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O consnntimnnto sob a ótica garantista

4.3 Nossa posição

4.3.2 O consnntimnnto sob a ótica garantista

A exposição realizada demonstra que a imposição de pena por uma lesão ou ameaça de lesão consentida pelo titular do bem jurídico não é legítima, na medida em que não cumpre qualquer finalidade preventiva.

A imposição de pena, nesses casos, também não tem o mérito de inibir a vingança privada, já que a própria vítima consente, e por isso mesmo não teria qualquer ímpeto de retaliar o agente pela conduta praticada.

De fato, o consentimento oriundo de uma decisão livre e consciente nada mais é que uma opção do titular do bem jurídico quanto a seu uso mais conveniente e proveitoso, ainda que tal proveito seja resultado exatamente da destruição ou lesão daquele bem.

Neste contexto, a definição do consentimento do ofendido como causa de exclusão da tipicidade reflete os anseios garantistas de justificação e legitimidade da punição, uma vez que traz novas possibilidades de eliminação da punição por ausência de lesividade e necessidade.

A adoção de uma teoria liberal, que valoriza a autonomia individual e preconiza uma menor intervenção estatal nas decisões do indivíduo, também nos conduz à aceitação deste posicionamento.

Assim, a lesão validamente consentida de um bem jurídico é, em todo caso, um indiferente penal, já que a punição, neste caso, violaria diversos dos postulados garantistas antes expostos.

É como se em todos os tipos penais que protegem bens jurídicos disponíveis, houvesse implicitamente inserido, em sua redação, o comando “contra a vontade do titular do bem jurídico tutelado”, mesmo naqueles tipos em que o verbo típico não traz a noção de dissenso ou discordância da vítima.

Não há como analisar o valor e a função de cada bem jurídico sem abrir mão do caráter relacional entre o bem e seu titular, bem como de seu titular e o Estado e

os demais membros do grupo social.

A lesão de um bem jurídico, para caracterizar um fato típico e, assim, carecedor da proteção penal, deve sempre pressupor o dissenso de seu titular.

Ora, não é difícil imaginar exemplos em que a destruição do objeto material da ação traz visível benefício ao titular do bem jurídico, e por isso mesmo é consentida por ele.

A demolição de uma casa velha, para que ali se erga um novo edifício ou o “desmanche” autorizado de um automóvel para venda de suas peças ilustram situações em que a destruição do objeto pode até render um acréscimo quantitativo do bem jurídico – no caso, o patrimônio.

Com relação às lesões corporais, Roxin pontua, com acerto, que

[…] ciertamente, existen aquí límites a la facultad de disposición individual; si se sobrepasan, el consentimiento no tiene ni eficacia de exclusión de la tipicidad ni de justificación. Pero allí donde el consentimiento es eficaz sin restricción, se desarrolla la personalidad también em el tratamiento que concede a su cuerpo. El peluquero, el podólogo, e incluso el cirujano plástico no menoscaban la libertad del cliente em el trato de su cuerpo, sino que le ayudan en la realización de su imagen corporal. Sin duda, efectúan una ingerencia em la sustancia del objeto del hecho (del cuerpo real) protegido em el §223, pero no menoscaban la integridad de la esfera corporal ajena y con ello el bien jurídico, cuya lesión presupone el tipo.113

Estamos acordes com o posicionamento do mestre alemão, por concordarmos que a lesão ou destruição do objeto – corpo, patrimônio – não significa, necessariamente, a lesão ou destruição do bem jurídico, cuja proteção só tem sentido em virtude do desenvolvimento livre de seu titular.

Conforme leciona Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina,

Não parece haver muito rendimento sistemático na distinção entre acordo (consentimento dado quando o tipo penal exige dissentimento) e consentimento em sentido estrito (consentimento dado quando o bem jurídico é disponível), que seriam espécies do gênero aquiescência. Fundamental não parece ser a distinção semântica, sim, a função que o consentimento cumpre em cada caso concreto. Outra constatação importante: o consentimento válido da vítima nos casos em que produz efeitos penais afasta a conflitividade, que é barreira intransponível da incidência do Direito penal. Sem conflitividade (e afetação desvalorada de bens jurídicos alheios) não há delito.114

De fato, o consentimento válido dado pelo titular do bem jurídico elimina

113

Ibid, p. 517. 114

totalmente qualquer interesse de tutela do direito penal, visto o fim de pacificação deste. Se não há conflito, não há motivos para a interferência violenta do Estado na vida privada dos indivíduos.

O consentimento afeta sempre a tipicidade, em seu aspecto formal – nos casos em que o dissenso faz parte da redação da figura típica – ou material – para os demais casos de consentimento válido (que, para a teoria dualista, consistiriam em causa de exclusão da ilicitude).

Segundo Gomes e Molina,

A razão da exclusão da tipicidade nesse caso (e não da antijuridicidade, como dizia a doutrina antiga) é a ausência de conflitividade. ZAFFARONI diz que nesse caso fica excluída a tipicidade conglobante; para nós fica excluída a tipicidade material. O fundamento dogmático para a exclusão da tipicidade seria a falta de antinormatividade para ZAFFARONI e, para nós, a ausência de risco proibido. Não gera risco proibido a conduta que foi consentida validamente pela vítima.115

Além disso, a distinção entre acordo e consentimento, proposta pela teoria dualista116, revela uma fragilidade óbvia, se considerarmos que a redação dos tipos penais não segue modelos universais.

A opção do legislador por uma forma ou outra de descrever a conduta típica poderia trazer alterações na classificação da anuência do titular do bem jurídico – se caracterizadora de um acordo ou do consentimento propriamente dito.

Não se trata, portanto, de uma diferenciação ontológica, essencial, resultante da natureza das coisas, mas de uma distinção puramente aleatória e artificial, que variaria de acordo com o estilo e até com o idioma do legislador.

A este respeito, Roxin pondera que

No obstante, em cualquier caso, las eventuales diferencias no pueden extraerse de las premisas sistemáticas, ni tampoco de una pretendida diferente “naturaleza” de consentimiento y acuerdo em la que se basen éstas. Como se trata siempre de problemas referentes al tipo, los divergentes presupuestos de eficacia sólo pueden resultar de la estructura de los correspondientes tipos. La separación de acuerdo y consentimiento es, por otra parte, de poca importância y depende em gran medida de presupuestos del próprio lenguaje, por ejemplo, de si la lengua alemana dispone de un término que permita expresar el intervenir contra la voluntad del portador del bien jurídico, ya em la formulación de la acción típica (“allanar”, “coaccionar”, etc.) o, por lo menos, em una expresión emblemática de la descripción del tipo delictivo (“vulneración” de la confidencialidad de la palabra, de

115

Op. cit., p. 245 116

un secreto, etc).117

Por fim, após uma análise mais acurada, não há como aceitar a suposta semelhança do consentimento do ofendido com as causas legais de exclusão da ilicitude, baseada na ponderação de interesses, para admiti-lo como excludente de antijuridicidade.

De fato, não há como crer que, em cada caso de consentimento válido, o titular do bem jurídico lesado tenha sopesado seu interesse naquela lesão vnrsus o interesse coletivo de manutenção do objeto sobre o qual recai a tutela penal.

O que há, no caso, é a manifestação da vontade do indivíduo, que em nada subjuga o interesse coletivo, sequer questionado.

A cada caso de consentimento, não há, em paralelo, o sacrifício do interesse da coletividade na manutenção do bem, até porque o livre desenvolvimento do indivíduo é congruente, e não conflitante com o interesse coletivo.

Pelos argumentos aqui expostos, filiamo-nos, portanto, à corrente unitária, admitindo que o consentimento do ofendido, em todos os casos, exclui a tipicidade penal, nada restando a indagar acerca da ilicitude do fato ou da culpabilidade do agente.

117

5 REQUIOITOO PARA O CONOENTIMENTO VÁLIDO

Embora seja admitido pelo ordenamento jurídico, o consentimento – seja no sentido de acordo, seja no sentido de consentimento propriamente dito, conforme discussão exposta retro118 –, só será considerado válido e apto a produzir efeitos se presentes determinados requisitos.

Alguns destes requisitos relacionam-se com o bem jurídico objeto da tutela, outros se relacionam com a pessoa de seu titular, e também a quem o consentimento é dirigido.

De toda forma, ausente ainda que apenas um deles, o consentimento não será válido, e restará perfeita a tipicidade ou a ilicitude da conduta, conforme a teoria que se adote.