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3 ROMANCE: UM GÊNERO REBELDE

3.1 O romance e a materialidade histórica

A partir do século XVIII, a romancista assumia o papel de porta-voz da dignidade do ser humano enquanto sujeito do acontecimento, do fato, revelando a concretude dos dias por meio da escrita. O despertar para a existência em um mundo heterogêneo mobilizava as estruturas do romance e evidenciava o descompromisso do gênero com limites estilísticos, permitindo o questionamento de conceitos de produção tradicionais para as narrativas. De alguma forma, essa abertura que o romance possibilitava refletia, desde sempre, a necessidade de redefinição das relações sociais e de escrita tendo em vista os movimentos de mudança social, sensivelmente vivenciados desde a mercantilização, comércio e industrialização.

Segundo Walter Benjamin (1994a [1936], p. 201),

O que separa o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. [...] [A] romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites.

Ao discutir sobre o papel da narradora na modernidade, Benjamin aponta para o romance como gênero que surge trazendo a negação da dimensão prática e propondo a experiência como identificação. Diferente da narrativa tradicional, de caráter oral e coletivo, o romance, fruto da solidão das relações modernas, trilhou

seu caminho a partir de uma produção centrada na individualização do sujeito moderno, preso ao filtro do olhar direcionado para cada faceta da sua fragmentada existência.

O ambiente fabril já não permitia o diálogo, como acontecia nos espaços destinados à produção artesanal, onde mestres ensinavam suas aprendizes a transformar matéria-prima em produto destinado à comercialização. As artífices, geralmente, passavam por todas as fases da produção, podendo, assim, narrar o processo de feitura para outras que precisassem aprender o ofício. O fazer coletivo previa diálogo e, consequentemente, a construção da narrativa desse encontro, sugerindo também a construção de novos diálogos e novos encontros.

A “modernização” na forma de encarar o processo de produção na fábrica demandava especialistas, desenvolvedoras de técnicas cada vez mais eficientes, para cada etapa do processo de produção. A especialidade necessária definia novas formas de interação, com menos diálogo e uma individualidade sempre mais crescente, o que se tornou muito conveniente na consolidação de um gênero que previa o encontro da leitora com a leitura de uma forma solitária.

O encontro solitário com a solidão da romancista, por meio do romance, evidenciava sujeitos portadores da substancialidade necessária para a consolidação da literatura como reflexo de uma sociedade que vivia, desde então, uma crescente entrada nos tempos modernos de valorização do eu. Esse constante encontro evidenciava figurações e estruturas resultantes da individualização que atingem o gênero romance, percebido, cada vez mais, como reflexo da materialidade histórica que define os meandros de sua construção.

Sobre a representação moderna da experiência humana, Georg Lukács (2000 [1920], p. 36), pensador marxista precursor de Benjamin, se refere ao romance como gênero decorrente da narratividade da epopeia, que tem na fragmentação da modernidade espaço para a negação das formas tradicionais e a consequente experimentação de novos conceitos de produção.

Ora, esse exagero da substancialidade da arte tem também de lhe onerar e sobrecarregar as formas: elas próprias têm de produzir tudo o que até então era um dado simplesmente aceito; antes, portanto, que sua própria eficácia apriorística possa ter início, elas têm de obter por força própria suas condições – o objeto e o mundo circundante. Uma totalidade simplesmente aceita não é mais dada às formas: eis porque elas têm ou de estreitar e volatilizar aquilo que

configuram, a ponto de poder sustentá-lo, ou são compelidas a demonstrar polemicamente a impossibilidade de realizar seu objeto necessário e a nulidade intrínseca do único objeto possível, introduzindo assim no mundo das formas a fragmentariedade da estrutura do mundo.

Em A teoria do romance, Lukács (2000) analisa a figura d[a] her[oína] épic[a], e sua não permanência na modernidade, como resultado da individualidade do ser humano e da fragmentação do mundo moderno na literatura. Já que na modernidade não parecia haver mais espaço para a heroína da coletividade – [a] her[oína] épic[a], o romance surgia como espaço narrativo para a construção d[a] her[oína] do romance, um indivíduo que buscava reconhecer-se em meio aos fragmentos de um mundo em permanente (des/re) construção. O processo individualizado que passou a caracterizar a produção do romance em seu advento podia ser observada na construção de uma heroína romanesca diferente da her[oína] épic[a], em um contexto no qual o romance assumia um espaço simbólico de transgressão, enquanto a heterogeneidade do próprio gênero abria os caminhos para o trânsito do esfacelamento dos fatos e das ações. Imersa na própria individualidade, diferente da projeção coletiva do olhar épico, a heroína romanesca dialogava com a solidão e a reflexão da romancista e da leitora, nascendo de um alheamento do mundo exterior.

A comparação que Lukács faz entre o romance e a epopeia reflete a necessidade de se pensar a vida como fragmentada, estandardizada e repetitiva, na qual as romancistas se voltam para suas subjetividades particulares, assim como para seus projetos literários marcados por estéticas e ideologias. Outros teóricos marxistas, como Theodor W. Adorno, Lucien Goldmann e Walter Benjamin deram prosseguimento ou questionaram esse posicionamento, evidenciando sempre o caráter sócio-histórico da produção romanesca como resultado de uma redefinição de fronteiras vivenciada seja no campo da geopolítica, da estética ou da cultura.

Pensemos em Coisa-Nenhuma (REZENDE, 2016a), Maria (REZENDE, 2016b) e Alice (REZENDE, 2014), que parecem assumir-se como sujeitos inconclusos em meio aos fragmentos de uma modernidade questionadora dos espaços de representação, por exemplo. O narrador de Ouro dentro da cabeça (2016a) busca, desde o início da contação de sua história de vida, construir um conceito de identidade a partir do mosaico de pequenas narrativas de ausências que formam sua história, repleta de encontros que geram outras identidades, seja como

Coisa-Nenhuma, Piá, Marílio ou Caroço. Todos esses são filhos dos desejos negados, e constroem alteridades a partir dos fragmentos de um sujeito que representa todo o vilarejo de Furna. Alice e Maria também podem ser percebidas como heroínas problemáticas, reflexo da humanidade do ser moderno, em suas angústias e fugas, em suas reconstruções a partir do questionamento de espaços e lugares discursivos que evidenciam as ausências sociais de uma Lola e de um Arturo que “foram só os primeiros, depois vieram tantos!” (REZENDE, 2014, p. 237) a mostrar à narradora de Quarenta dias (2014) a rua como espaço de solidariedade entre as pobres. Alice foi “aprendendo, ficando mais e mais igual a eles”. (REZENDE, 2014, p. 237).

Em Mutações da literatura no século XXI, Leyla Perrone-Moisés (2016) traça um panorama sobre a diversidade conceitual que abrange o romance, até chegar aos conceitos mais atuais, marcados pelo diálogo do gênero com o contexto de produção e de leitura. A sua reflexão evidencia o valor de resistência e de crítica que o romance assume como uma produção transgressora diante da realidade, como o preenchimento de uma falta.

Desde o início, o romance assume um estatuto ambíguo que o faz equilibrar- se em uma tensão entre a obra de arte e o bem de consumo, o entretenimento. Essa ambiguidade é intensificada com a ascensão do gênero a partir do século XIX e fica evidente nas produções do século XX, apesar de muitas destas assumirem também um valor ético refletido discursivamente nos meandros do texto, como buscamos observar nos romances de Valéria em análise. Para a norte-americana Susan Sontag (2008, p. 221)11, a forma finita e completa do romance, na qual se desenha uma estrutura capaz de expandir-se em discurso ético, demonstra a capacidade de esclarecimento da história e, justamente por isso, tem o seu lugar inquestionado na produção literária da atualidade.

Na narração, tal como é praticada pel[a] romancista, há sempre um componente ético. Esse componente ético [...] é o modelo de completude, de profundidade sentida, de esclarecimento proporcionado pela história e por sua resolução – que é o oposto do modelo de estupidez, de incompreensão, de horror passivo, e o consequente embotamento do sentimento, oferecido pela glutonaria de histórias sem fim disseminadas pela nossa mídia.

11 Primeira Conferência Nadine Gordimer, proferida na Cidade do Cabo e em Johannesburgo, em março de 2004.

Seguindo a linha teórica de Sontag, Perrone-Moisés (2016, p. 108) chama a atenção para o caráter reformador do romance, para sua responsabilidade diante das faltas evidentes nas relações da modernidade, que expõem o esfacelamento de um mundo em constante crise de identidade: “A narração continua sendo uma necessidade humana básica, mesmo desprovida de sequências lineares de causas e efeitos, ou precisamente porque causas e efeitos claros estão em falta”, pois o romance prescinde um diálogo necessário e constante com o mundo moderno, no qual a volatilidade também é expressão.