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6 ENCONTRANDO AUSÊNCIAS E EXISTÊNCIAS

6.3 Marílio ao rés da fome

6.3.2 O contar contado

Seguindo as considerações de Wood (2017) acerca da existência de uma narrador[a] não-confiável, percebemos o narrador do romance Ouro dentro da

cabeça (2016a) como o responsável por uma manipulação dos fatos da narrativa, de

tal forma comprometida com as vozes subalternas, que reflete na estrutura do romance o protagonismo da voz das contadoras de histórias orais. Sendo o romance um gênero afeito à “esquiva [d]as regras que lhe são ditadas” (WOOD, 2017, p. 102), percebemos a articulação de um narrador que diminui a distância entre a escrita e a oralidade quando a voz contadora de histórias se amotina e se apodera de toda a narrativa.

Ou seja, o narrador em primeira pessoa que se apresenta, no início do romance, não é necessariamente o que percebemos no final. Ele marca a sua pessoalidade desde o início quando afirma “Vim contar a minha vida pra quem quiser conhecer” (REZENDE, 2016a, p. 09), evidenciando o seu lugar de protagonista da narração.

É preciso pensar na diferença entre o narrador Marílio, que está em primeira pessoa na estrutura do romance, e o contador de histórias Marílio, que toma a narrativa para si, articulando-a segundo a estrutura de um contar oral. Nesse aspecto vemos o caráter metaficcional do romance, no qual a capacidade de contar a história pode ser desempenhada por uma personagem que, no caso do romance, é o próprio narrador em seu papel de contador de histórias.

O narrador pode, sim, construir um espaço de ficção onde prevaleça um personagem Marílio da Conceição, que recria sua experiência no momento da escritura. Isso significa que podemos estar diante de uma história inteiramente ficcional sobre o próprio narrador. Sendo o contador um personagem de si mesmo, a voz narradora que o representa estilisticamente revela para as leitoras e as ouvintes da praça os bastidores do contar, indicando a matéria viva das histórias, as

performances indicadoras do espaço-tempo da narração e o reconhecimento da comunidade como formas do fazer oral.

A voz narradora, então, articula esses dizeres e nos direciona para a revelação do processo narrativo a partir da voz que conta a história, jogando com a construção e a desconstrução do mundo criado pela palavra.

Segundo Verônica Daniel Kobs (2017), na metaficção, “a narração é feita em primeira pessoa e a personagem assume duas funções: protagonizar e narrar a história. Com a utilização da técnica metaficcional, a personagem pode acumular uma terceira função, a de escrever uma história que é inserida no romance”. Sendo assim, percebemos que Marílio da Conceição constrói uma narrativa que ficcionaliza a si mesmo, se propondo a encontrar outras formas de contar a própria vida, modos que seriam mais interessantes na manutenção da atenção do público ouvinte.

Assim, Marílio conta “toda esta história, que aqui estou lhe contando” (REZENDE, 2016a, p. 75, grifo nosso) e se dispõe a apresentar para suas interlocutoras os meandros do contar, levando-nos para o espaço do aqui e para a intimidade do lhe – marcas de uma linguagem oral.

A metaficção compõe, então, a estrutura da narrativa, que utiliza os detalhes para marcar seu posicionamento a favor das vozes subalternas na materialidade de um discurso construído na estidade, na revelação sugerida pela presença constante de uma performance referenciada na qual são articulados os elementos constitutivos do contar oral.

Para tanto, lembremos das performances da expressão oral pensadas por Zumthor (1993), incluídas em um saber coletivo a ser reconhecido por uma comunidade de representação: é preciso um savoir être que autorize um savoir faire competente ao dizer (savoir dire). Essa autorização é feita a partir da validação das competências necessárias, no caso do romance em análise, ao dizer de um contador consciente de seu contar como ação performativa.

Quando eu era pequeno, não sabia que era triste a minha vida, nem imaginava outra e, por isso, não podia saber da minha desgraça. Pois a desgraça é assim, se a gente não sabe nem fala que ela está ali presente, ela quase não existe; e, já depois que se disse tudo, ainda é preciso tempo, contar aquilo muitas vezes, pra poder pegar o jeito de sentir infeliz. (REZENDE, 2016a, p. 16, grifo nosso).

O diálogo solidário entre a voz narradora do romance e a voz contadora de histórias evidencia a experiência como matéria viva do contar. Narrar a desgraça para que ela se confirme precisa pegar o jeito e contar aquilo muitas vezes para que a história possa se confirmar numa verdade possível na narração de um passado que se diz infeliz. Pegar o jeito está para a prática da narração como a articulação do contar está para a revisitação.

O narrador de Ouro dentro da cabeça (REZENDE, 2016a.) é, desde o começo, o contador de histórias Marílio da Conceição, não podendo ser considerado o romance uma narrativa linear, mas cíclica, na qual temos no espaço da contação em praça pública o momento de enunciação. Esse contrato performático é assumido pelo discurso da narrativa e apenas revelado no final quando um catador, Catolé, diz:

- Escute, seu moço, você conta tanta história, de um jeito bom de ouvir, com gesto, com muita graça, melhor que o homem da cobra, como se tivesse tido esse ofício desde menino. Por que é que não vai pra praça contar histórias também? Deixa o seu boné no chão, com a boca aberta pra cima, e vai só ouvir as pratinhas caindo uma após outra. E ainda vai dar um divertimento pra tantos iguais a você, que não têm pra onde ir no dia que não é de trabalhar. (REZENDE, 2016a., p. 97, grifo nosso).

É nesse momento da narrativa que entendemos estar diante de uma contação feita em praça pública por um contador que empresta sua voz discursiva para a voz narradora do romance.

A praça é o espaço da coletividade, em torno da qual circunda o pragmatismo da vida cotidiana em seus afazeres associados à manutenção da urbe. É também o espaço da suspenção da velocidade do dia a dia, sendo o lugar do encontro, do descanso, da observação do mínimo em meio à correria dos compromissos que fazem o sistema econômico girar seu interminável fuso. A praça é a materialidade do encontro cíclico, da retomada da experiência narrável e decifrável no encontro com a outr[a].

Marílio da Conceição é reconhecido pelos pares como um representante do contar oral, pois o seu repertório bem contado, com muita graça, envolvendo gestos e um ouvir agradável, pode ser considerado um ofício capaz de entreter tantos

iguais a ele. Essa é sua forma de contribuir solidariamente com as outras iguais,

É importante pensar sobre esse contrato performático, refratado a partir de uma estrutura textual que nos leva a um espaço de contação, para que possamos perceber os movimentos discursivos que nos levam ao encontro com a voz contadora de histórias como a voz primeira do romance. Não é o caso, apenas, de uma voz narradora que dialoga com uma voz contadora, como acontece nos romances analisados anteriormente, mas de uma voz narradora tomada pela voz contadora, que assume a narrativa escrita segundo as regras da narrativa oral.

Muitas aventuras teve, e eu, só olhando as figuras que estão neste livro aqui, me lembro delas todinhas, como se estivesse lendo. Repare em Dom Quixote, este aqui, todo encourado como os vaqueiros que vi quando andei pelo sertão: veja como era magrinho, porque comia bem pouco, que tudo economizava do dinheiro que ele tinha por mor de comprar os livros e ler todas as histórias pra descobrir neste mundo o que o olho só não vê. (REZENDE, 2016a, p. 25, grifo nosso).

A utilização de dêiticos como os verbos repare e veja, de demonstrativos como este e advérbios como aqui marcam, performaticamente, o espaço ficcional da contação promovida por Marílio da Conceição. É quando somos lançados ao encontro com a oralidade e com um fazer marcado pelo momento presente da enunciação, a uma vocalização da narrativa.

Sobre o texto performatizado, Zumthor (1997, p. 84) afirma que ele “se torna arte no seio de um lugar emocional manifestado em performance de onde procede e para onde tende a totalidade das energias que constituem a obra viva”. Sendo a performance, na oralidade, um elemento importante da forma, e constitutivo dela, é retomada na escrita do romance como representação.

Ou seja, o narrador utiliza as performances do contar oral em toda a narrativa, que é, em si, uma contação, um turno assumido por um único contador. A história de sua vida é já um causo e isso é assumido na estrutura do romance a partir do domínio do turno, por parte desse narrador marcado pela voz contadora desde as primeiras palavras do romance.

Enquanto não sabia ler, eu mesmo inventava os caminhos onde ia procurar. Também inventava as histórias pra me contar à noite, consolar a minha vida e renovar o meu desejo. Por isso, tinha certeza que, por mais que a vida durasse, não parava de procurar. Nunca havia de esmorecer, ainda que o meu caminho fosse longo e

duro assim, porque eu vivia de inventar, e inventação não tem fim. (REZENDE, 2016a., p. 84, grifo nosso).

O pretérito imperfeito remete a uma ação constante, que se confirma em um tempo passado contínuo. Marílio inventava as histórias porque era preciso narrativas que o consolassem e o renovassem em relação ao desejo de aprender a ler e a escrever. Dentro de um mesmo campo semântico, no qual figuram as funções de seu contar, os verbos no infinitivo refletem a ideia de uma ação sem vinculações, neutra, que sugere as histórias contadas como espaço da indeterminação temporal, pois inventação não tem fim, e deve permanecer coletivamente a partir de um contar fundado na ação.

Recontar, refazer, renovar apontam para o contar histórias como uma ação da

inventação, da ficção revisitada, mas também da permanência e da ressignificação.

Contar histórias faz alusão a uma “espécie de ressurgência das energias vocais da humanidade, energias que foram reprimidas durante séculos no discurso social das sociedades ocidentais pelo curso hegemônico da escrita”. (ZUMTHOR, 2007, p. 15). Daí a voz narradora se propor à simbiose entre escrita e oralidade a partir da apropriação da voz contadora de histórias na estrutura de um gênero marcado pelas regras da escrita, do gráfico, da impressão.

O corpo que carrega a subalternidade do fazer oral é representado em uma narrativa da natureza, que conta a história do crescimento do desejo de aprender a ler e a escrever. Marílio da Conceição segue crescendo “como cresce a natureza, arroios, plantas e bichos, sem que ninguém dê por isso”. (REZENDE, 2016a, p. 18). Esse é um crescimento contado pelas regras de um narrar que é reformulado no momento da contação, com uma intenção de manter a continuação de uma narrativa aberta.

Para isso é preciso um desprendimento do próprio fato para que este seja trabalhado segundo as expectativas da ouvinte que está ali, na roda de contação, sendo chamada para o ato enunciativo a todo o momento.

O caráter metaficcional da narrativa nos aponta o romance em questão como “uma forma híbrida, em que a ficção, a crítica e a teoria partilham o mesmo espaço literário”, segundo Zênia de A. Faria (2012, p. 238), e permite que o narrador transite entre a experiência narrável e a narrativização da experiência, em função do estabelecimento da contação como espaço de criação.

Achei minha história triste, essa que me contaram; e, depois de ouvir as coisas que o Pajé me revelou, eu ficava matutando pra encontrar outro modo de contar a minha vida, a que já tinha passado e o resto que ainda vinha. Assim, inventei que o pai que eu não conhecia, que vinha de outras terras e me deu pele mestiça, me fazia diferente de todo o povo da Furna, que só à Furna pertencia e tinha ali raiz funda, impossível de arrancar. (REZENDE, 2016a, p. 17, grifo nosso).

A voz narradora assume, então, a exposição dos bastidores do contar, tornando-nos cúmplices e aprendizes da contação. Ela revela a inventação, a ação intencional de inventar um outro modo de contar a minha vida, que age sobre a narrativa inicial.

Partilhamos da construção de uma narrativa coletiva que intercambia experiências a partir da observação do fazer. Diante de um mestre artesão da palavra, assumimos, no romance, nosso espaço de aprendizes, ação necessária para que o fazer oral permaneça como manutenção dos laços de comunidade.

O senso prático da narrativa é assumido nas camadas de um texto que revela um narrador que conta a história de seu contar. Dessa forma, a metalinguagem nos leva a uma continuação do fazer, a um ensinamento, a um aconselhamento sobre a necessidade de se refletir sobre a construção da contadora de histórias como um elemento da cultura popular, a refletir o diálogo com discursos de resistência que permeiam a obra de Valéria.

Mergulhando a coisa “na vida d[a] narrador[a] para em seguida retirá-la del[a]. Assim se imprime na narrativa a marca d[a] narrador[a], como a mão d[a] oleir[a] na argila do vaso”. (BENJAMIN, 1994a, p. 205).

Sendo assim, podemos dizer que estamos diante de uma narradora da justiça, do bem comum.

Ao retomar a experiência de solidariedade vivenciada a partir do encontro com Maria Flora, o narrador diz que

aquela mulher já velha, que nunca dava um sorriso, tinha uma voz amargosa, só falava pra arengar, pra dar ordens na cozinha e pra insultar os homens. Eu tinha até medo dela, mas um dia ela veio e puxou um tamborete capenga bem pra junto da minha rede, sentou- se e me perguntou quem eu era e donde vinha. Eu me achava tão só, sem família e sem amigos, sem esperança e futuro que até gostei de contar minha vida lá na Furna, que agora, vista de longe, era uma vida tão boa! E contei toda esta história que aqui estou lhe contando. (REZENDE, 2016a, p. 74-75, grifo nosso).

Mais uma vez a voz narradora, marcada pela estidade, indica seu papel de contadora de histórias, assumindo discursivamente a ação do contar como representação de grupos subalternos por fazer parte das periferias da escrita.

A história contada a Maria Flora, naquele momento em que a dor de se perceber sozinho se une à falta de esperança e de futuro no garimpo, está sendo retomada nesse outro momento: o do agora da narrativa construída na relação com as ouvintes da praça. Toda esta história, não outra, mas esta demonstrada e marcada linguisticamente na enunciação, está sendo contada aqui, nesse espaço de contação, a um você que está presente e sendo gramaticalmente representado pelo pronome oblíquo lhe. Voltamos ao romance como a narrativa do encontro com a oralidade e com os elementos que a compõem e [em?] sua materialidade.

Assim como as vozes que aparecem nos outros romances em análise neste trabalho, a voz narradora de Ouro dentro da cabeça (REZENDE, 2016a) dialoga com a voz das contadoras de histórias que assumiam o papel de direcionar suas ouvintes para o ensinamento da sabedoria, das regras que visavam a uma ética necessária à vida coletiva e à consequente manutenção das identidades do grupo.

Aqui temos um narrador que assume o “caráter feminino d[a] narrador[a]” (WARNER, 1999, p. 41) responsável por uma traditio literalmente passada de uma geração a outra. Segundo Marina Warner (1999, p. 57), “a interdição do discurso feminino soou ao longo dos anos como um desses refrões misóginos insistentes que adquirem vida própria independentemente do contexto, da época ou das circunstâncias do falante em si”.

Sendo assim, é importante destacar a utilização dessa voz carregada de valores associados a um imaginário, marcado por opressões e violências, como uma opção política da autor[a]-criador[a] da obra de Valéria em revelar, no trato discursivo, o seu interesse em articular as vozes subalternas.

Por isso podemos afirmar que, nesse romance, o compromisso com essa voz contadora é ainda mais evidente do que nos romances anteriores, pois é anunciada e assumida na escritura e nas estruturas do texto de forma metaficcional, refletindo um discurso revelador das axiologias da obra e refratando a necessidade de se refletir acerca da importância de uma nova hegemonia.

Talvez, para isso, seja necessária a inventação, uma ação, um agir que invente novas epistemologias, reflexo de diferentes relações nas quais a

solidariedade seja a linguagem predominante e os limites possam ser quebrados e redefinidos em função da visibilidade das vozes subalternas. Segue, então, o conselho do contador Marílio, revelado nas cadeias do discurso.