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2 CULTURA DIGITAL E MULTILETRADA: UMA REALIDADE

2.2 O conceito de multiletramentos

A discussão sobre a quantidade de informação é de extrema importância (como fizemos nos parágrafos anteriores), mas a sua “qualidade” gera um outro

debate ainda mais robusto. Qualidade não no sentido de valor, mas sim de característica. Como essa informação está sendo apresentada para os nossos jovens de hoje em dia? De que maneira eles estão sendo treinados para converter essa informação em conhecimento? A resposta da segunda pergunta não pode preceder a primeira (e infelizmente não é isso que observamos dentro dos contextos escolares atuais). Treinamos o nosso jovem do século XXI com as mesmas estratégias dos séculos anteriores (quando o advento da internet ainda não havia surgido). Precisamos, portanto, retomar a discussão sobre a disposição desse conhecimento. Não vivemos mais numa era de textos exclusivamente escritos. Logo, precisamos incorporar às nossas práticas os conceitos de multissemiose e multiletramento.

Em outras palavras, precisamos ampliar os horizontes de comunicação e expressão de conhecimento que tínhamos no passado. Hoje, além de textos escritos, somos obrigados a extrair informação e conhecimento de imagens, gráficos, tabelas, músicas, animações etc. que exigem um preparo diferenciado. Tais habilidades estão sendo cada vez mais cobradas da nossa sociedade (de maneira indireta e muitas vezes implícita), porém observamos um grupo de pessoas que vem sendo “testada” a respeito da obtenção destas tais “habilidades” de leitura de “diversos formatos”: trata-se das provas de vestibular que selecionam estudantes para adentrar à universidade. Cada vez mais as questões destes concursos se apresentam de maneira diferenciada (fugindo da tradicional “pergunta e resposta”). O domínio do conteúdo programático ainda é uma exigência, porém, se o candidato não souber interpretar as questões, poderá errar um item mesmo tendo conhecimento sobre o assunto perguntado.

Essa preocupação com as distintas formas de se compartilhar conhecimento surge a partir da aceitação de que a cultura de cada grupo social influencia na forma de aquisição, processamento e transmissão dessa competência. O primeiro conjunto de estudiosos que se debruçou sobre essa temática foi intitulado de New London Group ou Grupo de Nova Londres (GNL) – formado por pesquisadores de origem estadunidense, britânica e australiana. No ano de 1996, estes especialistas em linguística e educação reuniram-se em New

Hampshire na cidade de Nova Londres nos EUA para, juntos, cunharem o termo

Designing Social Futures (Uma pedagogia dos multiletramentos: desenhando futuros sociais).

O GNL propunha que esse debate deveria ser incorporado ao ambiente escolar, haja vista o seu papel em reforçar apenas um padrão de estrutura do conhecimento. Em outras palavras, é a escola que mantém esse padrão letrado ano após ano. É a escola que homogeneíza os conteúdos e as formas de transmiti-los e ignora a existência de outras possibilidades. Isso pode ser feito de maneira consciente ou não. Porém, independentemente disso, o fato é que esta negligência à diversidade cultural, dentro do ambiente escolar, acaba por nos colocar em um círculo vicioso. Logo, da mesma forma que a escola nos coloca nesta situação, também é o ambiente escolar que pode nos retirar dela (CAZDEN et al., 1996).

Rojo (2008), baseando-se nos estudos do GNL, estimula a ideia de que todas as expressões culturais são passíveis de estruturar conteúdos e formas de compartilhamento de conhecimento. Por ser uma pesquisadora brasileira e conviver com a diversidade e desigualdade sociais presentes aqui no Brasil, Rojo coloca como emergente a temática que vem sendo discutida nos parágrafos anteriores.

O conceito de multiletramento surge justamente a partir da aceitação desta diversidade cultural. Rojo e Moura (2012, p. 13) o definem da seguinte maneira:

Diferentemente do conceito de letramento (múltiplo), que não faz senão apontar para a multiplicidade e variedade das práticas letradas, valorizadas ou não nas sociedades em geral, o conceito de multiletramento — é bom enfatizar — aponta para dois tipos específicos e importantes de multiplicidade presentes em nossas sociedades, principalmente urbanas, na contemporaneidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio dos quais ela se transforma e se comunica.

Em outras palavras, não basta variar a maneira de se comunicar, transmitir ou compartilhar conhecimento. Há uma variação do próprio conhecimento mediante a caracterização cultural do grupo em questão. Rojo (2012, p. 10) ainda acrescenta às características dos multiletramentos:

[...] eles são interativos; mais que isso, eles são colaborativos; eles fraturam e transgridem as relações de poder estabelecidas, em especial as relações de propriedade (das máquinas, das ferramentas, das ideias,

dos textos (verbais ou não)); eles são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagens, modos, mídias e culturas). Assim sendo, o melhor lugar para eles existirem é “nas nuvens” e a melhor maneira de se apresentarem é na estrutura ou formato de redes (hipertextos, hipermídias).

Talvez a aceitação deste conceito não seja o problema, mas colocá-lo em prática, uma vez que grupos sociais se impõem sobre outros, é que é o maior desafio. Infelizmente vivemos num coletivo em que certas práticas e conteúdos são mais valorizados do que outros. E é justamente este cenário que acaba por atrapalhar o avanço desta nova área de pesquisa.

Porém, contraditoriamente ao que foi afirmado anteriormente, o avanço desse multiletramento vem contribuindo para que as tecnologias de informação venham se desenvolvendo e popularizando (CAZDEN et al., 1996). Se observarmos a data da citação utilizada, poderíamos desacreditar no que foi afirmado, entretanto resolvi utilizá-la ainda assim com o objetivo de mostrar que o GNL há mais de vinte anos estava correto. Outras referências, remotas como Canclini (1989), ou mais recentes como os já citados Rojo e Moura (2012) concordam na afirmação de que as tecnologias dependem dessa hibridização da comunicação (e vice-versa). Digo isso no sentido de que hoje, a popularização da tecnologia, por meio da utilização de smartphone, tablets etc., dependem da utilização de diversos tipos de linguagem.

Desde a fotocopiadora, passando pelo videocassete, videoclipes e videogames, percebemos uma grande transformação no que se refere à maneira de se comunicar, se entreter, se manifestar. Esse movimento ganha uma dimensão ainda mais abrangente quando entendemos o papel da urbanização para a humanidade. O que antes da urbanização era fácil de perceber como a diferença entre o culto e o popular hoje já se torna mais difícil. Não está se afirmando que não haja grupos sociais específicos e imensas desigualdades dentro das grandes cidades, mas sim que há uma mistura (um hibridismo) entre esses adjetivos que antes eram antagônicos na teoria e prática. A urbanização contribuiu para essa hibridização cultural por mesclar etnias e classes sociais no mesmo local, embora segregados de acordo com os bairros, por exemplo. A imigração é um fato importante dentro deste processo, pois cada grupo que se estabelece no ambiente urbano traz consigo sua bagagem cultural que começará a compor a cultura deste novo local que sofrerá influência de diversos

outros grupos. Isso pode ser percebido na culinária, na arte, na música, na moda etc. (CANCLINI, 1989).

Outro item importante dentro desta discussão é a forma como são feitas as manifestações (de todos os gêneros). Se um grupo quiser se expressar e atingir um número maior de pessoas não poderá se limitar a utilizar os meios de comunicação tradicionais. Cartazes ou aglomerações com gritos ensaiados já não possuem a mesma eficácia se não combinados com outras formas de se comunicar advindas do desenvolvimento tecnológico, bem como da variação de linguagem utilizada. É necessário, nos dias atuais, relacionar-se com a democracia audiovisual na qual o real é produzido pelas imagens geradas pelas diversas mídias (CANCLINI, 1989).

Para prosseguir com a discussão dentro desta temática é de extrema importância conceituarmos multissemiose e textos multissemióticos. Se os multiletramentos se preocupam com a forma de apresentação e acima de tudo com o conteúdo a ser trabalhado, a multissemiose trata dos símbolos utilizados. Dentro deste contexto tecnológico essa é uma área imprescindível, haja vista a flexibilização que a utilização destes símbolos sofreu.

Moita-Lopes e Rojo (2004) definem textos multissemióticos como sendo o extrapolamento do uso restrito da linguagem escrita alfabética. Cores, imagens, sons, design etc. fazem parte da multissemiose dos textos atuais, o que ganhou muita relevância e popularidade com o advento da tecnologia. Isto está disponível na tela dos computadores, tablets, smartphones e até dos textos impressos. Logo, o letramento tradicional (da letra) torna-se insuficiente não só para analisar questões de vestibular, mas também para a interpretação de todas as formas de comunicação nas quais estamos inseridos. É de extrema importância investirmos também no letramento visual, auditivo etc.

Podemos exemplificar o que foi anteriormente escrito através de temas pertinentes à Geografia, tais como tempo e clima. Escolhi este assunto, pois saber as condições climáticas de um local e também as condições do tempo em determinado período interessa grande parte da população que não deseja passar frio, calor ou ser surpreendido por uma chuva numa simples ida ao trabalho ou ainda numa viagem de lazer.

É possível ler em um jornal impresso um texto escrito com as condições de umidade e temperatura de determinada cidade. Exemplo: “Hoje na cidade de

Palmas não há possibilidade de chuva e as temperaturas oscilam entre 22º e 33º C (Celsius)”. Porém, esta mesma informação poderia ser fornecida através de outro tipo de linguagem muito peculiar da Geografia: mapas e infográficos.

Figura 1 – Previsão do tempo no Brasil

Fonte: Projeto Jimboê. Disponível em:

http://www.editoradobrasil.com.br/jimboe/galeria/imagens/index.aspx?d=geografia&a=5&u=3&t=i magem. Acesso em 23 jul. 2019.

A figura 1, que apresenta um infográfico, utiliza texto escrito, desenhos e cores para transmitir a mesma informação. Atentando-se à cidade de Palmas (escolhida no exemplo anterior), é possível perceber que não há chance de chuva, pois o desenho de um “sol” foi colocado próximo à cidade (o que, segundo a legenda, significa “céu claro”). As temperaturas estavam escritas (22º e 33º C) e as cores de fundo (tons de laranja) diferenciavam a região de Palmas (mais quente) de outras mais frias (cuja cor de fundo era azul).