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Tratando-se aqui de uma investigação sobre um falar de raia e do espaço em que este ganha vida, não poderíamos abdicar de referir, e dedicar até particular destaque, ao contrabando, ainda que sem a pretensão de apresentar um estudo exaustivo sobre esta temática. Na verdade, esta atividade ilícita faz parte da essência da fronteira luso-espanhola e partilhamos em pleno a opinião de Fátima Amante quando afirma que “o raiano não concebe a existência da fronteira sem o contrabando, nem consegue definir aquilo que é a fronteira sem ser por referência explícita e directa à prática do contrabando”167

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Eusebio Medina García168 considera também que este comércio ilícito na fronteira da Extremadura com Portugal está estreitamente relacionado com a existência da fronteira propriamente dita, coincidindo com a ocupação militar dos portos secos, na primeira metade do século XIII. Para o autor, de todas as atividades da raia, até à década de oitenta, o contrabando tradicional foi sempre a que assumiu um lugar de destaque.

Durante a Idade Média, o contrabando foi-se desenvolvendo e, desde meados do século XIV em diante, passou a ser uma prática alargada a toda a fronteira, realizando-se tanto nos portos secos, como através dos rios fronteiriços. No concelho de Marvão, o rio Sever representava mais um entrave aos contrabandistas, especialmente no inverno, quando tinham de se despir e atravessá-lo com a carga até à outra margem, onde se voltavam a vestir e prosseguiam a rota até aos seus destinos.

Este tipo de negócio ilícito surgiu como uma forma de colmatar o comércio deficitário que existia entre os dois reinos. Segundo Medina García169, esse défice devia-se ao facto de a economia dos dois países ser muito assente na agricultura e na criação de gado para autoabastecimento, à má rede viária, aos constantes combates entre os dois reinos e, essencialmente, ao caráter monopolizador e intervencionista das suas autoridades, que aplicavam uma forte regulamentação e obrigavam ao pagamento de numerosos impostos referentes às deslocações de pessoas e mercadorias. A todos estes fatores acrescia a proliferação de alfândegas e a insegurança dos caminhos de acesso.

O clima de insegurança permanente nestas regiões de fronteira que marcou toda a Idade Média e Moderna dificultou, efetivamente, o comércio lícito e tornou o contrabando num

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Consultar rotas do contrabando no Anexo III.

167 Cfr. AMANTE, 2004: 133. 168 Cfr. MEDINA GARCÍA, 2009: 141. 169 Cfr. MEDINA GARCÍA, 2009: 136-137.

mecanismo normal e original, através do qual se desenvolviam as transações entre os dois lados da raia. Este comércio ilícito foi favorecido pelas situações de conflito, assim como pelas disposições legais restritivas que chegavam dos longínquos centros de poder. Por isso mesmo, os anos de maior fluxo de contrabando coincidem geralmente com épocas de crise e de confrontos bélicos. Nos anos de paz, havia uma considerável redução desse comércio, que quase se diluía. Assim, ao longo da história, o contrabando, mais do que uma atividade que gerava benefícios, era uma prática que se desenvolvia sob um clima de perigo constante.

À semelhança do que sucedeu em toda a fronteira terrestre entre Portugal e Espanha, as localidades da raia de Marvão e Valencia de Alcántara também foram marcadas pela prática do contrabando, fazendo este parte integrante da cultura de fronteira, até porque constituía um recurso basilar da economia de muitos habitantes.

Se as autoridades o consideravam ilegal e tentavam erradicá-lo, os raianos encaravam-no como mais uma atividade socioeconómica, sem qualquer conotação pejorativa ou de marginalização social. Para as gentes da classe mais desfavorecida, o contrabando representou um modo de subsistência, para alguns, até uma via de ascensão social e, para uma pequena elite, foi um modo de acumular capital. Assim, havia vários tipos de contrabando: desde o individual até ao profissional e ao de cariz institucional170.

O contrabando das elites distinguia-se substancialmente do tradicional, praticado por gente comum. Ainda assim, nesta segunda categoria, importa distinguir o individual e ocasional do profissional. Deste último faziam parte os mochileiros, os cargueiros171 e os guias, os quais integravam quadrilhas muito difíceis de detetar pelas autoridades.

Não se sabe ao certo quando terão começado estas quadrilhas. Eusebio Medina García172 crê que terão começado antes da segunda metade do século XVIII, data em que já há referências históricas a esses grupos ilícitos, muito provavelmente contemporâneos do próprio contrabando.

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Ana Cabezudo Rodas e José Gutiérrez Casalá distinguem três tipos de contrabando: o de largo alcance ou “contrabando de Estado”, o de curto alcance e o familiar. O primeiro garantia o transporte de avultadas mercadorias para longas distâncias, era praticado pelas sociedades anónimas com a conivência do Estado, já que a administração fingia não ver determinadas transações. O segundo era praticado na zona de fronteira, tinha um cariz mais local e a quantidade de mercadorias era bem menor em relação ao primeiro. Este era praticado por quadrilhas, que, sem qualquer proteção, carregavam às costas diversas mercadorias e revelava-se bastante rentável. O terceiro representava uma forma de sobrevivência para as famílias, chegando a ser praticado por todos os membros. Cfr. CABEZUDO RODAS, 2007: 50, 51.

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De notar que, quer os mochileiros, quer os cargueiros transportavam o contrabando a pé. Contudo, os primeiros eram proprietários da carga e os segundos apenas a carregavam a troco de um pagamento ou de uma comissão.

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Estes podiam ser mais ou menos estratificados, sendo muito comuns aqueles em que os diversos mochileiros eram donos das suas próprias cargas e havia apenas um que assumia as funções de guia. Não há dúvida de que o reforço da vigilância na fronteira favorecia o desenvolvimento do contrabando. Segundo Miguel Melón Jiménez173, de 1739 em diante, reformou-se a administração aduaneira e posteriormente reforçou-se o sistema de vigilância das transações comerciais, o que veio a ter como consequência previsível o desenvolvimento do contrabando. Para isso contribuíam diversos fatores, como era o caso da acentuada diferença de preços em certas mercadorias, das sucessivas guerras e das carências que daí advinham.

O incremento do contrabando obrigou os governos dos dois lados da fronteira a reforçar ainda mais as suas equipas de vigilância e uma das medidas adotadas foi contratar antigos contrabandistas174, que mais facilmente poderiam intercetar os seus antigos colegas nas rotas que lhes eram tão familiares. No fundo, todos ganhavam: o governo contratava profissionais conhecedores das práticas e os ex-contrabandistas tinham assim oportunidade de ter uma vida melhor, mais tranquila, mais bem remunerada, ainda que isso, por vezes, tivesse como consequência o prejuízo dos seus antigos pares.

No século XX, o contrabando teve o seu período áureo na sequência da guerra civil espanhola (1936-39), durante o período da segunda guerra mundial (1939-1945) e nos anos que se lhe seguiram, ou seja, desde o início dos anos 40 até meados dos anos 70, altura em que se verificou a queda das duas ditaduras e uma consequente liberalização do comércio entre Portugal e Espanha. Tal liberalização evoluiria cada vez mais com a entrada dos dois países na União Europeia (em 1986), a efetivação do Mercado Único e a assinatura do Acordo de Schengen, que conduziram à abertura das fronteiras, em janeiro de 1993, e ao desmantelamento de todos os serviços alfandegários.

Contudo, o facto de se ter verificado um grande aumento do número de contrabandistas levou a uma mudança no contrabando tradicional, havendo o desmantelamento das quadrilhas profissionais e a sua substituição por grupos amplos, sem uma hierarquia bem definida. Claro que o aumento da concorrência também representou um decréscimo do lucro e, com a independência das colónias portuguesas, o café, que era o produto rei desta atividade, encareceu bastante e deixou de

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Cfr. MELÓN JIMÉNEZ, 1999: 245.

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Estes dilemas de profissão foram-nos contados por um dos nossos informantes da Fontañera, Juan Vicho Carvallo, que hoje em dia é reformado da Guardia Civil, mas que durante muitos anos encontrou no contrabando o seu meio de subsistência. De notar que este contrabandista se destacou por uma particularidade muito interessante, ou seja, enquanto jogava às cartas e conversava na taberna da Fontañera, o seu cão ia buscar sacos de café à aldeia dos Galegos, onde lhos atavam ao lombo e recolhiam o dinheiro que levara de Espanha. Este cão, localmente conhecido como “perro contrabandista”, constituía assim uma preciosa ajuda para o seu dono, pois facilmente passava despercebido aos olhares atentos dos guardas.

dar o lucro de outrora. Perante essa nova realidade, muitos contrabandistas de toda a vida optaram por deixar essa ocupação e partir rumo a outras paragens em busca de melhores condições de vida. Uns migraram para as grandes cidades, escolhendo os marvanenses os arredores de Lisboa, outros saíram mesmo do país, embora em menor número. Das localidades de raia, só na Pitaranha a emigração foi mais significativa, sendo Suíça e França os destinos de eleição.

No que diz respeito às mercadorias transacionadas entre os dois países, estas foram muito diversificadas; nomeadamente, tabaco, fazendas, sapatilhas, azeite, cortiça, açúcar, ovos, pão, gado… sendo, contudo, o café aquele que indubitavelmente mais se destacou. O sentido dos fluxos dependia do mercado, ou seja, da oferta e da procura, bem como das diferenças de preços e das oscilações cambiais.

Fig. 79: Alpragaitas

Sendo uma atividade de risco, realizada essencialmente de noite e que podia exigir a carga de avultados pesos, era praticada muito mais por homens do que por mulheres, embora houvesse algumas mais ousadas e corajosas que também garantiam o sustento dos seus lares através desse comércio ilícito.

No concelho de Marvão, havia mulheres contrabandistas nas várias localidades175, mas era na Pitaranha que essa prática se generalizava. No entanto, se os homens andavam essencialmente de noite, elas transportavam as suas cargas sobretudo de dia, o que também as deixava mais expostas às auto

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ridades. Deslocavam-se, por norma, na sequência de encomendas que lhes faziam, tanto do lado português, como do lado espanhol, e dedicavam-se, essencialmente, a um contrabando de menor porte e de mais curta distância, vendendo elas próprias as mercadorias.

Do lado espanhol, na Fontañera, era frequente as mulheres praticarem o contrabando; já no Pino e em La Duveda tal não era muito comum.

Com a evolução dos meios de transporte, o comércio ilícito deixou de ser feito só a pé, passando a ser também posto em prática com a ajuda de motorizadas ou veículos automóveis, que eram estacionados relativamente perto da fronteira e assim permitiam transportar maiores cargas despendendo menos tempo.

Fig. 80: Antigos contrabandistas da Pitaranha176

A abertura das fronteiras, como já foi referido, mais do que representar o final do contrabando, significou o início do declínio de muitas localidades de raia, chegando algumas mesmo a desaparecer totalmente, como sucedeu com as aldeias de Fuenteoscura e Huerta Luna, em território espanhol. As que se mantêm assistiram a um acentuado êxodo da sua população em busca de trabalho e os poucos que ficaram tiveram de aprender a reajustar-se a uma nova realidade, a novas formas de sustento e à paulatina integração numa nova cultura de raia, marcada pela nostalgia

do passado, pela vivência de um presente “remediado” e com uma ínfima esperança de mudança no futuro.

A partir de 1986, com a adesão de Portugal e Espanha à Comunidade Económica Europeia e a posterior abertura de fronteiras e adoção de uma política de livre circulação de pessoas, mercadorias e capitais entre os diversos Estados membros, deixou de ter sentido a prática do contrabando, o que veio a gerar uma avultada quebra na economia local. Para além disso, a aplicação da Política Agrícola Comunitária (PAC) trouxe alterações significativas no setor primário, deixando este de ter o protagonismo que tinha até esse momento e virando a economia desta região de raia para o setor dos serviços. Todavia tal não foi suficiente para dar emprego aos muitos habitantes desta zona, que viram a sua vida radicalmente alterada e que, por isso, partiram à procura de melhores condições em cidades com oferta de emprego ou até para o estrangeiro.

Atualmente restam muitas memórias contadas por quem dedicou uma parte da sua vida a essa prática e vão-se partilhando rotas e histórias rocambolescas ao longo das diversas caminhadas que entidades públicas e privadas vão organizando; claro que sem as enormes cargas de outrora, as adversidades climatéricas e a preocupação frequente de ver a sua mercadoria apreendida pelas autoridades ou, até, chegar a ser preso.

Enfim, tempos de extrema dureza e marcados por muitas contrariedades, que, ainda assim, deixaram a muitos saudades e continuam a contribuir para um brilho especial no olhar aquando da sua evocação e partilha na atualidade.

No contexto português, segundo sabemos, somente em Melgaço existe um museu dedicado a esta prática tão característica do território raiano. Atendendo à importância que outrora também teve para os habitantes do concelho de Marvão, bem se justificaria um núcleo museológico dedicado ao contrabando ou, quiçá, num dos edifícios da Fronteira, ser criado um museu de raia alusivo a essa temática, com a colaboração de portugueses e espanhóis, pois esse negócio envolvia os dois países e as suas gentes e marcou para sempre as suas culturas.