• Nenhum resultado encontrado

3 AS RELAÇÕES DE CONCUBINATO NA HISTÓRIA ECONÔMICO-SOCIAL DO

3.1 O concubinato no ordenamento jurídico brasileiro

Importa ressaltar que até a advento da Constituição Federal de 1988, as relações que não se edificavam sob a bênção do padre, anteriormente à laicização do Estado, ou sob a égide da lei civil, eram denominadas de concubinato.

No entanto, posteriormente, passou-se a diferenciar as formas de concubinato, tomando-se por paradigma o impedimento de contrair matrimônio. Assim, qualificava-se como concubinato puro, a relação em que os indivíduos não contraíam matrimônio, mas não possuíam impedimento para casar. A Carta Magna consagrou tais uniões como união estável em seu artigo 226, § 30, conforme explicitado. Após a promulgação das Leis n0 8.971/94 e 9.278/96 passou-se a utilizar os termos de companheiro e convivente, restringindo a carga discriminatória do termo concubino(a) somente a quem mantenha o concubinato qualificado como impuro ou adulterino, assim considerado em razão do impedimento de um ou ambos os indivíduos em contrair matrimônio, notadamente em razão de ser(em) casado(s).

Conforme demonstrado, o concubinato, embora tamanha fosse sua apuração factual e considerada tolerância social, no âmbito do discurso jurídico, não encontrava qualquer menção, a não ser para desfazimento de negócio jurídico.

As Ordenações Filipinas, vigente no Brasil até a promulgação do Código Civil de 1916, em seu Livro IV, Título LXVI3 consta a possibilidade da esposa revogar a doação ou

3 Estabelecia o Livro IV, Título LXVI das Ordenações Filipinas: “Se algum homem casado der à sua barregã alguma cousa móvel, ou de raiz, ou à qualquer outra mulher, com que tenha carnal affeição, sua mulher poderá revogar e haver para si a cousa que assi foi dada; e mandamos, que seja recebida em Juízo a demandar a dita cousa sem authoridade e procuração do marido (1), quer a esse tempo seja em poder do marido (2), quer apartada delle; e essa cousa que ella assi demandar e vencer, queremos que seja sua própria in solidum, sem seu marido

venda feita por seu marido à, segundo a nomenclatura utilizada pelas Ordenações, sua barregã.

O Código Civil de 19164 também não reconhece direitos ao que considera família ilegítima, de modo a impedir doações e disposição de última vontade de homem casado à concubina (SILVA, 2013, p. 150), como se pode inferir a partir dos artigos 248, IV; 1.177 e 1.719, III, dentre outros.

Nesses casos, nota-se o propósito do legislador em proteger apenas as famílias constituídas sob a égide do matrimônio. Em decorrência disso, tanto a doutrina quanto os tribunais de instâncias superiores, ao perceberem a família somente a partir do casamento, quedaram-se inertes também a respeito das relações de concubinagem.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, na década de 1960, editou súmulas que deram início à discreta mudança no que toca o reconhecimento de efeitos jurídicos às relações extramatrimoniais, a despeito das críticas quanto à violação de princípios constitucionais.

A Súmula 380 da Suprema Corte, editada em 1964, estabelece que comprovada a sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum. Percebe-se que são reconhecidos direitos patrimoniais em considerável esforço para se realizar a justiça ao se afastar a hipótese de enriquecimento ilícito de um dos indivíduos. No entanto, não há reconhecimento de uma entidade familiar, mas tão somente de uma sociedade de fato. Segundo Marcos Alves da Silva (2013, p. 152), o que o Direito entrevê é, no máximo, o esforço comum entre duas pessoas, sob o nomem iuris de sociedade de fato, desprezando totalmente a razão de ser da relação estabelecida entre elas.

Paulo Luiz Netto Lobo (2002, p. 09) reconhece o avanço da supracitada súmula apenas quando de sua edição, visto que atualmente seu texto refere-se às relações afetivas como se se tratasse de sociedade mercantil ou civil.

Neste sentido, a aplicação da súmula em comento viola não só o princípio da afetividade, como também o princípio da dignidade humana, ao julgar demandas concernentes a assuntos de família em varas cíveis, dispensando-lhes tratamento jurídico como se tratassem

haver em ella parte, e que possa fazer della tudo o que lhe aprouver, assi e tão perfeitamente como se não fosse casada. (...) Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p870.htm. Acesso em 05/05/2014

4

Código Civil de 1916, art. 248: “Independentemente de autorização, pode a mulher casada: (...) IV – Reivindicar os bens comuns móveis ou imóveis doados, ou transferidos pelo marido à concubina”. O artigo

1.177 do mesmo diploma estabelecia que: “A doação de cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo

outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal”. Por

sua vez, referido código dispunha em seu artigo 1.719: “Não podem também ser nomeados herdeiros, nem

os demandantes de sócios de empresa a partilhar lucros, em clara conotação de objetificação dos indivíduos e de sua relação amorosa.

Assim, a utilização da Súmula 380 renega a importância da família considerada como ambiente propício ao desenvolvimento da personalidade e autonomia do ser humano, em um cenário em que se tem a dignidade da pessoa humana como base axiológica dos direitos fundamentais.

No mesmo ano de 1964, o Supremo Tribunal Federal publicou a Súmula 382 que tem por conteúdo: a vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato.

Nesse contexto, importa trazer à baila precedente do Superior Tribunal de Justiça de elevado teor vanguardista ainda nos anos 2000, em que se reconhece a concomitância de famílias, a matrimonial e a extramatrimonial, ensejando a divisão do seguro de vida entre esposa e concubina. Em seu voto, o Ministro relator Aldir Passarinho Junior decidiu5:

... inobstante a não convivência more uxorio, Iracilda Rosaria Nascimento teve com o extinto três filhos, mostrando que a relação entre ambos era estável e duradoura. (...) Mas, de outra parte, inegável que ele mantinha-se também vinculado ao lar conjugal, permanecendo na convivência de sua esposa, Noélia, e seus outros cinco filhos. Importante ressaltar que não se cuidava de mera união de aparências. (...) Impossível, assim, tanto ignorar as normas legais acima reproduzidas, fortes na proteção dos direitos da esposa, como também desconhecer-se, em face da situação específica dos autos, a relação concubinária estável, geradora de prole comum, que merece algum amparo, dentro da compreensão mais atual sobre a matéria, inclusive, agora, em face do disposto no artigo 226, parágrafo 30, da Constituição de 1988. (grifos no original)

Com a devida ressalva no que diz respeito à discordância quanto ao ponto de equiparação das relações de concubinato à união estável, pois que dois institutos diferentes, enaltece-se a decisão que, calcada no critério de equidade, atingiu o maior grau de justiça.

O Código Civil de 19166 estabelecia em seu artigo 363, I o direito de filhos, à época designados como ilegítimos, demandarem contra seus pais ou herdeiros o reconhecimento de filiação, se ao tempo da concepção, a mãe vivia em concubinato com o pretenso pai. Nesse diapasão, percebe-se que o efeito jurídico do concubinato não vislumbra o reconhecimento de uma entidade familiar, mas se efetua por via indireta, na medida em que a

5

STJ - REsp: 100888 BA 1996/0043529-4, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 14/12/2000, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 12/03/2001 p. 144 LEXSTJ vol. 142 p. 105 RDTJRJ vol. 71 p. 114 RT vol. 792 p. 214)

6

Código Civil de 1916, art. 363: “Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, ns I a VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação: I – se o tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretenso pai. Os incisos II e III cuidam das demais possibilidade de reconhecimento de filiação.

comprovação da relação de concubinato constituía meio para atingir um fim, qual seja, o reconhecimento do estado de filiação.

Destaque-se que em meados do século XX não havia a possibilidade de exame de DNA como prova de paternidade. Assim, segundo Marcos Alves da Silva (2013, p. 151) a prova da existência do concubinato não trazia em si presunção pater is est, própria do casamento, mas consubstanciava a praesumptio facti das relações sexuais.

A Súmula 447 também editada pelo Pretório Excelso estabelecia que é válida a disposição testamentária em favor de filho adulterino do testador com sua concubina.

Ressalte-se que ao tempo de sua publicação, não havia vedação a tratamento desigual e discriminatório entre filhos ao contrário do que estabeleceu a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 227, § 6º.

Assim, anteriormente a Carta Magna, tendo a relação de concubinato assumido caráter de meio de prova para o reconhecimento de filiação paternal, estabeleceram-se critérios para o seu reconhecimento, sendo eles a continuidade das relações, notoriedade e fidelidade da mulher. (SILVA, 2013, p. 154)

Como o estado de filiação dependia da comprovação do concubinato e este possuía como critério de reconhecimento a fidelidade da mulher, posto em juízo, acabava por expô-la ao macular sua imagem pelo demandado, na tentativa de afastar a presunção de paternidade.

Nota-se que permanece a resistência em amparar legalmente as uniões paralelas, resguardada em valores machistas em que se reputa a concubina como provisória condição de reprodutora. (SILVA, 2013, p. 154).

O Código Civil vigente, em seu artigo 1.727, tratou de definir o concubinato como as relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos de casar. A definição dessa relação tem por finalidade diferenciar o concubinato da união estável.

Entretanto, o legislador limitou-se apenas em conceituar as relações paralelas, prosseguindo com a tradição pátria de condenar à invisibilidade as famílias paralelas, a não ser que seja alegado o desconhecimento acerca do impedimento de casar. Nesse ponto, Maria Berenice Dias (2011, p. 51) aponta o risco em se perquirir boa ou má-fé em relacionamentos, em razão da natureza essencialmente subjetiva de tal atividade.

Em que pese o repúdio do legislador em reconhecer os vínculos formados paralelamente ao matrimônio, tais reprovações não coibiram a ocorrência dessas relações, de

modo que o Estado, em seus papéis de legiferante e de juiz, nega a força construtiva dos fatos e atua como se aqueles vínculos não repercutissem no mundo jurídico.

Equiparar o concubinato à sociedade de fato consiste em uma mentira jurídica (DIAS, 2011, p. 52), na medida em que as pessoas que compõem a relação estão interligadas por um laço de afeto, o que não guarda qualquer semelhança com o affectio societatis relativa ao direito societário.

Ocorre que este entendimento é ainda corrente minoritária no país, de modo que, lamentavelmente, insistem os Tribunais de instâncias superiores, notadamente o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, em não reconhecer efeitos jurídicos às ditas relações de concubinato, sob os argumentos, dentre outros, de situação não albergada pela legislação vigente ou de supremacia do preceito monogâmico do Estado, anteriormente combatido. Em contrapartida, com esse entendimento, o Poder Judiciário comete injustiças das mais graves, uma vez que tanto privilegia o cônjuge infiel ao eximi-lo(a) de responsabilidade para com a pessoa com quem manteve um relacionamento, como acaba negando proteção de ordem social, como os de cunho previdenciário, a quem faz jus.

Impõe ainda ressaltar que a invisibilidade a que essas relações são submetidas repercutem na prole eventualmente advinda dessa relação, pois, se não é reconhecido à mulher, por exemplo, o direito à sucessão, será negado também ao(s) filho(s), pela via inversa e reflexamente, o direito à herança de sua mãe (DIAS, 2011, p. 51) configurando-se essa situação como contrapasso a vedação constitucional de tratamento desigual entre filhos.

Assim, é de todo incompatível com a nova concepção de família, além de insustentável, face a nova ordem de valores constitucionais, rechaçar tais relações consolidadas por período em que revela estabilidade e permanência, com sinais claro e induvidosos da vida familiar.

4. O DIREITO DE PENSÃO POR MORTE NAS RELAÇÕES DE CONCUBINATO

Documentos relacionados