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3.1 ROTAS DA MAGIA

3.1.2 O Conto Maravilhoso em Campos Fecundos

Ao discutir a verdade do romance Marthe Robert aproxima duas concepções comumente difundidas a respeito do gênero. Uma delas aproxima-se da prática de revelar o conto aos ouvintes. Nessa discussão a autora lembra que para a linguagem a arte de contar e a mentira encontram-se tão próximas a ponto de serem confundidas justamente por esse caráter reprovável, a mentira. Na realidade, não ocorre reciprocidade entre ambas.

[...] diz-se ‘isso é romance’ para designar um tecido de fábulas incríveis; mas ‘isso é romance’ também se aplica a um fato real maravilhoso ou tocante demais para ocupar lugar entre as coisas julgadas possíveis; no primeiro caso, o romance é portanto assimilado a uma mentira puramente negativa; no outro, em contrapartida, designa uma experiência ou acontecimentos para os quais a realidade não tem nome, mas que a transcendem em muito em emoção e beleza (ROBERT, 2007, p. 27-28).

Quando se atribui ao romance o caráter de lidar com o real maravilhoso percebe-se que a mentira nada tem a ver com a astúcia, e com a performance do contador de histórias, por exemplo. Existe, sim, uma mentira, uma maneira de mentir que ultrapassa o sentido primeiro do termo. Trata-se de uma maneira de lidar com a verdade de modo que o ouvinte ou o receptor perceba que a mentira do narrador constitui nada menos que um jogo da transmissão poética diante de uma recepção não ultrajante. A primeira ação, a transmissão, almeja a segunda, a recepção. Deste lado, o receptor permanece na expectativa de alijar-se de sua realidade e ser lançado na dimensão espacial construída pelo jogo do texto e até o jogo do narrador nos meandros da narração.

Felizmente, ao se dedicarem ao estudo do oral e do escrito os estudiosos da oralidade e da escrita rompem com o preconceito acadêmico e dão nova visibilidade a esses dois modelos de linguagem que permanentemente colidem no processo criativo e evolutivo da humanidade. Numa de suas últimas obras, La peur des représentations, Goody (2006) destina um capítulo para o mito e outro para o romance como gêneros representantes respectivos do oral e do escrito. O autor toma o mito como gênero narrativo cuja forma de arte verbal se aproxima dos contos populares. Estes têm uma origem indefinida, pois várias são as teorias a respeito do lugar de nascimento deste gênero narrativo. Simonsen (1994) cita cinco dessas teorias.

A primeira delas, a teoria indo-europeia ou mítica, em vigor no início do século XIX, centraliza sua posição na descoberta do sânscrito e na unidade das línguas indo-europeias. Adepto desta corrente, Max Müller acredita que os contos populares são reflexos degradados de mitos solares. A teoria indianista, difundida por Théodor Benfey e Emmanuel Cosquin a partir da segunda metade do mesmo século da corrente anterior, teve mais interesse histórico e foi elaborada por influência das pesquisas filológicas a respeito de coletâneas de contos surgidas no Ocidente durante a Idade Média e em cuja origem estaria o Patchantatra. A terceira teoria é a etnográfica e foi liderada a partir de 1873 pelo folclorista inglês Andrew Lang. Este divergia do alemão Max Müller por achar que os contos populares estavam longe de ser detritos de uma mitologia superior, ao contrário constituíam restos de uma formação primitiva da qual se originaria também o mito. Em suma, Lang acreditava que o conto era anterior ao mito. Haveria uma poligênese, como destaca Simonsen a respeito dessa teoria, o conto nasceria independentemente em vários lugares. Diametralmente opostas esta teoria e a anterior se anularam.

A quarta teoria, ritualista, foi liderada por Paul Saintyves, um dos estudiosos da obra de Perrault. Saintyves reconhecia a existência de um parentesco entre a interpretação mítica e sua própria interpretação ritualista. Simonsen (1994, p. 36-37) observa que Saintyves “interpreta os personagens dos contos, não como alegorias ou símbolos, mas literalmente como a memória de personagens cerimoniais nos diversos ritos populares mais ou menos esquecidos”. Este autor se apoiou nos contos e nos costumes rituais europeus e de outros lugares para interpretar os contos de Perrault. A última teoria a respeito da origem dos contos populares é de cunho marxista e foi liderada pelo folclorista russo Vladimir Propp. Ele passa a utilizar a nomenclatura contos de magia ou contos maravilhosos para o conto popular. A exemplo de Saintyves, o autor de Morfologia do Conto Maravilhoso, dentre outras obras do gênero, vê na origem do seu objeto de estudo uma relação com os ritos primitivos.

O dilema do conto popular parece estar relacionado aos mesmos desafios enfrentados para se ter uma definição mais completa do termo mito. E toda essa dificuldade resulta sempre da dicotomia entre oralidade e escrita. Por conto popular se designa, de modo geral, uma narrativa em prosa de fatos fictícios transmitidos oralmente. Os contos escritos por Perrault são ao mesmo tempo incluídos nessa categoria pela fonte a que o autor recorreu, mas, por outro lado, também são tomados como textos largamente modificados e retocados. Contudo, quando se procede à crítica da descaracterização da matéria popular na passagem desta para a escrita pode-se estar eliminando de vez a possibilidade de elementos ou estruturas

remanescentes das culturas orais residirem em meio à forma alfabética dos contos. Assim sendo, o leitor pode achar que tudo nesse conto escrito remete a um contexto primitivo no qual os contos se tornam representantes de um longo caudal de narrativas, reflexos do modo de ação e de expressão de determinadas culturas. Ao tomar consciência disso, o leitor entende aspectos da História relativos a contextos particulares do cotidiano de uma época cujo conhecimento difundindo, nos livros, diz respeito apenas a aspectos gerais da organização social, política e econômica pautada pela lógica da escrita.

Em sua obra anteriormente citada, Goody (2006) estuda a ambivalência em relação às imagens, ao teatro, às relíquias, à sexualidade e à ficção. Ele dedica um capítulo ao mito, considerando-o um gênero oral, e outro ao romance, considerando-o um gênero da escrita e no meio de todas essas discussões inesgotáveis ele insere o conto popular, advertindo, porém que “as ficções e as narrativas religiosas estão particularmente sujeitas aos problemas de representação em virtude da ligação particular com a verdade” (GOODY, 2006, p. 169). Para o pesquisador, o mito, o romance, os ícones, as relíquias e o teatro estão distribuídos nas sociedades humanas, porém de maneira desigual. Os contos, surgidos a meio caminho entre o mito e o romance se multiplicam, segundo Sosa (1993) porque neles o homem já sente a necessidade de subjugar seus semelhantes, daí decorre o surgimento das variantes, e por isso a atividade de narrar em público ganhou força com o romance cortês, um ancestral ou similar do conto popular.

A questão da ancestralidade do conto está relacionada também à existência forte do mundo camponês, recoberto por crenças e superstições, ou simplesmente pelo pensamento primitivo. No entanto, garante Goody (2006), há diferenças entre o camponês africano e o camponês europeu no que diz respeito às formas de pensar. Isso é determinante para o autor ao observar que os contos populares africanos são finalizados por uma moral ou por um provérbio sem relação aparente com a história, senão para ressaltar uma conclusão séria sobre uma advertência puramente frívola. Um aspecto assim poderia, segundo o autor, ser encontrado em boa parte da literatura narrativa europeia dos séculos XVI e XVII. Outro traço interessante no contexto africano era o uso das histórias pelos adultos endereçando-as às crianças. Em outras situações, registra-se a tradição de histórias respeitadas, sérias e essencialmente destinadas para alimentar a discussão dos mais velhos.

Este último panorama parece sustentar as preceptivas mais idealistas. Elas defendem a tese de que os primeiros contos escritos não eram transcrições das narrações míticas ou maravilhosas, mas constituíram-se de acontecimentos, anedotas ou pequenos feitos de

indivíduos isolados. Contudo, o contexto pesquisado por Goody (2006) é bem mais recente, e se de fato não existia a interferência da escrita na parte da África e do Oriente Próximo visitado por esse autor, a concepção do que ele entendeu por conto popular na população desses lugares estaria próximo da definição de conto vulgar primitivo, fornecida por Sosa (1993, p. 111): “uma espécie de resumo da história profana e religiosa e da épica dos povos, que se transmitia oralmente e que, mais tarde, foi recolhida não por seus narradores, a massa anônima, mas pelos poetas que obtiveram sua síntese”. Acrescente-se a esses poetas os folcloristas já domados pela escrita e tentando com mais ou menos apreço interessar-se pela cultura do povo a fim de represar no impresso a matéria abrigada na memória das massas campesinas. Matéria esta já habitante dos quartos burgueses e, consequentemente, das pequenas mentes necessitadas do acalento e da voz profética de uma babá responsável por introduzir as crianças num mundo possível à imaginação de qualquer ouvinte.

Os folcloristas tentam por diversos métodos definir e classificar os contos populares, por isso, a variabilidade de expressões para a definição deste gênero ocorre na mesma medida da variabilidade dos tipos de narrativas neles e próximos a eles existentes. Delarue (1997) agrupa todas as espécies de narrativas em folclore não verbal e folclore verbal. Dentro desta última o folclorista separa os modelos não narrativos e os modelos narrativos. Os contos populares integram, portanto, as narrativas em prosa e pertencentes ao folclore verbal.

Contudo, com a evolução da escrita os contos populares, antes exclusivamente orais, se misturam às estratégias da escrita e também se servem dela para atingir outros espaços de predomínio da oralidade, como aconteceu com a expansão da Biblioteca Azul, responsável pela divulgação de textos poéticos através da leitura pública e em voz alta, em muitos casos. Essa estratégia encetou em muitos ouvintes desprovidos da instrução alfabética a criatividade para recriar as histórias ouvidas de modo a influenciar possíveis versões orais, na verdade, influenciadas na origem pela escrita. Neste cenário, e nos estudos posteriores ao século XVII, surge a necessidade de se caracterizar o conto de tradição oral em razão da presença do conto de tradição escrita.

Concebendo a literatura oral a partir das produções folclóricas, Cascudo (2006, p. 212) identifica os elementos desta literatura entre aqueles decorrentes de fontes impressas os quais mantêm, de maneira visível, “a tradição dos trabalhos de convergência literária no ambiente popular”.

Na coleta de contos populares, os folcloristas modernos sabem que nem sempre podem contar com a integridade oral do material recolhido, pois eles pertencem já a uma

tradição oral influenciada por alguma tradição escrita. Isso se tornou mais difícil também devido ao declínio da prática de contar histporias verificada, por exemplo, na França a partir do final do século XIX e no início do século XX. Para se ter certeza de que um conto era verdadeiramente de tradição oral era preciso recorrer a uma considerável amostra através da qual se processava uma comparação entre versões a fim de se percorrer o itinerário de sua difusão no tempo e no espaço. Em qualquer lugar, contudo, a identificação de um conto popular ou a sua influência na condição de conto de tradição oral, na escrita, se fez perceber por alguns aspectos, a exemplo daqueles destacados por Cascudo (2006), em Literatura oral no Brasil. Segundo ele,

A técnica da exposição é simples, nua e perfeita de sequência lógica. Não há pormenor dispensável nem a paisagem demora a narrativa. Vive exclusivamente a ação na plenitude da intensidade dramática. Não há senão raros comentários, poucas frases, um período, espécie de descarga nervosa ante uma superexcitação [...]. No discorrer do enredo raramente se abandona o principal pelo acessório embora de inapreciável efeito temático. Segue a estória em linha reta, ação por ação, uma verdadeira gesta. Só se volta para acompanhar outro fio da narrativa quando o essencial-característico pode esperar, imóvel, que os outros personagens entrem em cena na hora exata da ‘deixa’ [...] (ZUMTHOR, 2006, p. 262).

O autor destaca ainda dentre as características do conto popular as fórmulas não rigorosas na narrativa utilizadas pelo narrador para não apenas atar os fios narrativos, mas também atar à sua narração (ou ao seu ato performativo) a atenção do ouvinte. Nesse caso, expressões interpeladoras indiretas como “bem” e “ora” (“Bem. Enquanto o príncipe [...]” ou “Ora, aconteceu que o rei”) representam mesmo na escrita um índice de um conto de tradição eminentemente oral. Visualizar este cenário na escrita é reatar os vínculos do conto na tradição escrita com o seu passado oral, afinal o advento da escrita não privou a oralidade de fazer sua matéria primordial residir também sobre este novo formato.

Contudo, a ligação dos textos dessa literatura com a prática social de contar histórias toma novas configurações em face da presença da escrita, das necessidades de alfabetização e de instrução escolar das crianças. Assim, o ato de contar e ouvir histórias se confunde com a leitura vocalizada, com formas de transmissão do texto poético ou de transmissão poética do texto narrativo, porém com a interferência maior ou menor da escrita. De fato, o progresso industrial tornou-se um desafio à conservação de uma prática num mundo cada vez mais regido pela virtualidade e pela efemeridade. Entretanto, se as histórias agora são transmitidas

em áudio e em imagens móveis, essas tecnologias não substituem o contato advindo da comunicação entre os órgãos do sentido humano. Assim, o olhar do receptor comunica-se com os lábios e os olhos do enunciador. Somente a presença suplanta os vazios preenchidos pela virtualidade.

A respeito da atividade de narrar, Simonsen (1994) assegura que a narração oral ainda é um aspecto integrante da cultura popular, especialmente em comunidades pouco familiarizadas com a cultura escrita, isto é, integra o cotidiano das pessoas como forma de coesão social e manutenção de uma identidade. Por outro lado, acrescenta a autora, no mundo ocidental essa prática não existe senão como atividade direta com o público infantil, o que nos remete diretamente à crise da palavra, um fator desencadeador de movimentos sociais que fez surgir, na França, por exemplo, uma legião de novos contadores de histórias a partir do final da década de 60, conforme destaca Patrini (2005). A função e a necessidade emergente da escrita afastou de certo modo a presença daquilo que se conhece por prática de contar, referido pelos teóricos franceses como la pratique du contage ou la pratique du conte. Trata- se de uma prática de origem camponesa. Considere-se aqui, a caracterização dessa expressão a partir dos estudos de Simonsen (1987), logo, da experiência europeia, especificamente na França.

Essa prática está baseada no trabalho realizado pelas instituições de transmissão as quais foram perdendo espaço para a dinâmica das sociedades industriais. Porém, definir a pratique du contage é, necessariamente, discorrer acerca das instituições de transferência do conto oral, constituídas por reuniões nas quais um recitante toma a palavra, obviamente para a execução de uma narração. Diferentemente das mídias modernas, nas instituições de transferência

o ato de contar se pratica segundo um sistema de três parâmetros principais: o quadro das reuniões (lugar, estação, hora, ocasião), a seleção dos participantes (ela própria operada segundo três critérios principais: sexo, faixa etária, profissão), o repertorio (há uma certa correspondência entre o tipo de instituição de transmissão e os gêneros narrativos que nela se praticam). As relações entre esses três parâmetros podem variar grandemente de uma comunidade para outra (SIMONSEN, 1987, p. 26).

Porém, no contexto francês do final do século XX, e provavelmente da década atual, as condições de transmissão oral do conto e a identidade do novo contador de histórias perpassam as questões de seu tempo em virtude não apenas da emergência de uma voz afetada

pelas práticas da escritura, mas, sobretudo, pelo papel social que o próprio contador de histórias se obriga a desempenhar. Em seu estudo, Patrini (2005, p. 93) afirma:

O contador de hoje deseja ser uma autoridade artística e poética, porque ele é o ‘porte-parole’ de uma comunidade ou, mais ainda, de uma língua. Ele quer contribuir para a qualidade desta língua e não somente servir-se dela com objetivos utilitários. Isto exige uma escolha estética da parte do contador, e a consciência de seu papel social.

Desse modo, o ofício do novo contador reclama a emergência da voz da tradição, porém consciente de que não é possível transformar o homem moderno no homem camponês da Idade Média nem no homem do Antigo Regime. A criação do conto moderno e, consequentemente das teorias sobre o conto da tradição escrita, entre outros aspectos, permitem que esse novo contador tenha consciência das novas configurações necessárias ao exercício de sua prática de contar. Ele sabe também que a manipulação do conto, uma matéria-prima sempre em movimento e em constante sintonia com as experiências do cotidiano, exige dele a percepção do contexto para poder revelar ao público a intimidade do conto por meio da voz, bem como a sua intimidade com a matéria narrada e com o cenário que compõe a sua performance, no sentido pleno.

Quando se afirma isso, pretende-se retomar os três níveis de performance levando-se em conta a interferência nula, relativa ou total da escrita. Evidentemente, o contador em cena prioriza o uso da voz como elemento supremo de sedução na veiculação de sua matéria imbuída de mistérios, de símbolos e de magia. Ele constrói seu cenário para envolver e paralisar o receptor deixando somente em movimento a sua imaginação. Dessa maneira, se observa o sentido pleno da definição da performance: ação vocal de transmissão e recepção simultânea e única. Mas assim como nos contos escritos por Perrault é possível encontrar elementos relacionados ao contexto das culturas orais e, consequentemente, relacionados às práticas de transmissão narrativa de saberes. Inversamente, na performance plena dos novos contadores franceses há inevitavelmente a influência da escrita, pois as análises feitas por Patrini (2005, p. 132) revelam que “os novos contadores incluem em seu repertório tanto o conto maravilhoso como a narrativa humorística: eles colhem histórias do patrimônio internacional, acessíveis através da escrita. Suas fontes são, principalmente livrescas”.

Isso provavelmente se justifica porque antes da ampliação do campo de atuação esses novos contadores atuavam no ciclo fundamental dos espaços escolares e nas bibliotecas. Na

conjuntura deste profissional da voz à disposição da arte de contar estão presentes claramente a história de vida, a origem (cidade ou campo), a profissão e a formação de cada um dos novos contadores de histórias franceses contatados pela pesquisadora.

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