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O consentimento informado e a condição das crianças e adolescentes intersexuais

2 O CORPO INTERSEXUAL NO DISCURSO E NA PRÁTICA MÉDICA: DA INVISIBILIDADE À ANORMALIDADE

3 A INTERFACE ENTRE A INTERSEXUALIDADE E O DIREITO A PARTIR DO DIÁLOGO ENTRE O BIODIREITO E OS DIREITOS

3.2 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS FACE ÀS CIRURGIAS DE NORMALIZAÇÃO DO SEXO: OS PRINCÍPIOS E A LEGISLAÇÃO

3.2.3 O consentimento informado e a condição das crianças e adolescentes intersexuais

As crianças e os adolescentes são considerados incapazes pela legislação civil brasileira. Não se pode, no entanto, negar que a interferência biomédica, nos corpos de crianças e adolescentes intersexuais, seja um tema grave que demanda questionamentos e discussões. Conforme já explorado nesta dissertação, os movimentos de defesa das pessoas

67Exemplos de julgados que reafirmam a obrigatoriedade do consentimento informado nas relações médico-

pacientes são: STJ/RE nº 436.827. Julg. 01.10.2002, Min, Rel. Ruy Rosado de Aguiar; STJ/RE nº 1.180.815. Julg. 19.08.2010. Min. Rel. Nancy Andrighi. Disponível em: <http// www.stj.gov.br>. Acesso: 01 Fev. 2012.

intersexuais indicam que as cirurgias de normalização do sexo e os protocolos de hormonoterapia, atendem, muitas vezes, aos desejos, projeções e quereres dos pais e não das crianças. Este fato viola a legislação que tutela os interesses das crianças e adolescentes. A DUBDH prevê, em seu Art. 7º, que “deve ser concedida proteção especial às pessoas que são incapazes de exprimir seu consentimento”, e o ECA/90, em âmbito nacional, assegura: i) as crianças e adolescentes são pessoas humanos em desenvolvimento e possuem os mesmos direitos de toda as pessoas humanas (Art. 15); ii) reitera o direito à liberdade das crianças e adolescentes, e especifica, que uma das formas de manifestação desse direito é a liberdade de opinião e expressão, observando-se, ainda, o direito à orientação (Art. 16, II e VII); iii) crianças e adolescente, também, possuem o direito à inviolabilidade de sua integridade física, psicológica e moral, o que abrange o respeito a sua autonomia (Art. 17).

Fica claro que, em sua composição, esses dispositivos legais tutelam, preservam e promovem a dignidade das pessoas em desenvolvimento (crianças e adolescentes), e reconhecem, nessas pessoas, os mesmos direitos que gozam os adultos, apesar de a legislação civil classificar as pessoas quanto a sua capacidade ou incapacidade e categorizar as crianças menores de 16 anos como incapazes, necessitando de seus pais ou responsáveis para expressar sua vontade. O fato é que, na atualidade e diante a seriedade da situação social das pessoas intersexuais, esta classificação (capazes e incapazes) não pode se estender a todas as decisões médicas, principalmente, às decisões que visam às cirurgias de normalização do sexo em crianças intersexuais.

O comportamento dos pais ou responsáveis legais quanto a ignorar a possibilidade de esperar que esta criança cresça o suficiente para compreender como se deu a composição de seu corpo e tomar decisão sobre ele, mediante informações claras e verdadeiras sobre esse mesmo corpo e as possibilidades deste, pode ensejar responsabilidade dos pais, por representar risco para a vida da criança.

E, nessa perspectiva, o risco não seria objetivamente de morte, mas de deflagrar uma situação caótica no futuro, quando esta criança for adulta, pois uma escolha que não tenha por fato gerador o interesse da criança, e sim o interesse da família em se autoproteger dos estigmas que a rondam, pode significar a violação do equilíbrio da pessoa humana, como também a violação de uma gama de direitos humanos, tais como: o direito à liberdade sexual, direito à autonomia, o direito à integridade (física, psicológica, afetiva, e sexual), o direito à segurança do corpo, o direito à privacidade, o direito ao prazer sexual, o direito às escolhas reprodutivas livres e responsáveis, e, sobretudo, o direito à igualdade.

As crianças seriam pessoas humanas de segunda ordem. E as crianças intersexuais, seriam ainda menores em termos de importância social? Como se dará a proteção do interesse dessas crianças? O interesse na manutenção da sociedade binária e heterosexista é, legitimamente, mais importante do que a segurança da proteção aos direitos humanos?

Nesse sentido, o consentimento informado ou a sua falta configura-se como uma das chaves para comprovação que, de fato, as cirurgias de normalização ou redefinição do sexo, principalmente em crianças, afrontam todo o discurso construído sobre os direitos humanos.

Alguns doutrinadores (RAGAZZO, 2007; BARBOZA, 2004; CASABONA, 2002) afirmam que a representação dos pais ou responsáveis, quando da incapacidade civil das crianças e adolescentes, fica circunscrita, apenas, à esfera patrimonial. O Código Civil Brasileiro (CCB) não deixa claro se há a participação dos pais na disposição dos direitos de personalidade de seus filhos.

O artigo 1.634, V do CC atribui aos pais a competência para representar os menores (até 16 anos) e assisti-los após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento. No entanto, se pode argumentar que esse artigo não se aplicaria aos casos de consentimento em direitos de personalidade, mas apenas aos atos jurídicos pertinentes à disposição e fruição de patrimônio. (BARBOZA, 2004, p. 45).

A legislação, no entanto, é clara quando da Lei nº 9.434/97 (Lei dos transplantes), que, em seu Art. 9º, prescreve que só a pessoa juridicamente capaz poderá doar órgão, tecidos e células. Esta proibição, indica que, se apenas as pessoas civilmente capazes podem dispor voluntária e gratuitamente de parte de seu corpo, é porque o consentimento deve ser personalíssimo, não podendo ser transferível a quem quer que seja, em virtude da natureza jurídica dos direitos de personalidade.

A esta regra só há uma exceção prevista na DUBDH, como também no ECA, que é o perigo iminente de vida. Nesta exceção, a intersexualidade não se encaixa, por não apresentar risco, por si só, à vida humana.

As decisões que os pais ou responsáveis legais possam vir a tomar quanto às cirurgias de normalização do sexo, em sua maioria mutiladoras, podem ser irreversíveis e causar danos igualmente irreversíveis às crianças intersexuais. Então, a decisão da pessoa mais interessada – a criança – deve, obrigatoriamente, ser imprescindível e definidora da situação, respeitando-se seu direito à autonomia, o direito ao próprio corpo e o consentimento informado.

Para tanto, os movimentos de defesa das pessoas intersexuais questionam, inclusive, se, quando se trata dos casos de intersexualidade, o consentimento da família, de fato, é informado diante das estratégias de invisibilidade e negação. Ao contrário do que a literatura médica afirma, as cirurgias não preservam o direito à saúde das crianças intersexuais, revelando-se, muitas vezes, instrumentos de precarização de sua saúde e de violação de seus direitos humanos.

Fausto-Sterling (2000a, p. 58) dá exemplos de como as práticas associadas à intersexualidade são tão contingentes quanto a ideia de corpo, de sexo e de gênero, através de alguns relatos ocorridos em países islâmicos. Pontualmente na Arábia Saudita, nos casos de HAC, baseados nos protocolos Ocidentais no gerenciamento deste estado intersexual, os médicos aconselham os pais a escolherem o sexo feminino para a redefinição da genitália externa, pois, apesar da virilização, essas crianças são 46XX geneticamente. Todavia, como nesses países a preferência é por filhos homens, diante de um caso de HAC, a genitália tem grau acentuado de virilização, apesar de geneticamente mulheres, muitos pais decidem pela histerectomia e a criação dessas crianças como homens.

Portanto, como a intersexualidade, essencialmente, não traz risco de morte e não é patologia, associem-se a isso as possibilidades reais de o sexo redesenhado ser expressão da vontade dos pais, mais do que da criança. Logo, a autonomia e o direito ao corpo dessas crianças devem ser preservados até a data em que estejam habilitadas a expressar sua vontade. Casabona (2002, p. 28-30) é taxativo quando afirma que os pais devem respeito para com seus filhos menores de idade, e que o exercício do pátrio-poder, que comporta, ao mesmo tempo, direito e deveres, fundamenta a obrigação dos pais de fazer todo o necessário para salvaguardar a saúde e a vida de seus filhos. O referido autor reitera que o exercício desse poder não faculta aos pais tomar decisões irreversíveis que possam pôr em risco a vida de seus filhos crianças e adolescentes, em face da prioridade a outros interesses que lhes beneficiariam, e não aos filhos.

Portanto, os pais não são detentores da vida e do futuro dos filhos incapazes civilmente, menos ainda de suas escolhas mais prementes. Devem, ao contrário, zelar pela sua dignidade através da proteção dos direitos humanos dos filhos sob sua guarda e poder.

E, dentre as obrigações dos pais, de acordo com a legislação brasileira, estão promover, assegurar e proteger a direito à saúde das crianças e do adolescente. Em virtude disso pelo resguardo e pela tutela das crianças, de acordo com o Art. 7º do ECA/90 e do Art.227 da CF/88, que adotou o princípio da proteção integral da criança e do adolescente,

cultura, dignidade, como também proteção a qualquer ato de discriminação, negligência, violência, dentre outros. Portanto, as crianças intersexuais que vivem em situação de vulnerabilidade social, possuem direitos iguais às crianças e aos adolescentes que têm seu sexo definido seguindo os padrões binários, e todos esses direitos são exigíveis pelas famílias, como por parte das próprias crianças.

A dignidade humana apenas será, de fato, garantida a partir da intangibilidade física da pessoa humana, através do respeito ao seu corpo e a sua saúde. Ademais, reitera-se que a dignidade não pode se compreendida apenas materialmente, mas, também e principalmente, de forma potencial. Mesmo que a norma jurídica civil classifique as pessoas como capazes ou incapazes, os que forem incapazes possuem a mesma dignidade que qualquer outra pessoa, em virtude de sua condição humana, e a família deve ser a primeira das estruturas sociais a defender a dignidade e o direito à saúde e integridade das crianças intersexuais.