo, nem exige a intenção de dono nem reclama o poder físico sobre a coisa. É relação, de fato, entre a pessoa e a coisa, tendo em vista sua utilização econômica, aclarando a visibilidade do domínio.

Na legislação francesa, a posse se caracteriza pela necessidade da intenção do possuidor de agir por sua própria conta, com animus domini. Na falta deste, haverá simples detenção98. Entretanto, a existência do caráter volitivo é relativa99, admitindo-se, para tanto, prova em contrário. Assim, a tão difícil prova do

animus domini, questão tão árida, é resolvida por uma presunção100.

96 Enunciado 236 do Conselho da Justiça Federal: “236 – Art. 1.198. Considera-se possuidor, para todos os efeitos legais, também a coletividade desprovida de personalidade jurídica”.

97

Maria Helena Diniz, Curso. cit. p. 43. 98 Manoel Rodigues, A posse. cit. p. 60. 99

“Art. 2230 – Admitir-se-á sempre que alguém possui para si, e a título de proprietário, se não ficar provado que começou a possuir por um outro.”

O Código Civil alemão adota claramente a teoria objetiva da posse, quando estipula, na primeira parte do parágrafo 854101, que a posse se adquire pelo exercício do poder de fato sobre a coisa.

Todavia, essa posição não é pacífica, pois há os que entendem que o poder de fato é o corpus savigniano, e não o elemento material da destinação econômica do bem, proposto por Rudolf von Ihering. A propósito, Guillermo L. Allende aduz que “sostengi rotundamente sin un ápice de duda, aun cuando cre estar solo en esta tesis, que el Código Alemán consagra expressamente la teoria de Savigny y nada más que la de Savigny. (...) Qué hay la teoria de Ihering e sea la exterioridade de la propriedad y del fin econômico en norma transcripta? Podemos assegurarlo: nada, absolutamente nada... El corpus d e Savigny es el corpus del Código Alemán”102.

Em Portugal, a posse, definida pelo artigo 1.251.°103do Código Civil, ao tornar evidente a imprescindibilidade do animus domini, uma vez considerada a qualidade da vontade do detentor, filia-se à teoria subjetivista. Possuidor, no contexto dessa legislação, é aquele que exerce o poder de fato sobre a coisa, o

corpus, determinado por um juízo volitivo subjetivo, que é o animus. Manoel

Rodrigues considera que “no sistema do direito português, a posse é a retenção ou fruição do direito de propriedade, dos direitos reais que implicam retenção ou fruição, e dos direitos pessoais, que recaem sobre as coisas e se exercem no interesse do

101

“§854 (Aquisição da posse imediata) A posse de uma coisa é adquirida pela obtenção do poder de fato sobre a coisa. O consentimento do possuidor anterior e do adquirente, basta para a aquisição quando o adquirente estiver em situação de exercer o poder sobre a coisa.”

102

Guillermo L. Allende, Panorama de derechos reales. Buenos Aires: La Ley, 1967, p. 354-57. 103

“Artigo 1251.° (Noção) Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”

seu titular”104. A posse é, então, a exteriorização da propriedade ou de outro direito real. Podendo ser exercida pessoalmente ou por intermédio de outrem, desde que exista, de acordo com o artigo 1253.°105, a presunção relativa a favor do possuidor.

Assevera Durval Ferreira:

“Com efeito, se há mera detenção (p. ex. do mandatário), não há qualquer posse (seja natural ou civil). E, se a relação de facto de senhorio preenche os pressuposto da ‘posse´, haverá pura e simplesmente posse. E, se não preenche, pura e simplesmente, não haverá.”

Segue-se o direito espanhol, amparado na teoria savigniana, pois seu artigo 430106 pondera que a posse será civil para aquele que desfruta de uma coisa e tem a intenção de haver a coisa como direito seu. A posse natural é mera detenção, constituindo o divisor de águas entre essas duas espécies a presença do

corpus e do animus. Isso é assim por que o artigo 447107 do Código Civil espanhol dispõe que só a posse exercida com animus domini poderá servir de título para a aquisição do domínio.

104

Manoel Rodrigues, A posse. cit. p. 101. 105

“Art. 1252.

1. A posse pode ser exercida tanto pessoalmente como por intermédio de outrem.

2. Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.° 2 do artigo 1257.°

106 “Artículo 430. Posesión natural es la tenencia de una cosa o el disfrute de un derecho por una persona. Posesión civil es esa misma tenencia o disfrute unidos a la intención de haber la cosa o derecho como suyos.”

107

“Artículo 446. Sólo la posesión que se adquire y se disfurta en concepto de dueno puede servir de título para adquirir el dominio”.

No Código Civil italiano, a posse está regrada no artigo 1.140108. Entretanto, há divergências doutrinárias quanto à filiação do regime possessório adotado. Arturo Valencia Zea expressa que “la voluntad de ejercer la pripriedad (animus rem sibi habendi) en la doutrina de Savigny tenía um sentido simplesmente interno, es decir, era un elemento puramente subjetivo. En cambio, en el nueno sistema italiano la voluntad de ejercer la propriedad tiene un sentido no solo interno, sino también objetivo, esto es, no se trata de voluntades internas, sino de voluntades susceptibles de exteriorizerse, de objetivarse, de ser perceptibles por los demás”109.

Nessa esteira, os artigos 1.198110 e 1.208 do Código Civil brasileiro oferecem, primeiramente, a figura do fâmulo da posse, aquele que, em virtude de subordinação ou dependência econômica, exerce sobre o bem a posse, em nome de terceiro, e este, embora possua o elemento corpus, notadamente prescinde dos demais. Este tem a posse natural que se baseia na mera detenção, simples estado de fato de permanecer com um bem111. Em segundo lugar, a impossibilidade de os atos de mera permissão ou tolerância produzirem posse, pois derivam de uma autorização revogável, um comportamento omisso e consciente, com fundamento no bom convívio social112, falta a esse caso o animus.

108

“Art. 1140 (Posse) A posse é o poder sobre a coisa que se manifesta em uma vontade correspondente ao exercício da propriedade ou de outro direito real. A posse pode ser exercida diretamente ou por meio de uma outra pessoa que tenha a detenção da coisa.”

109

Arturo Valencia Zea, La posesión. Editorial Temis: 1978, p. 150.

110 “Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, se achando em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste, em cumprimento de ordens ou instruções suas.”

111

Tito Fulgêncio, Da posse e das ações possessórias. Rio de Janeiro: Forense, 1978, vol I, p. 28. 112 Maria Helena Diniz, Curso. cit. p. 42.

No direito italiano os atos realizados por tolerância também não podem servir de fundamento para a aquisição da posse113.

A posse é, pois, o exercício de fato de um dos poderes inerentes ao direito de propriedade, mas nem sempre pode desenvolver-se concomitantemente com esse direito, pois somente quando o possuidor é o próprio dono se pode afirmar que a posse é o sinal exterior do direito de propriedade.

Na França, a posse é o exercício de um direito, mas só do direito de propriedade. A detenção estabelecida pelo artigo 2232 do Diploma Civil desse país fora colocada de lado, no entanto a jurisprudência considerou-a suficiente para sua defesa em face dos atos de esbulho, não com fundamento na posse precária, mas, sim, para reparar um fato contrário à paz pública114.

Mazeaud e Mazeaud115 ressalta:

“Le corpus est le fait d’avoir metériellement le bien en son pouvoir et d’étre à même d’accomplir sur lui des actes matérieles de détention d’usage de transformation”.

Pelos motivos acima expostos, pode-se afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro recepcionou a teoria objetiva, sem deixar de acrescentar

113

“Art. 1144 (Atos de tolerância) Os atos realizados por tolerância não podem servir de fundamento à aquisição da posse. 114

Manoel Rodigues, A posse. cit. p. 60.

elementos úteis provindos da teoria subjetiva, bem como das teorias sociais. A posse é, enfim, a visibilidade da propriedade, desde que esta atenda à sua função social, o que será analisado oportunamente.

No documento ROBERTA CRISTINA PAGANINI TOLEDO (páginas 48-55)