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2. A CONSTRUÇÃO E LEGITIMAÇÃO DE UM CAMPO DO SABER

2.1 O Design

2.1.1 O Contexto de institucionalização do Design

Além de estabelecer recortes e definições, os primeiros historiadores também buscaram distinguir o Design do fazer artesanal em prescrições preconceituosas, ou seja, buscavam, a todo custo, ratificar as diferenças entre o Design e o artesanato.

Na verdade, a ideia de que o artesanal é especial e diferenciado só faz sentido a partir da Revolução Industrial, quando se tem, de fato, a distinção entre o trabalho manual, no qual um único indivíduo concebe e executa um artefato, e o

trabalho industrial, com a nítida distinção entre o projeto e o fabrico. Neste contexto, o artesão perdeu todo o controle produtivo que detinha, o qual se caracterizava pelo seu domínio em todas as fases da produção. “Esse processo vai desde a obtenção de matéria-prima, domínio de técnicas de produção e do processo de trabalho até a comercialiação dos produtos.” (NIEMEYER, 2007, p. 29)

No lugar do artesão, portanto, o capitalista passou a exercer não apenas o controle da produção, mas, sobretudo, do operário, conforme Niemeyer (2007):

Com a interferência do intermediário entre o artesão e o mercado, foi possível a instalação de mecanismos que tornaram viável o início do controle do capitalista sobre o operário. Os meios inicialmente usados pelo capitalista para atingir o domínio do processo e do modo de produção foram a reunião dos trabalhadores num mesmo espaço físico e a introdução do putting-out system, em que há a interposição da produção artesanal e do mercado, tanto para aquisição de material, quanto para venda de sua produção. Este conjunto de medidas constituiu o sistema de fábrica. [...] O que estava em jogo era o alargamento do controle e do poder por parte do capitalista sobre o conjunto de trabalhadores, que ainda detinham os conhecimentos técnicos e impunham uma dinâmica própria ao trabalho (NIEMEYER, 2007, p. 29).

Assim, desde o início, este sistema de fábrica instituiu, também, a dominação no âmbito social, a partir da apropriação de saberes e, por consequência, iniciou-se um processo de geração de trabalhadores alienados e subordinados àquela divisão social de trabalho que lhes era imposta, à disciplina e ao controle dos meios de produção. O empresário pensava estratégias para controlar o processo tecnológico, fazendo surgir na ordem social um conjunto de instituições que garantiram a permanência e o controle do capitalista sobre a técnica produtiva (NIEMEYER, 2007).

O sistema de fábrica introduziu determinantes que lhe são inerentes, pois estão em seu bojo todas as implicações relacionadas a hierarquia, disciplina e controle do processo de trabalho, ao mesmo tempo que se desenvolveu uma produção de saberes técnicos totalmente alheios àquele que participava da força de trabalho. [...] Como o artesão foi afastado do processo de produção fabril, a coordenação da produção era feita pelo capitalista, cuja competência mais valiosa era a de auferir lucros. Seu compromisso era com o capital, e não com o projeto (NIEMEYER, 2007, p. 30).

Hoje, com a maturidade institucional do Design, pensamos diferente, o resgate às antigas relações com o fazer manual passou a ser buscado, pois agrega valor, singulariza um produto massivamente desejado.

Esta separação entre o artesanal e o industrial é cronologicamente imprecisa. Para Forty (2007) essa mudança organizacional teria ocorrido em muitas

indústrias no século XVIII, como na produção de cerâmicas. Contudo, Cardoso (2008) afirma ser possível determinar a época em que o termo designer passou a ser utilizado como apelação profissional somente no século XIX:

O emprego da palavra permaneceu infreqüente até o início do século 19, quando surge primeiramente na Inglaterra e logo depois em outros países europeus um número considerável de trabalhadores que já se intitulavam designers, ligados principalmente mas não exclusivamente à confecção de padrões ornamentais na indústria têxtil (DENIS, 1996, p. 62 apud CARDOSO, 2008, p. 22).

É interessante percebermos que as primeiras atividades de Design, que antecedem a aparição da figura dos designers, vão surgir justamente na indústria têxtil, responsável por fornecer a matéria-prima mais importante para a confecção do vestuário e, portanto, para a indústria da Moda. “ Foi por causa de a indústria têxtil ser tão importante na Grã-Betanha do século XIX que o design de tecidos de algodão estampado recebeu grande dose de atenção [...]” (FORTY, 2007, p.66)

Apesar da imprecisão da data, entre a separação do artesanal e industrial, sabemos que o Design nasce no contexto de três grandes processos históricos que marcaram os séculos XIX e XX: a industrialização, a urbanização moderna, a globalização. “Todos os três processos passam pelo desafio de organizar um grande número de elementos díspares – pessoas, veículos, máquinas, moradias, lojas, fábricas, malhas viárias, estados, legislações, códigos e tratados” (CARDOSO, 2008, p. .23).

A Revolução Industrial trouxe profundas transformações nos meios de fabricação, nas relações sociais, e na forma de organização das cidades. Com o aumento da produção e a diminuição dos custos, pela primeira vez, a fabricação gerou o seu próprio mercado, independente da demanda, modificando o sistema anterior vigente. Além disso, a mecanização do trabalho possibilitou o aumento produtivo a baixos custos e, como consequência, o acúmulo de riqueza que caracterizou o século anterior fez nascer os primórdios de uma sociedade aberta ao consumo.

Houve um grande crescimento no acúmulo de riqueza líquida ao longo dos cem anos anteriores e, portanto, um acréscimo correspondente no consumo. Pode-se dizer que no século 18 já existia em alguns países da Europa senão uma sociedade de consumo, pelo menos uma classe consumidora numerosa, que detinha um forte poder de compra e que já começava a exigir bens de consumo mais sofisticados. E é nesse mercado de artigos de luxo que se encontram os primórdios da organização industrial (CARDOSO, 2008, p. 27).

Além deste cenário promissor, a separação entre o planejamento e as etapas de execução também foi responsável por legitimar e enaltecer o designer. Suprimiu-se a necessidade de empregar muitos trabalhadores com alto grau de capacidade técnica, acrescentando-se a necessidade de um bom designer, capaz de gerar o projeto, além de um gerente que supervisionava as atividades do contingente de operários sem qualificação para executar as etapas, meros operadores de máquinas.

Tratava-se de um trabalho valorizado e protegido, para se evitar a pirataria. Ou seja, quanto mais dinheiro passasse a valer o Design, maior a preocupação com o segredo e a exclusividade, tendo em vista que asseguravam a vantagem comercial do investidor. Esta dinâmica de pensar o diferente, ser copiado, inovar novamente, permanece até os dias atuais, exigindo dos designers uma atenção vigilante ao que se projeta no mundo.

A Industrialização trouxe consigo um crescimento urbano inédito no século XIX e, de um modo análogo à organização industrial das fábricas, as cidades também apresentaram um grau inédito de divisão de tarefas. “Foram surgindo bairros novos, residenciais e industriais, proletários e abastados, conectados a um ou mais centros por redes viárias, de transportes e de comunicação visual” (CARDOSO, 2008, p. 46). Neste cenário, houve, obviamente, mudanças na forma com a qual as pessoas se relacionavam em uma nova experiência urbana.

As pessoas passaram a se deslocar de casa para o trabalho em transportes públicos, como o ônibus e o bonde, na companhia de estranhos. Outra mudança que evidenciamos é a ampliação do acesso aos bens de consumo, pois o trabalho assalariado colocava, ao alcance de um público maior, a possibilidade de realizar economias com as sobras do salário, aumentando o contingente de pessoas capazes de consumir mais produtos do que os eventuais de primeira necessidade.

Entre as mercadorias, cujo consumo mais se expandiu no século 19, estão os impressos de todas as espécies, pois a difusão da alfabetização nos centros urbanos propiciou um verdadeiro boom do público leitor. O anseio de ocupar os momentos de folga deu origem a outra invenção da era moderna: o conceito do lazer popular, que se desenvolveu em estreita aliança com a abertura de uma infra-estrutura cívica composta por museus, teatros, locais de exposição, parques e jardins. Não por acaso, consumo e lazer acabaram por se fundir durante o século 19, culminando no animado espetáculo das grandes lojas de departamentos (CARDOSO, 2008, p. 46- 47).

Era necessário, portanto, sinalizar a nova geografia da cidade, os meios de transporte, os fluxos de convivência, os novos produtos que se apresentavam como urgentes, mesmo sendo supérfluos. Neste contexto, cresce em importância os meios impressos de comunicação, assim como o designer especializado na área gráfica, pois o critério de distinção da boa qualidade do impresso deixa de ser a habilidade na execução gráfica, e passa a ser a originalidade do projeto e das suas ilustrações, o que reforça a velha divisão entre o artista, bem remunerado, que cria, e o artífice, anônimo e mal pago, que executa.

Além de problemas comunicacionais, as aglomerações urbanas trouxeram dificuldades diversas na organização do espaço público, gerando crises habitacionais, epidemias, lixo e miséria, que exigiriam reformas urbanas de grande porte no mundo inteiro, inclusive no Brasil, com o redesenho das moradias e uma nova ordenação dos locais de trabalho. Assim, o século XIX se configurou com uma nova ordem social, na qual se buscou impor e manter a ordem no mundo inteiro.