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O ESTATUTO DA DIVERSIDADE SEXUAL E A CONDIÇÃO DOS INTERSEXUAIS

2 O CORPO INTERSEXUAL NO DISCURSO E NA PRÁTICA MÉDICA: DA INVISIBILIDADE À ANORMALIDADE

3 A INTERFACE ENTRE A INTERSEXUALIDADE E O DIREITO A PARTIR DO DIÁLOGO ENTRE O BIODIREITO E OS DIREITOS

3.3 O ESTATUTO DA DIVERSIDADE SEXUAL E A CONDIÇÃO DOS INTERSEXUAIS

O debate sobre a intersexualidade sempre fora marginal ao direito. Entretanto, a negação da existência intersexual não poderá ser infinitamente ignorada. Para tanto, a Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, criada em 15 de abril de 2011, encaminhou ao Conselho Federal da OAB documento intitulado ‘Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual’, que, depois de aprovado internamente, será encaminhado à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado da República, para os trâmites legais e eventual encaminhamento às Casas Congressuais, onde será votado.

A Comissão da Diversidade Sexual foi criada através da Portaria/OAB nº 16/2011, publicada em 15 de abril de 2011. Esta Comissão é presidida por Maria Berenice Dias e integrada por Adriana Galvão Moura Abílio, Jorge Marcos Freitas, Marcos Vinícius Torres Pereira e Paulo Tavares Mariante; deca participaram como consultores Daniel Sarmento, Luís Roberto Barroso, Rodrigo Cunha Pereira e Tereza Rodrigues Vieira.

A justificativa para a confecção dessa nova norma jurídica está encerrada na noção de Estado democrático de direito e na assertiva de que nesse tipo de Estado, todos e todas são merecedores da tutela jurisdicional. Ademais, o texto constitucional consagra como princípios fundamentais da sociedade brasileira a liberdade, a igualdade e o respeito à dignidade humana. Contudo, apesar de toda a retórica constitucional, o constituinte de 1986-87,

“olvidou de citar, modo expresso, a proibição de discriminação em decorrência da orientação sexual ou identidade de gênero68”.

Este fato gerou várias críticas em vários setores sociais e junto aos movimentos sociais para a defesa da diversidade sexual, o que ocasionou a discriminação, pelo silêncio da lei, às pessoas homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, como também às pessoas intersexuais.

Tal omissão fere, frontalmente, vários outros princípios e direitos consagrados no texto Constitucional, como o pluralismo das entidades familiares, a proibição ao preconceito e o dever do Estado brasileiro de promover a justiça.

A motivação para a confecção deste documento, dentre tantas outras razões ligadas ao respeito e à promoção dos direitos humanos de todas as pessoas humanas, foi “[...] a perseguição que sofrem o preconceito de que são alvos, a violência de que são vítimas”. Tolerar um Estado de Direito que reconhece direitos a uns e os mitiga, através do silêncio, a outros é corroborar com a violência e condenar à invisibilidade todas as pessoas que são homossexuais, bissexuais, transexuais, transgêneros e intersexuais.

Dentre as justificativas e considerações sobre a necessidade social deste Estatuto, a Comissão aduz que:

A inexistência de lei não significa ausência de direito e nem pode deixar ninguém à margem da tutela estatal. A democracia é o direito de todos, não só da maioria. Aliás, as minorias que são alvo do preconceito e da discriminação merecem tutela diferenciada. É histórica a omissão do Estado no que diz com os direitos das pessoas homossexuais, bissexuais, transexuais, transgêneros, travestis e intersexuais. [...] Por isso imperiosa a imediata aprovação um Estatuto da Diversidade Sexual, que consagra uma série de prerrogativas e direitos de quem ainda não é reconhecido como sujeito de direitos.

O Estatuto está sistematizado da seguinte forma: disposições gerais; princípios fundamentais; direito à livre orientação sexual; direito à igualdade e à não-discriminação; direito à convivência familiar; direito e dever à filiação, à guarda e à adoção; direito à identidade de gênero; direito à saúde; direitos previdenciários; direito à educação; direito ao trabalho; direito à moradia; direito ao acesso à justiça e à segurança; direitos aos meios de comunicação; as relações de consumo; os crimes; as políticas públicas e das disposições finais e transitórias.

O Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual contempla também a tutela das pessoas intersexuais em vários artigos, garantindo vários direitos, até então, negados. Mas, talvez, um dos maiores benefícios é a possibilidade de retirar a intersexualidade do limbo em que historicamente se encontra, tornando visível a existência intersexual.

Além de todos os direitos previstos no Estatuto, especificamente para a tutela e promoção dos direitos das pessoas intersexuais, são garantidos:

a) No Art. 4º, I, a igualdade e o respeito à diferença; no inciso VII, foram consagrados o respeito à intimidade, à privacidade e à autodeterminação e, no inciso VIII, o direito à felicidade;

b) No Art. 33 é garantida a livre expressão da sua identidade de gênero;

c) O Art. 34 prevê a capacitação em recursos humanos para os profissionais da área de saúde, no gerenciamento e acolhimento das pessoas intersexuais, em suas necessidades e especificidades;

d) O Art. 35 garante o acesso aos procedimentos médicos, cirúrgicos e psicológicos destinados à adequação do sexo morfológico, à identidade de gênero, através do SUS; e) O Art. 36 veda a realização de qualquer intervenção médico-cirúrgica, de caráter

irreversível, para a determinação de gênero, em recém-nascidos e crianças diagnosticadas como intersexuais, exceto em caso de risco de vida comprovado; f) O Art. 37 estabelece que a adequação à identidade de gênero poderá iniciar-se a partir

dos 14 anos de idade; todavia, o artigo seguinte (art. 38) é expresso ao afirmar que as cirurgias de redesignação só podem ser realizadas a partir dos 18 anos de idade69;

g) O Art. 39 reconhece o direito ao nome para que seja condizente com o sexo psicológico das pessoas intersexuais, bem como a identidade sexual, mesmo que independente da realização das cirurgias de transgenitalização; nas certidões não poderão constar quaisquer indícios das mudanças levadas a efeito (Art. 40); bem como, que as pessoas intersexuais possam ter identidade de gênero distinta do sexo morfológico ou gonadal;

h) O Art. 42 prevê a possibilidade de alistamento militar das pessoas intersexuais, em local próprio, como um meio de preservar sua intimidade e privacidade;

i) A partir do Art.46 o direito à saúde é garantido às pessoas intersexuais, bem como é vedado aos profissionais da saúde utilizar-se de qualquer técnica para manter ou

69 Aos 18 anos de idade, a legislação brasileira reconhece a capacidade civil da pessoa e a partir de então, esta

poderá, autonomamente, decidir pela retificação, ou não, de sua genitália externa, como também consentir sobre as intervenções e seus protocolos, de maneira consciente.

reforçar o preconceito e a discriminação; também proíbe que os profissionais biomédicos (médicos, enfermeiras, psicólogos, dentre outros) exerçam qualquer ação que favoreça a patologização dos estados intersexuais;

j) O Art. 54 garante direitos previdenciários aos intersexuais;

k) O Art. 59 usque 65 assegura o direito à educação e à promoção da capacitação dos profissionais da educação para a prática da educação inclusiva e a abordagem e acolhida das crianças e adolescentes intersexuais, como também assegura que, no ato da matricula, o nome social seja utilizado;

l) Na redação do Art.82 está assegurado, também, aos intersexuais atendimento especializado através de delegacias, como também varas judiciárias especializadas como instrumentos de garantia da integridade física, psíquica, social e jurídica;

m) No Art. 92, proíbe-se aos meios de comunicação fazer qualquer referência desabonadora e vexatória às pessoas intersexuais, e incitar a intolerância. Do Art. 105 ao 107, enumeram-se algumas políticas públicas necessárias para a consolidação do princípio da democracia, do pluralismo e que se constituem imprescindíveis para o reconhecimento da titularidade de direitos das pessoas homossexuais, bissexuais, transexuais, transgêneros, bem como, as pessoas intersexuais.

Mesmo que o Estatuto da Diversidade Sexual se torne realidade neste país, sua existência jurídica, isso não garante, por si só, a efetivação de todos os direitos preconizados. Contudo, não se pode duvidar de que esse é um começo. Além da existência de legislação que assegure juridicamente os direitos das pessoas intersexuais, é necessário, também, mudança na forma de pensar e agir da sociedade. E, isto talvez, só será possível através da reformulação do modelo educacional e seus paradigmas, que devem se voltar para a educação em direitos humanos, efetivamente.