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Como apontamos anteriormente, as ditaduras de SN no Cone Sul ocorreram entre as décadas de 1960 e 1980. Na América Central, países como Guatemala106, El Salvador,

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No caso da Guatemala a Comisión para el Esclarecimiento Histórico(CEH) aponta um dado importante sobre as violações de direitos humanos: a questão racial. Segundo a comissão 88,7% das mulheres que sofreram violência sexual eram de origem maia. Este dado corresponde apenas ao levantamento dos anos 1980-1983. Segundo Ana Gonzáles, se considerarmos os anos não contabilizados pela CEH (antes de 1980) o percentual pode ser maior. Segundo ela, nesses dados não estão contabilizados os casos ocorridos nos centros clandestinos de detenção. Informa também, que há indícios de existência de escravas sexuais que não sobreviveram. De qualquer forma, a questão étnica não pode ser ignorada. “La violência de género tuvo características particulares

Nicarágua e Honduras, sofreram regimes de exceção desde a década de 1950. Estes países, muito cedo, passaram por experiências traumáticas, como guerras civis e ditaduras, que marcaram suas histórias. Embora tais casos sejam objeto desta pesquisa a sua menção é necessária para tornar mais explícita uma realidade latino-americana onde fatores vinculados a violência política, TDE e experiências traumáticas são relativamente comuns a todo o subcontinente. Neste subcapítulo priorizamos fazer uma breve descrição sobre as ditaduras de SN no Cone Sul para, na sequência, apontar casos de mulheres que foram identificadas como “inimigas internas” nesses países e que, dentro da dinâmica da repressão estatal sofrida, foram vítimas de violência sexual.

Embora a pesquisa foque nos casos brasileiros e argentinos, neste item apontaremos, de forma sucinta, casos emblemáticos dos demais países do Cone Sul (Paraguai, Uruguai e Chile). A intenção é mostrar como a violência sexual foi uma prática decorrente do Terrorismo de Estado relacionado às ditaduras de SN. Consideramos que tal perspectiva contribui para compreender a dimensão macro que a violência contra as mulheres teve nestes contextos repressivos e como foi sistematicamente utilizada pelas forças militares e paramilitares para desestruturar e aniquilar as “inimigas internas”. É preciso refletir também que, se em períodos democráticos há a existência de uma cultura de violência sexual literal e simbólica contra o gênero feminino, em períodos de crises (conflitos armados, guerras, ditaduras) este tipo de violência atinge graus mais elevados e pode ser, inclusive, indiretamente, política de Estado.

Primeiramente, quando nos remetemos às ditaduras ocorridas no Cone Sul na segunda metade do século XX nos referimos àquelas que tiveram como base ideológica a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), por isso a denominação aqui usada é ditaduras de Segurança Nacional (SN). Portanto, a DSN foi a base ideológica que justificou o terror de Estado. Logo,

relacionadas con la étnica y discriminación étnica, y el médio rural alejado de médios de comunicación. Las violaciones masivas y públicas, en el contexto de las masacres indiscriminadas de la tierra arrasada, la ejecución de los niños y la destrucción de los fetos extraídos de los vientres de las embarazadas sucedieron casos con exclusividad cuando se trató de población maya y rural” (p. 54). A dizimação destes povos seguiu padrões de ataques de terra arrasada. Separavam as mulheres dos homens e das crianças, os meninos eram assassinados na frente de seus pais “a patadas, golpeándolos contra las piedras o ensartándolos con las bayonetas”. Também ocorriam “tortura y ejecución de los líderes y guías espirituales” e “violación pública y reiterada de las mujeres y ejecución de las mismas” (p. 54). As mulheres, colocadas em praça pública, eram violentadas pela tropa diante da população. Nestes casos, a violência sexual ganhou outros sentidos: além do político, adquiriu sentido racista. O estupro público pela tropa transmitia aos homens associados a elas e ao resto da população local uma mensagem bem concreta: a de macular e destruir os corpos dos vencidos. As vítimas mulheres da Guatemala não são exceção entre os países da América Latina. O que as diferencia enquanto vítimas (em parte), é o acréscimo da questão étnica e uma escala comparativa maior. Mas base ideológica também era pontuada pelo anticomunismo e pela DSN. Ver:GONZÁLEZ, Ana. Guatemala: violência de género, genocídio y racismo. In: SONDERÉGUER, María. Género y poder. Violencia de género en contextos de represión política y conflictos armados. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2012.

não há como separar essa violência estatal de um conjunto de diretrizes que, entre outras coisas, justificou ações repressivas nesses países.

A DSN foi disseminada através dos cursos ministrados nas Escolas Militares criadas pelos EUA com esta finalidade. Sem dúvida foi “o esqueleto teórico que fundamentou os regimes cívico-militares justificando a emergência e o protagonismo das Forças Armadas no conturbado cenário político latino americano dos anos 60”107

. Os manuais de estudos dessas instituições ofereciam esquemas que permitiam entender a doutrina. Embora Joseph Comblin afirme que “há certamente uma doutrina muito rígida que vem dos Estados Unidos e é transmitida quase sem modificações nas escolas de segurança nacional da América Latina”108

, em países como o Brasil foi qualificada e acrescida localmente com contribuições que reforçavam fatores que correspondiam à especificidade nacional.

Independente da existência de um pretenso programa de integração continental, como estratégia para conter o comunismo na região, houve também, simultaneamente, o interesse dos EUA e de parte das Forças Armadas regionais em um alinhamento com relação às questões políticas. Tal estratégia era uma necessidade norte-americana para impor sua supremacia diante das antigas potências do velho continente, bem como a liderança do bloco capitalista diante daquele liderado pela URSS. Os EUA, ao impor sua hegemonia, impunha também seu modelo político, econômico e social aos demais países do ocidente. Levando em consideração que o mundo vivia uma realidade de confronto bipolar (capitalismo/comunismo, ocidente/oriente, civilização/“barbárie”), era vital para os EUA garantir a coesão de seu bloco como condição para impedir o que era percebido como avanço do comunismo soviético.

Escolas especializadas nessa dinâmica de ação e percepção da ameaça comunista e de formulação e adequação de concepções doutrinárias se multiplicaram pela região: Paraguai (Escola Nacional de Guerra), Colômbia (Escola Nacional de Guerra), Bolívia (Escola de Altos Estudos Militares), Chile (Academia de Guerra) e Brasil (Escola Superior de Guerra)109. A principal delas foi a Escola das Américas, no Panamá, dirigida pelos EUA. Segundo Comblin entre 1961 e 1977 fizeram treinamento nas escolas preparatórias dos EUA cerca de 33 mil militares latino-americanos110. Esse número demonstra o quanto as forças militares do Cone Sul tiveram uma formação conjunta e o quanto isso as alinhou à ideologia estadunidense de combate à subversão (contrainsurgência) e sedimentou as condições para futuras ações conjuntas.

107PADRÓS, op. cit., 2005, p. 184. 108

COMBLIN, op. cit., p. 22.

109 Fundada no ano de 1948. 110 COMBLIN, op. cit., p. 22.

Como já foi dito, após a Revolução Cubana as preocupações com uma “cubanização” da América Latina aumentaram. As ações de contrainsurgência se intensificaram em função desse temor. Cada acontecimento local na América Latina tornava o perigo da “cubanização” mais real. Após 1959 novos fatos aceleraram o processo, como a ascensão de um presidente de matriz trabalhista no Brasil, em 1961, ou a deflagração da crise dos mísseis em Cuba (1962). No caso do Brasil, em 1961, temia-se que João Goulart atendesse as reivindicações dos trabalhadores urbanos e rurais. Esse temor conseguiu articular, em menos de três anos, uma aliança entre a burguesia nacional, a oligarquia da terra, os representantes do capital estrangeiro e grande parte da cúpula das Forças Armadas, respaldadas pelos EUA, para promover um golpe de Estado no início de 1964111. Anos mais tarde, em 1973, um presidente socialista eleito democraticamente no Chile foi literalmente “bombardeado”112

. Somam-se a isto as questões internas de cada país: o aumento das desigualdades sociais, o crescimento de uma esquerda inconformada com o grande abismo social existente, a insuficiência dos partidos políticos diante da crise, etc. Esses elementos fortaleceram a crença da necessidade de fomentar ações de contrainsurgência.

Observa-se uma profunda acentuação da mobilização dos movimentos sociais na América Latina que reivindicavam, no plano político, a ampliação do direito de voto e o aperfeiçoamento do sistema democrático com o efetivo reconhecimento de novos atores sociais. No plano econômico-social, ambicionavam uma melhor distribuição da propriedade da terra e da riqueza produzida em suas nações, a ampliação e disseminação de direitos trabalhistas para o conjunto da classe trabalhadora rural, assim como outras reivindicações mais que possibilitassem melhorar suas condições de vida113.

É preciso entender que mesmo que nestes países as causas que motivaram os descontentamentos se assemelhassem, havia diferenças importantes no contexto de cada conjuntura interna. Não pretendemos aqui traçar paralelos e diferenças entre as conjunturas ditatoriais, até porque este não é o nosso objetivo, mas, para além das diferenças locais, é preciso olhar para o Cone Sul de forma conjunta para entender os elos chaves existentes: a base ideológica, os objetivos econômicos, o perfil dos setores dominantes, a violência repressiva contra o protesto social e a aplicação da metodologia do TDE. Em cada conjuntura, dada as dimensões geográficas, populacionais, econômicas e políticas, a violência estatal de SN deixou profundas marcas em parte da população. Dos dados existentes sobre o período,

111 Esta aliança entre a burguesia nacional, parte da classe política conservadora e as Forças Armadas já estava

em processo antes mesmo do suicídio de Getúlio Vargas. Com os acontecimentos mundiais dos anos 1960, tal aliança se fortaleceu.

112 O Palácio de La Moneda em Santiago foi bombardeado em 11 de setembro de 1973 e o presidente Salvador

Allende se suicidou após horas de resistência.

113

MENDES, Ricardo Antonio Souza. Ditaduras civil-militares no Cone Sul e a Doutrina de segurança Nacional: algumas considerações sobre Historiografia. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n.10, jul./dez. 2013, pp. 7–8.

pode-se afirmar que o saldo de pessoas torturadas, mortas e desaparecidas marcam a história do século XX no Cone Sul.

O TDE produzido pela aplicação da lógica da DSN extrapolou as fronteiras políticas existentes, realçando a noção de “fronteiras ideológicas”. Este conceito definiu um inimigo comum às diversas nações latino-americanas, como também aos EUA: o comunismo. Como o inimigo era ideológico foi necessário que cada país, alinhado com os EUA, vigiasse seus cidadãos para evitar uma subversão comunista interna. Interpretou-se que qualquer cidadão que possuísse ideias contrárias ao alinhamento político da ordem vigente era de alta periculosidade e que deveria ser imediatamente enquadrado, pois as ideias comunistas/socialistas/marxistas poderiam “contaminar” o tecido social desses países. Logo, os golpes de Estado que se sucederam no Cone Sul foram justificados com o discurso da necessidade da tomada de poder para conter o avanço comunista e para manter a “ordem democrática”. Por isso há uma diminuição das restrições colocadas pela existência de fronteiras políticas para a mobilidade do comando que atuam sobre eles e para além delas, contudo com a colaboração ou “omissão” (quanto ao controle) das forças de segurança do país vizinho, com o intuito de cercar os militares perseguidos que procuram esconder-se e refugiar-se do outro lado da fronteira. Dessa forma, era possível exportar métodos de tortura política e agentes encobertos, prender cidadãos dos países vizinhos e entregá-los aos seus perseguidores, nos países de origem. A política externa dos países que comungavam das diretrizes da DSN e aplicavam métodos de TDE se alinhava na Operação Condor e em outros esquemas de colaboração, em ações conjuntas na caça dos inimigos políticos e ideológicos.

A justificativa de contensão comunista era muito mais uma ação ofensiva do que defensiva e estava justificada pela necessidade de proteger a nação do “germe” infiltrado. A DSN na América Latina passou a ser colocada em prática, principalmente, após a guinada revolucionária da ilha caribenha, que perpassou deuma sociedade explorada pela voracidade do capital estadunidense e sob o tacão da ditadura de Fulgêncio Batista, a uma experiência revolucionária que se tornou um marco histórico e impactou profundamente toda América Latina.

Portanto, um dos fatores que devemos considerar ao analisarmos as ditaduras do Cone Sul é a presença marcante da DSN na montagem interna do combate à insurgência. É a partir dela que será desencadeada na América Latina nos anos 60 e 70, uma ofensiva de golpes de Estados e ditaduras. Consequentemente, neste contexto de “caça às bruxas”, o TDE surgiu com todas as suas faces, deixando sequelas para as sociedades que sofreram tais experiências. No marco do TDE nosso foco central será a repressão, mais especificamente a violência direta

contra as presas políticas.

2.2 VIOLÊNCIA SEXUAL: O CORPO DA MULHER COMO UM CAMPO DE BATALHA